Ivo Canelas: “Nunca escolheria entre teatro e cinema, eles são casados”

   

Estaentrevistanãodeviaterespaçamento. E não, isto não é uma gralha, é a velocidade a que fala Ivo Canelas. 

Mania que equivale a raspanetes, afinal, um ator tem que saber dizer. Fator que nos passa ao lado em “Quarteto” – texto de Heiner Müller baseado em “Ligações Perigosas”, romance de Choderlos de Laclos, e encenado por Jorge Silva Melo, que estreia no próximo dia 6 de janeiro no Teatro da Politécnica – onde partilha o palco com Crista Alfaiate, numa peça com tanto sarcasmo como promiscuidade. Calha bem, não fosse Ivo Canelas um dos atores por quem mais mulheres portuguesas suspiram. Esqueçamos até as mulheres: Ivo Canelas parece ser um nome imaculado – experimente dizê-lo alto e em público e assista à reação em seu redor. Desconfiamos que o principal culpado seja Joca, o pinga-amor desajeitado de “Fura-Vidas”, série com que se estreou em televisão. Novelas, nem por isso. Cinema tudo, teatro idem, tanto que acha belo o seu matrimónio. Um último aviso à navegação: este é o Ivo Canelas que já acha que um Shakespeare não tem que ser forçosamente moderno. Como os seus cabelos brancos indicam.

O que lhe diz Heiner Müller?

Só tinha lido o “Hamlet Machine”, agora estou a descobri-lo melhor. Conhecia o “Ligações Perigosas”, do filme nem sequer do romance. O Heiner Müller tem um lado, que ele chega a mencionar no prefácio, que é assim uma coisa “eu não me inspirei completamente naquilo”…

Diz que fez uma leitura diagonal de “Ligações Perigosas”.

Sim, “nem acabei”. Isso é muito curioso. Acho que ele tem essa atitude em relação à sua obra, tu lês este texto e percebes que é em tudo semelhante à estrutura do romance, mas depois dá uns rasgos que no filme estão representados mas que aqui são falados.

O que é que isso provoca num ator?

O texto é denso, mas ao mesmo tempo claro. Tenta-nos iludir com um excesso de complicação intelectual mas é uma ilusão, ao lê-lo reagia àquilo “What the fuck?”… ou seja, constantes surpresa. O que me fascina neste texto é a arte da manipulação. Estás constantemente a subir o grau de dificuldade, quando já te disse que gosto das tuas mãos, ainda tu estás a processar e já eu estou a perguntar: “Não queres tirar a camisola?”. Do ponto de vista do ator, há um lado muito simples, por indicação do Silva Melo, que diz: “Oiçam, confiem que quando estão a dizer que são outra pessoa não precisam de dizer que são outra pessoa, basta deixar as pessoas seguirem essa viagem”.

É um texto profundamente promíscuo e o Ivo é um sex symbol para muitas mulheres portuguesas…

Esperemos que sim [risos]. Era bom se assim fosse…

Pode ter sido por isso que o Jorge Silva Melo o escolheu?

Não sei, terás que lhe perguntar. Nunca encenei, mas acho que as escolhas se prendem com aquilo que as pessoas são, aquilo que representam… não sei responder pelo Jorge.

Mas serve-lhe bem.

Sim, desafia-me muito. É um texto que pede alguma idade, há zonas de experiência que há uns anos não apanharia, há zonas de um dado universo masculino, de levar as coisas até um nível que acaba por ser assustador, mas também fascinante e sedutor.

Levantei a questão do sex symbol pois quando disse que o ia entrevistar uma colega pediu-me para lhe dar uma fotografia dela com o número de telefone na parte de trás…

Muito bem… que querida.

Já foi abordado de forma mais caricata?

Nem por isso, temos um país muito soft na abordagem de rua, é gentil, discreta…

Os fãs é que têm vergonha de ir falar consigo.

Sim, normalmente não sinto mais que simpatia e gentileza.

Enquanto ator prefere um texto clássico ou contemporâneo?

Interessa-me a contemporaneidade, o lado mais erudito é sempre mais complicado, mas também já passei aqueles anos da juventude onde tudo tinha que ser contemporâneo. Agora entendo, até retrospetivamente, que há um lado na erudição e num determinado classicismo que te permite ultrapassar as fronteiras do naturalismo e trazer outras cores.

Essa preferência dissipa-se com a idade, é isso?

Acho que vai variando, há 20 anos achava que todos os Shakespeares tinham que ser modernos, hoje não. Sinto com este texto, espero não estar enganado, que há um lado de raciocínio meu que está mais apurado, porque me obriga a raciocínios mais tramados, sinapses mais difíceis e acho que isto liga luzinhas novas.

Lembro-me de o ver em “Amadeus”, no Teatro Nacional. Um espetáculo totalmente diferente.

