Regina Duarte: “Não se leva o personagem para casa mas pode levar-se para a vida”

Quando o cansaço é extremo, não há maquilhagem nem força de vontade que disfarcem as horas devidas à cama. Mas a solução mais simples, de desistir, de adiar, não serve a Regina Duarte. Mesmo que leve já um voo transatlântico e horas e horas de entrevistas.

“Gosto do que faço, gosto de falar daquilo que faço, por isso está tudo certo. Vamos lá”, diz-nos, com um misto de sorriso aberto e olho colado no chão. Como se nela vivessem todas as mulheres que já nos ofereceu, da Patrícia de “Minha Doce Namorada” que a transformou na namoradinha do Brasil, à exuberante Viúva Porcina de “Roque Santeiro”, às três, sofridas, Helenas, das novelas de Manoel Carlos. Regina Duarte é todas elas e é, sobretudo, Malu, de “Malu Mulher”, a novela que a ajudou a descobrir que era mulher e que permitiu que mulheres, no Brasil e em Portugal, fossem isso mesmo: mulheres.

Está de regresso a Portugal…
Pois é, menina, é uma coisa, né? Há um elo, um carinho, temos uma história, uma relação que dura há mais de 30 anos. E isso é maravilhoso, é um presente da vida.

Veio trazer a peça “Bem-vindo, estranho”, que estreia dia 31, no Teatro Tivoli, em Lisboa.
Pois é. No Brasil, esta peça estava encerrada há mais de dois anos, mas os produtores portugueses tinham assistido a esta peça e, em setembro de 2015, falaram de trazer a peça cá a Portugal. Foi um longo namoro.

Esta é uma peça sobre afetos?
Acho que é uma dramaturgia de alta qualidade, no género suspense, mas que tem uma primeira parte de muito humor e o meu personagem é uma mulher muito doida e engraçada. Depois de um certo ponto o espetáculo vai ficando tenso e estabelece-se a famosa pergunta hitchcockiana: quem vai matar quem? É uma peça com muitos ingredientes sedutores para a plateia, que sai gratificada e leva para casa reflexões, bastante densas, sobre relacionamentos familiares. Há pessoas que me disseram que, passados três dias, ainda estavam a pensar na peça.

[Ao olha para um televisor ligado na sala onde nos encontramos, comenta “Mas o que é que está acontecendo que cada vez que olho para esta televisão vejo Cuba?”]

Já começou a visita do presidente Barack Obama.
Ah, pois é, era agora!

Já que falamos de notícias, a outra manchete de hoje é a detenção, aqui em Lisboa, de Raul Schmidt, no âmbito da operação Lava Jato. Há menos de uma semana estava na avenida Paulista, em São Paulo, em cima de um carro do Movimento Revoltados Online. No seu discurso disse: “O que está acontecendo é fruto da mentira, do engano, do aproveitamento do brasileiro. É muito triste o estado em que o povo brasileiro se encontra”. Uma figura pública tem obrigação de se manifestar?
Estava ali como cidadã, como um dos milhões que ali estavam, acreditamos que foram mais de dois milhões. Estava ali contagiada pelo espírito de indignação e necessidade que  país seja recolocado nos trilhos da dignidade, da ética. Como sempre foi. Podem dizer que sempre houve corruptos. É verdade. Mas então este é um bom momento para se fundar raízes de um futuro mais limpo e sério. Mais comprometido com a verdade.

Este é um golpe muito duro para um Brasil que viu em Lula, um homem do povo, uma espécie de salvador?
É um golpe muito duro para o povo brasileiro e para o mundo. É um sentimento muito doloroso ter de dizer que errámos, que nos equivocámos, que fomos traídos na nossa confiança e na nossa esperança. Tenho-me lembrado muito de uma frase, na época em que o Lula se elegeu: ‘A esperança venceu o medo’. 

Mas a verdade é que a Regina nunca foi pro-Lula e até foi criticada por isso.
A maioria da minha geração foi criada participando da vida do país e a minha vida foi sempre muito coerente com isso, com a expressão dos meus sentimentos em relação a cada momento político. Fiz parte de todos os movimentos vividos nos últimos 50 anos, por isso falei antes e por isso estive naquele palanque a gritar pelo Brasil. Isso não deve nunca causar estranheza a ninguém. Agora acho que temos um longo caminho pela frente, nem sei bem qual é… Mas mantenho a esperança de dias melhores, mais éticos. É isso que nos mantém de pé.