Aquilo é uma máquina. É um espetáculo muito bem montado, Tive pouco tempo para o preparar. Foi sempre um espetáculo construído por fora, levantámos a estrutura desde o primeiro dia e quando tínhamos o osso montado fui lá preencher os vazios para aquilo fazer sentido para mim.

Nada fácil, portanto.

Foi um processo doloroso mas depois fui muito feliz a fazer esse espetáculo, correu muito bem. Este é o oposto em energia, o oposto em pequenez, é uma coisa de grande plano, se pudéssemos estar todos mais perto seria melhor ainda, para sentirmos a pele e vermos os olhos a piscar. É uma coisa muito subtil. E o “Amadeus” era para todos, este é para maiores de 14. São universos distintos.

É, em certa medida, o teatro possível. Aflige-lhe esta condição de precariedade?

Interessante a pergunta. Lembro-me de trabalhar com o Silva Melo há muitos anos e de fazermos espetáculos de dez e quinze pessoas. Há uns dias estávamos a falar disso, onde é que há dinheiro para isso? Claro que as condições não são as ideais, claro que entra água no espaço, mas em relação ao espetáculo não é mais pobre. O que aqui está é o que é justo estar. Podia ser feito com vinte vezes mais dinheiro, não quer dizer que fosse melhor.  A mangueira do dinheiro também varre ideias.

Estudou teatro e cinema no Lee Strasberg Institute, nos EUA. Essa experiência deu-lhe uma noção de representação diferente?

Deu-me uma ferramenta que é: ok, eu sei trabalhar sozinho. Deu-me a técnica que me permite ir para casa e estar a trabalhar. Lembro-me de antes não ter método. Ensinou-me uma forma de pensar cumulativa que tiro e ponho consoante quiser. Antes disso era uma sensação que é… porque é que eu sei? O que é que eu fiz para saber o que sei? O senhor que fez esta cadeira [aponta para uma das cadeiras do cenário] trabalha com a madeira há 20 anos e sabe esculpir e colar. Enquanto não tens essa noção… é quase como quando vamos fazer o exame de história: se estudaste estás tranquilo. Pode ser melhor ou pior, mas estou sereno comigo, não estou a enfiar barretes a ninguém, isto é o que eu vendo…

E ninguém é obrigado a comprar.

Claro, não precisas de comprar mas é sério. Isso posso garantir.

Ainda bebé, viveu seis meses no Texas. Considera-se um filho da cultura norte-americana?

Sem dúvida, conheço poucos que não o sejam.

Talvez o Ivo seja mais do que outros…

Sim, é possível. Os meus pais foram estudar para lá quando eram novos, na minha família existia esse imaginário americano, uma determinada forma de trabalhar. Vamos lá fazer isto, mas como? Mas é fazível? É, então vamos fazer.

É por isso que volta aos EUA sempre que pode?

Volto lá por fazer parte do meu imaginário de trabalho, de hipóteses e de todas as consequências que daí advém. Volto para sentir que enquanto tiver energia e algum dinheiro lá vou tentando ir… nada é impossível. Temos cada vez mais exemplos de pessoas que foram a jogo e acertaram, isto é uma lotaria. Sinto que enquanto tiver energia vou a jogo, um porque gosto de lá ir, dois porque gosto imenso de sentir – em Janeiro, Fevereiro – a época dos episódios piloto à minha volta. Um naco do mundo da representação está ali a competir por uma hipótese efémera e improvável.

Isso sente-se, efetivamente?

Sim, é uma energia excitante, não sei explicar. Pelo lado negativo também é estranho, é aquele lado onde encontras atores que vão fazer a quinta audição e nem sabem de onde vieram, a expressão é galinhas sem cabeça. Depois, chegas a uma dessas audições e percebes que as pessoas estão lá e querem que sejas bem sucedido, “vai, faz o teu melhor, porque queremos que sejas tu”. Isso mantém-me apaixonado por esta profissão.

Consegue explicar a razão pela qual ainda não teve essa sorte?

Não, nem quero explicar porque isso podia-me fechar uma porta. Ainda não se deu, talvez nunca se venha a dar. Repara, tenho a sorte de continuar a trabalhar no meu país e de ter uma série de ofertas giras. Esse outro universo ainda não chegou, talvez um dia, não sei. Há um lado meu que está em paz, mas não tenho parado de tentar. Há dez anos que tento conscientemente.

Essa insistência faz-lhe bem?

Tranquiliza-me. Não é para ser não é para ser, mas tentei. Não podemos pensar que não temos algo se não estamos a fazer nada para o ter. Se não fazemos nada, do que nos queixamos?

Há alguma audição que o tenha marcado particularmente?

Tantas. As audições são o lado curioso desta profissão, todos ficamos nervosos quando somos medidos e analisados. Já tive audições de ser desfeito, do género “saia, não o quero ver à frente”.