O que recorda da primeira visita que fez a Portugal?
Tinha acabado de fazer o “Roque Santeiro” e aqui a novela estava nos últimos capítulos. Os organizadores do Carnaval de Sines convidaram-me para vir e adorei a possibilidade de vir a Portugal pela primeira vez. Foi maravilhoso, inesquecível. Senti um acolhimento muito querido, muito afetuoso.

Na altura não tinha noção da força que as novelas e os atores brasileiros já tinham por cá?
Não, até então, não. Já tinham dado aqui a “Escrava Isaura” e a “Malu Mulher”. Mas nada como o Roque santeiro.
Foi uma novela que, cá em Portugal, conquistou totalmente as pessoas.
Parou tudo. E no Brasil também. Tivemos 100% de audiência, todo o país estava ligado.

Não há anos de trabalho que preparem para um sucesso desse género?
Não. É um fenómeno irreproduzível. Mas também é muito assustador, especialmente o passo seguinte. O que é que vem depois de um grande sucesso? Tive muita sorte porque tem gente que faz um sucesso grande e depois passa alguns anos sem rolar nada interessante, fazendo coisas sem o mesmo peso. Eu tive muita sorte porque fui chamada para uma novela que também é icónica, o “Vale Tudo”. A Raquel era um personagem muito importante e essa novela foi, para mim, a possibilidade de continuar uma carreira, sem sentir que estava aquém do que já tinha feito. Pelo contrário. Estava dando o passo à frente.

Quando se tem papéis tão importantes, assim de seguida, sente que não pode desiludir, não pode falhar, tem de estar sempre disponível para o público que a acarinha?
Essa é a armadilha à qual temos de tentar escapar, não criar uma autoexigência, uma sensação de omnipotência de que a gente é capaz e só vai ter papéis desses. A vida nos brinda com isso, às vezes, mas às vezes não. Temos de ter a humildade de reconhecer que pode ocorrer, mas também pode nunca mais ocorrer.

Quando, ao fim de cerca de cinco anos de trabalho em televisão, em 1971, fez a novela “Minha Doce Namorada” e começou a ser adorada pelo público e  chamada de namoradinha do Brasil, sentiu-se a levantar o pé do chão?
Pelo contrário. Ser a namoradinha do Brasil era um aprisionamento numa imagem e essa não era a minha ideia. A minha ideia não era construir uma imagem, a minha ideia era ser atriz. Ou seja, abrir o leque de personagens, fazer os mais diversificados. Ser a namoradinha do Brasil era uma camisa-de-forças. Sentia-me muito aprisionada. Porque os produtores e diretores não conseguiam me ver fazendo mais nada além daquela menina carente, dócil, meiga, generosa, sofredora, passiva, dependente. Todas as qualidades que a minha geração começou a questionar com muita veemência, o que acabou resultando em “Malu Mulher” (1979/80), que foi um grito de emancipação de uma imagem, de um papel de inferioridade, de subserviência, um papel quase de nulidade dentro da família.

Até como mulher, esse tipo de papéis de boazinha começavam a perturbá-la, no sentido em que não se identificava com eles?
Não, pelo contrário. Na altura, a namoradinha era um retrato muito aproximado da pessoa que eu realmente era. Senão não teria feito com aquela verdade, com aquela sinceridade. Quando a pessoa não é aquilo, não se consegue enganar o público.

Quando começou então a surgir a versão da Regina Duarte que tinha mais a ver com a mulher Malu do que com a tal namoradinha?
Foi muito em função de um amadurecimento pessoal. Tive o meu primeiro filho com 25 anos, depois tive o segundo, e mesmo assim continuava a receber aqueles papéis. Só que entretanto, além dos filhos, já tinha feito um ano de faculdade que tive de trancar por causa de trabalho. Fui amadurecendo, me contactando com o mundo e com o que estava ocorrendo.

No Brasil?
Sim. O país passava por uma ditadura e eu comecei a questionar o social, o político, quando antigamente só tinha olhos e atenção para a minha carreira, para os meus problemas pessoais. Comecei a abrir o meu campo de visão e isso também me levou a querer uma carreira mais livre, menos… menos submetida a estereótipos da boa moça. Foi nessa altura que fui para o teatro fazer outras coisas. No teatro pude escolher os papéis que queria fazer, enquanto na televisão não havia essa hipótese. Fiz isto para que os diretores, produtores e autores pudessem perceber em mim um potencial de expressão diferente do que até então estavam a conseguir ver.

E conseguiu?
Consegui, acho que sim, porque, depois de uns três ou quatro anos no teatro, fui chamada para fazer Nina [na novela com o mesmo título], uma professora que contestava o ensino da época, a forma como os professores e os alunos se relacionavam, essa coisa autoritária em cima de um tablado, da cátedra, distante dos alunos. Ela rompia com isso. E depois de Nina veio Malu. E depois a Porcina… Foi indo, devagarinho, degrau por degrau.

O público que estava apaixonado pela namoradinha aceitou bem quando a começou a ver noutro tipo de papéis, noutro tipo de mulheres?
Acho que sim. Acho que o público também cresceu, também amadureceu. Eu e a plateia, o público que acompanhava os meus trabalhos, a gente cresceu juntos. Como se fosse uma amizade. Era uma questão de geração. É uma geração de mulheres e homens que vivenciaram os mesmos problemas, os mesmos desafios, o mesmo desejo de libertação dos papéis ancestrais. Tudo tinha a ver com a ditadura vigente. Havia um desejo de ampliar horizontes e de mais liberdade, a todos os níveis.

Disse que foi necessário o seu amadurecimento como mulher para também amadurecer como atriz. As duas coisas nunca se separam?
Não, é impossível. Mesmo que os personagens não tenham nada a ver com a atriz, acho que, para sustentar um desempenho, a pessoa que está por detrás do personagem, precisa de estar muito conectada com os recursos técnicos e emocionais para viver aquela outra vida.

Por vezes essa outra vida tomou conta da sua?
[silêncio] Não… não chega a tomar conta, mas pode exercer algumas influências. Lembro que, quando fazia a Viúva Porcina, ela era uma personagem com uma argumentação muito ágil e esperta. Ela era muito esperta, até na defesa das próprias mentiras, era muito ardilosa e inteligente. E lembro que, inconscientemente, aprendi um pouco com ela a enfrentar algumas discussões de diferença de opinião, usando toda uma técnica de argumentação um pouco maliciosa e tendenciosa. E lembro que o meu marido da época me chegou a dizer que eu estava argumentando como a Porcina.

Essa separação é igualmente fácil de atingir quando tem personagens mais sofredoras, como, por exemplo, em “Páginas da vida”, onde fez uma das três Helenas que fez em novelas criadas por Manoel Carlos, sendo que aqui adotava uma criança com síndrome de down?
Mas ela era muito combativa! Esta não era uma Helena de ficar sofrendo no sofá.

Mas era uma novela com uma carga bastante densa. Quando faz esses papéis mais fortes e reais, como chega a casa?
Cansada. Mas o personagem fica lá. Acredito que não existe isso de carregar o personagem para casa. Para mim, não. Não se leva o personagem para casa, mas pode-se levar para a vida. Pode levar o jeito de pensar, o jeito de olhar uma situação. Mas não nos tornamos aquela pessoa. É como pôr uma máscara e quando acaba o dia de trabalho tiramos a máscara. Quando se tira a roupa, a maquilhagem, e se vai para casa, recuperamos daquilo. Sem isso enlouqueceria.

Se tivesse de apontar o personagem que mais a ensinou qual foi?
Malu. Porque eu estava vivendo a mesma situação do personagem, recém-separada, criando dois filhos pequenos. Muito insegura, muito assustada, tendo que assumir coisas de que nunca tinha ouvido falar, como o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano). [risos] Coisas que, para mim, até então, eram do universo masculino, e eu tive de me virar sem chamar nem o papai nem o ex-marido para resolver. Foi um período duro mas o personagem me deu muita força para enfrentar.

Quase como se fosse um amigo?
Exatamente. Todos os personagens me ensinaram um pouquinho, mas este apanhou um período muito especial da minha vida, um momento de muita fragilidade e contribuiu para me dar muita força. Tanto que, quando acabou, praticamente entrei em depressão. Fiquei  me sentindo muito abandonada, muito entregue à minha própria sorte.

Não passa muito essa ideia de ser uma mulher dada a depressões…
Não? É mesmo? Sou uma pessoa que luta contra a depressão o tempo todo. Tive filhos que nunca me permitiram o luxo de deprimir, mas adoro uma depressãozinha. [risos] E uma boa solidãozinha também. Nunca tive oportunidade de viver isso, tenho quatro irmãos, três filhos, seis netos… é muito difícil ter um momento solitário, sem ninguém. E hoje em dia sou uma pessoa que aprecia estar só, aprecio a possibilidade de não fazer nada, de ficar de cama um, dois, três dias… pensando na vida.