Como é que se lida com isso?

Fogo, sei lá, engoles o sapo todo e no dia seguinte de manhã estás lá de novo.

Quase um sermão de mãe.

A mim aflige-me, não nego, mas não podes começar a duvidar de tudo. Encontrei poucas bestas pelo caminho, esta era uma besta, foi mesmo agressiva, má onda. Fiz uma caminhada de não sei quantos quarteirões e só pensava “que pancada”. Estou na mão dela, que esquisito.

Tem, por certo, memórias positivas.

Tive uma experiência gira, num primeiro dia de filmagens, que é uma audição completa, a única pessoa que te viu foi o realizador e é se viu. Foi uma coprodução americano-dominicana que gravámos por esta altura, há um ano, na República Dominicana. Um filme série B, com condições parecidas às que temos em Portugal. Fui lá parar um bocado de paraquedas. O realizador deu-me liberdade para experimentar. Mas tinha um diretor de fotografia velha-guarda, daqueles que é duro e não esconde, que ficava a olhar para mim durante um ensaio difícil, de dez minutos, com muita manipulação de objetos… Eu estava a demorar tempo e o gajo só dizia “fucking too long”. Aquilo estava-me a moer. No final, quando tinha conseguido dar a volta à cena, o gajo vem ter comigo com a mesma cara de bruto, tira o relógio do pulso e diz: “Olha, isto é um Rolex que a minha mulher me deu, vale 25 mil dólares, quero que uses na cena – fazia de um gangster – porque te vai ajudar a sentir mais poderoso. E diz-me: “Thank you for the performance”. Aquilo tocou-me.

Soube-lhe bem.

É foda esta profissão. Tu mandas-te, nunca ensaiaste bem as coisas, é a primeira vez que aquilo vai ser ouvido por todos e sentes a malta a olhar. Quando te dão uma palavra de apreço é bom, é, diria, determinante para o teu sucesso.

Para a memória coletiva do típico português, o Ivo continua a ser o Joca, de “O Fura-Vidas”.

O tempo é uma coisa formidável. Também olho para colegas meus e sinto que há ali um momento onde os congelei no quentinho do meu coração.

Com determinada personagem?

Sim, e é difícil largar isso. Os primeiros trabalhos têm uma pureza curiosa, não sabes bem o que estás a fazer… Portanto percebo. Mas sim, ainda hoje, especialmente a partir das três da manhã, as pessoas começam a hastear essa bandeira.

É um dos projetos que o marcou, presumo.

Sem dúvida, aceitei logo aquilo, bastou dizerem-me que era com o Miguel Guilherme, nem precisei de ler. Foi ótimo começar em televisão com ele. O que gosto no Miguel Guilherme é que é um profissional obsessivo ao pormenor, se passar no radar dele qualquer coisa que não bata certo ele acusa. Eu, muito novo, sem essa escola, mais sujeito ao “querem que faça eu faço”, e ele apoiou-me muito. Fez ali um filtro, “não, ele precisa disto, deem-lhe aquilo”.

Considera-se um fura-vidas?

Tenho uma espécie de costas quentes emocionais, uma estrutura familiar forte. Conheço pessoas muito mais fura-vidas do que eu, no sentido da necessidade, acho que sou um fura-vidas q.b.

Na televisão faz sobretudo séries. Em todas as entrevistas esclarece que não tem qualquer preconceito com…

Pois não.

No entanto, nunca aconteceu fazer uma novela.

Já fiz coisas anoveladas. Lembro-me do “Olá Pai”, aquilo era uma novela disfarçada de série. O que é engraçado é que temos uns formatos… séries anoveladas, novelas asériezadas, uns híbridos estranhíssimos. Nunca fiz porque nunca aconteceu.

Mas ainda há esperança?

De fazer uma novela? Não via pelo lado da esperança, via pelo lado do se acontecer, aconteceu.

Acha possível as pessoas terem mais respeito por si por nunca ter feito uma novela?

Não, de todo. Já pensei que sim. Houve uma altura mais utópica, mais poética. Mas nem têm porquê, não acho que os meus colegas que fazem novela sejam menos do que os outros. Até porque há alguns que conseguem manter um excelente equilíbrio entre a exposição da novela e um ou outro projeto teatral alternativo e ainda trazem público. Acho que a arte é o equilíbrio.

Participou num filme de Patrice Chéreau em 1994, “Queen Margot”. Como é que se proporcionou?

Era uma figuração especial, sendo que em 500 figurantes 20 eram especiais. Lembro-me que era muito miúdo, devia ter uns 20 anos, aquilo era filmado em Mafra e eu paguei cinco contos para ir de táxi para Mafra porque acordei tarde. E depois lá perdi a figuração especial…

Por ter chegado atrasado?