Foi também para fugir disso que quis ser atriz?
Quis ser atriz porque é uma profissão que possibilita esse frenesim de emoções, de situações inusitadas. Porque a vida quotidiana, normal, pode ser uma vida boring, muito chata. Com a possibilidade de viver outras vidas, pode-se vivenciar grandes aventuras, grandes emoções, grandes amores, grandes tragédias. Sem o peso do real, sem a responsabilidade do real.

Lembra-se do momento em que quis ser atriz?
Lembro muito bem porque foi por causa da primeira peça de teatro que li, o “Diário de Anne Frank”, que mexeu muito comigo. Eu tinha uns 12 ou 13 anos, a idade do personagem. Fiquei muito impressionada com a história daquela menina e tive uma vontade enorme de ser amiga dela, de dar a mão para ela, de evitar que ela tivesse o fim que teve. Então me solidarizei muito com ela. Junto com esse sentimento de compaixão, veio uma vontade de viver outras vidas, como a dela, sem ter de passar pelos horrores, por exemplo, do nazismo.

Esse desejo, para uma menina de Campinas, filha de uma professora de piano, mas também de um militar, causou-lhe problemas com a família?
Não porque a minha família sempre foi muito interessada em arte. Tinha uma irmã que estudou canto lírico, outro que estudava piano, outro estudava violino.

O lado artístico da sua mãe sobrepunha-se ao lado militar do seu pai?
Não, o meu pai também era um artista! Apesar de militar. Os dois eram artistas e os filhos vieram para suprir uma vontade de arte que existia neles.

Campinas revelou-se pequena para tantos sonhos?
Do estado de São Paulo, Campinas era talvez a cidade mais desenvolvida culturalmente, tinha um centro de ciências e artes, tinha três ou quatro conservatórios de artes. Era uma cidade que promovia simpósios, encontros, workshops, trazia gente de fora… Tinha um teatro municipal que recebia as peças mais importantes. Foi ali que vi a Tônia Carrero, a Cacilda Becker. Vi muita gente bacana representando lá. E os meus pais estimulavam isso. Eles não nos compravam sapatos novos mas compravam um vinil de música clássica e ingressos para o teatro. Fomos educados dando valor à arte.

Essa menina que sonhava viver outras vidas em palco tinha noção da vida que o Brasil vivia ou isso não se falava em casa?
O meu pai tinha consciência política e isso acabava contaminando a família. Todo o mundo vivia essa situação. Por ocasião do golpe militar, houve um constrangimento… o meu pai achava aquilo inadmissível, achava que militar era para botar ordem, não para assumir um governo. Ele acreditava que governar não era o papel do exército, mas antes a salvaguarda das instituições. Ele não falava sobre isso com a gente, eu era muito pequena. Mas falava com os amigos e com a minha mãe, e a gente ia ouvindo.

Começou a ter experiências como atriz ainda muito nova?
Sim. Com 14 anos já estava no teatro amador. Fiz testes e fui aprovada. E antes já estudava ballet, declamação, violão. Já tinha uma vivência nas artes.

Chegou a pensar ser bailarina?
Eu queria ser bailarina, mas quando comecei a fazer teatro achei o ballet muito doloroso e pesado em termos de dedicação. Todo o mundo dizia que eu tinha talento para a dança, mas o que me faltava era perseverança.
 

Teve essa perseverança…
…como atriz. Isso tive.

De tal forma que, com 18 anos, já tinha saído de Campinas para fazer televisão?
Naquela época, fazer televisão aos 18 anos, era como fazer aos 12. Uma menina de 18 era uma criança. Para fazer “ADeusa Vencida”, em 1965, mudei-me, com toda a família, para são Paulo. Fomos atrás do meu sonho.

Essa estreia aconteceu pela mão de Wálter Avancini, um dos realizadores que marcou a sua carreira, tal como Manoel Carlos.
Sim. O Wálter foi uma pessoa muito importante na minha vida. Ele me ensinou tudo, me ensinou o bê-á-bá de como lidar com a câmara, com a interpretação para televisão…

Esses primeiros papéis foram os tais em que sentiu  que estava sempre a fazer de si, da tal menina?
Sim, mas porque os autores escreveram assim para mim. Depois de fazer um papel e esse papel ter sucesso – e ganhei os prémios todos logo naquele primeiro ano – a partir daí, talvez por comodismo ou insegurança, os autores começaram a escrever sempre a mesma coisa. Acharam de deviam continuar a fazer de mim a boa moça, a namoradinha que todo o mundo queria ter. Durou uns quatro ou cinco anos.