Sim [risos]. Acho que se vê a minha bochecha numa cena.

Que efeito teve aquele mundo, as rodagens, em si?

Fascinante. Nunca mais me esqueço. Nunca tinha visto nada daquela dimensão e marcou-me ver o protagonista – que nem me lembro do nome dele – que tinha uma cena complicadíssima com figuração em barda e todos atrás dele. Sempre que dizias “corta!” tinhas que meter toda a gente no sítio, retocar a maquilhagem, tudo. O que devia ter durado meio dia, durou o dia inteiro. Não quero exagerar mas o gajo deve ter uns 48 takes, foi uma loucura. Ele entrava, a chorar, e aquela merda falhava sempre. O trabalho do gajo era tão intenso, ele em cada take entrava sempre com a energia certa e nada. Os três primeiros takes que o gajo faz são geniais, curiosamente não foi nenhum desses que ficou no filme. Éramos 400 pessoas e quantos mais takes foram sendo feitos mas nós ficámos hipnotizados. No final toda a gente bateu palmas, foi muito bonito.

E o Chéreau, a realizar?

Nem me digas nada, o que aquele homem gritava. Nunca cheguei perto dele, nem queria, fogo. Uma vez faltou gelo e só havia gelo a fingir, bem, havias de ver o homem. E aí, deixa-me dizer-te que as equipas de cinema me fascinam.

Como assim?

Falta qualquer coisa e saltam sete pessoas para resolver o problema, ainda nem acabaste a palavra e já está um gajo a meter a mão na arca. Esse lado excita-me à brava.

E que mais o fascina no cinema?

Tudo, é um trabalho de equipa intenso, não há departamento nenhum que não dependa do outro. Os atores são apenas a ponta do iceberg. Quando toda a gente montou aquilo para o filme e és tu quem vai lá unir todas essas linhas, essa noção de responsabilidade e de prazer que é ir utilizar o mundo criado pelos outros e saber torná-lo verdadeiro, fascina-me. Assim como a falta de cronologia, a realidade ser decopada. Gosto dos horários trocados que o cinema, por vezes, te exige. Gosto muito da velocidade, que, apesar de tudo, gostava que fosse menor, era sinal que tínhamos maiores orçamentos. O Clint Eastwood faz uma cena de manhã e outra à tarde, os atores até sentem complexos de culpa. Ainda estamos longe disso.

Já pensou em realizar?

Já pensei na zona da fantasia, nunca foi uma necessidade, nem um desejo. Interessa-me ver e acho que sou capaz de dar uma sugestão ou outra, não sei se tenho a serenidade de saber dirigir. A arte está na capacidade que o realizador tem em vir ter contigo e te pedir mais contenção, ou maior energia. Realizar é gestão humana, até se gere o sorriso, há um lado de manipulação humana que quando é bem feita atinge um nível genial. Mas amava, como experiência… hipotética [risos].

Se lhe apontassem uma pistola à cabeça o que escolheria: cinema ou teatro?

São a mesma coisa. No sentido em que aqui, este palco que é uma black box é um estúdio também, ensaiamos teatro e cinema de forma igual, depois fazemos um ajuste. “Os Filhos do Rock” foram todos ensaiados numa sala como esta, sem câmara, e onde o realizador nos dizia ali é uma parede, era uma simulação do espaço. Só depois juntámos a câmara. Nunca escolheria entre teatro e cinema, eles são casados.

Há atores que dizem que o teatro é mais exigente. Isso não deveria ser um desafio?

Não é fácil, sobretudo por culpa da repetição. Todos os dias tens que encontrar uma verdade que acabaste de dizer ontem. O cinema tem outras exigências, no teatro amanhã posso fazer melhor, no cinema já foste, está filmado para os próximos cem anos. Se está mau, está mau.

“A insegurança faz parte de quem sou”, lia-se numa entrevista que deu em 2014. Ainda faz?

Deixa-me corrigir a insegurança pela dúvida. E faz mesmo, é assim que sou e até hoje não me tenho dado mal.

Era mais inseguro enquanto vocalista dos Cosmic Joke.

Naturalmente, não tinha talento…

Chega a cantar neste “Quarteto” e tem boa voz…

Epá, gosto muito de cantar, dá-me prazer, mas não é boa, safa-se. Tenho é um grande problema com o ritmo, não respeito o tempo, vou atrás do texto. Com os Cosmic Joke começávamos a música ao mesmo tempo e eu acabava a música dois minutos antes da banda.

Só tinha 20 anos, estava a começar a carreira…

Sim. Também o senti na representação, levava muito na cabeça. Ainda levo. Calma, uma coisa de cada vez. Se tivesse feito este espetáculo há cinco anos ia precisar de muitos mais meses só para acalmar.

Consegue explicar o motivo?

Sou entusiasmado [risos]. Deixo-me levar pelas coisas.