O mundo da novela quando começou e o mundo da novela de hoje em dia são duas realidades radicalmente diferentes?
Sim, bem distantes. Muita coisa mudou, inclusive o tamanho das novelas, a tecnologia toda, as propostas, as temáticas não são mais as mesmas. Não se faz mais novelas como antigamente.

E isso é bom ou mau?
Sou meia suspeita porque vivi o antes. Mas oiço muitas pessoas profundamente frustradas com os caminhos que a novela está tomando hoje. A novela foi-se aproximando muito do documentário, do docu-drama, do drama documentado, e foi-se afastando do folhetim e de uma certa inocência e romantismo que o folhetim tinha.

No passado a novela fazia sonhar mais do que faz hoje?
É, acho que as pessoas tinham na novela uma ilha de descanso, de repouso, de sonho, de fantasia, que hoje não existe mais. Hoje, na novela, as pessoas são submetidas a confrontos de enorme gravidade, em termos de violência, de agressividade, de frustração, de dor, de sofrimento, que talvez não seja muito o que a pessoa quer ver na hora que está jantando. Ou logo depois do jantar, num momento em que a família está na sala reunida. Acho que temos um caminho a percorrer para tentar recuperar a noção de para quem é que estamos falando.

É isso que justifica a perda de peso da novela?
Há várias razões. A novela tem agora uma concorrência enorme com o celular, com a internet. Mas mais grave é talvez uma temática equivocada.

É curioso que pense assim porque, aqui em Portugal, sempre olhámos para as novelas brasileiras como sendo muito boas, sobretudo porque retratavam a realidade.
Mas tem várias maneiras de se falar da realidade. Tem uma maneira soft e light, carinhosa, e tem uma outra maneira, mais dura e agressiva de falar dessa realidade. Aí é que reside o nó da questão.

Falou da concorrência da Globo, mas referiu-se apenas a novas plataformas. Outros canais, como a Record, também já concorrem com a Globo. Isso dificulta ainda mais a tal missão de descobrir o posicionamento certo?
Não vejo nenhuma concorrência com a Globo. A Globo continua a léguas de distância de todos os outros canais abertos. A Globo tem, até aqui, uma programação imbatível. É uma televisão preocupada em abrir o leque, em falar com todas as camadas da população. Tenho estes questionamentos com a novela porque tenho esse defeito de fabricação: fui feita lá atrás, em eras jurássicas da novela.

E essas dúvidas fazem com que, por vezes, quando tem agora um projeto de novela, não sinta a mesma excitação que sentia quando antes tinha um novo projeto?
Depende da novela. Tenho me entusiasmado muito com algumas coisas que fiz mais recentemente. Por exemplo, “Império”, fiz uma participação de quatro capítulos que foram memoráveis e me deram muito prazer. “Sete Vidas”, fazer uma avó com um passado homossexual, que tinha criado dois filhos por inseminação artificial, foi uma novela que me deu muitíssimas alegrias. Quando acabou queria que continuasse como um seriado, fiquei muito triste por terminar porque senti uma resposta apaixonada do público por aquele núcleo. Apaixonei-me perdidamente por aquele papel. O ideal é que isto aconteça a cada papel.

Falou agora de “Sete Vidas”, nessa altura deu várias entrevistas em que surpreendeu dizendo que éramos todos bissexuais. Uma afirmação dessas seria impensável fazer, por exemplo, no início da sua carreira?
Sim. Este é um período da história que permite muito mais liberdade para dizer o que se sente. É uma conquista importante seguir os nossos instintos mais básicos. Essa coisa do género tem de ser repensada fora dos padrões impostos.

Uma atriz como a Regina, que faz parte da história da Globo, aquilo que tem a dizer é ouvido pela estação ou esse espaço raramente é dado aos atores?
É dado, mas eu não tenho tido muita sorte nesse campo. Talvez tenha a ver com o facto de morar em São Paulo e não ter tido a persistência que seria necessária para poder implantar uma proposta de projeto. Mas vejo colegas meus conseguindo fazer isso. Agora, depois de algumas tentativas, estou mais conformada em ser uma atriz que olha para um projeto de trabalhar com atores. Permanecer, não mais na proposta da dramaturgia, mas na proposta da investigação dos instrumentos do ator.

Está a falar de dirigir atores?
Sim. Na verdade, o ator é a infantaria da obra, é ele que está lá na frente e carrega a bandeira da cara da obra. É ele que faz o jogo da sedução, é ele que amarra o espetador na frente do aparelho. Claro que é preciso uma boa retaguarda, um bom texto, uma boa equipa, mas sem um bom ator, o esforço e investimento dos outros perde-se. Porque quem joga o anzol que agarra o espetador é o ator.

E é possível ensinar a ser esse ator que agarra o espetador?
Ensinar, não. Mas é possível investigar técnicas adequadas para a expressão de cada intenção autoral.

Dedicar-se, cada vez mais, à encenação e à direção de atores significa que, nos próximos anos, vai estar cada vez menos à frente da câmara e cada vez mais atrás?
Hoje posso dizer tranquilamente que tenho mais prazer atrás da câmara, a trabalhar com os atores, do que na frente, interpretando. Interpretar ainda me dá muito prazer, mas como tenho um grau de exigência muito alto – em função de tudo o que já fiz, de alta qualidade, obras que marcaram nas quais participei – hoje tenho mais prazer em ver um ator com quem tenho buscado soluções para uma cena, conseguir chegar lá e dar conta do recado, do que eu mesma estar nessa função. Porque essa função eu conheço, é uma experiência que está bastante realizada para mim.

Isso também tem a ver com o facto de, quando uma mulher chega a determinada fase da vida – e a Regina está há beira dos 70 anos e tem mais de 50 de carreira – o confronto com a imagem torna-se cada vez mais difícil?
Sim, também. É uma profissão em que estamos sempre expostas, o confronto com a imagem é mais doloroso do que noutras profissões. Exige uma blindagem do ego. É preciso prepararmo-nos para enfrentar essa nova imagem que os anos trazem. Mas a verdade é que esse processo não é fácil mas também não é o mais complicado para mim. O mais complicado para mim é encontrar desafios diferentes dos que já foram vividos, é uma certa inquietação que sempre tive e continuo tendo, no sentido de me surpreender com coisas novas e surpreender o público que acompanha o meu trabalho. Não consigo me ver repetindo. É doloroso para mim me repetir e sinto que o público que acompanha o meu trabalho também não merece ficar me vendo repetindo o que já foi feito, só para não sair de cena.

Mas já pensou no dia em que realmente não subirá mais a um palco, o dia em que não entrará mais num plateau para representar, o dia em que não voltará a ouvir os aplausos?
Não tenho mais nenhuma necessidade de aplausos. Agora quero ver as pessoas com quem pesquisei e estudei e investiguei personagens serem aplaudidas. É isso que estou buscando agora, é isso que me dá cada vez mais prazer. No ano passado dirigi duas peças e elas deram-me um prazer inigualável, um prazer que há muito tempo não sentia em cena. É isso que procuro agora, a sensação de pertencimento à arte que elegi, a arte de que gosto, mas indo para outro lugar do palco.

Chegou a fase de repensar o que vai ser a partir de agora?
Já venho repensando isso há uns quatro ou cinco anos e por isso descobri que a direção de ator ou o trabalho com os atores é o que me dá um sentido de pertencimento à arte do teatro e da interpretação, que faz com que não tenha nenhuma sensação de perda se o pano fechar e eu nunca mais pisar em cena.

Não se vai trancar em casa?
Não, pelo contrário. Tenho até um certo alívio, uma sensação de dever cumprido, de ter conseguido tudo o que consegui e ao mesmo tempo poder continuar emocionando as plateias, mas agora de uma forma indireta.

Seria capaz de dirigir a sua filha, Gabriela?
[risos] Sim, com todo o prazer.

Falam muito sobre a profissão?
Depende, se há algum assunto palpitante, sim. Às vezes passamos meses e meses nos encontrando sem falar na profissão, mas se tem um tema na crista da onda, é disso que a gente fala. Como qualquer família.

Mas ela pede-lhe muitas opiniões?
Não! Ela quis trilhar um caminho muito dela.

Mas já pensou muitas vezes que deve ser difícil ser filha da Regina Duarte?
Sim, deve! Aliás, deve, não, é muito difícil ser minha filha. Mas a realidade é esta: sou atriz e tive muito sucesso e ela teve de conviver com esse sucesso e traçar o caminho dela. E tem feito uma trajetória muito feliz.

Como se imagina daqui a dez anos?
Não penso nisso! Nunca pensei! [risos]