Aurea: “Precisava de sair da minha zona de conforto”

“The sweet is never as sweet without the sour”. Estas palavras, que Aurea tem marcadas na pele, nunca lhe fizeram tanto sentido como nos últimos quatro anos. Depois do sucesso esmagador dos dois primeiros álbuns, “Aurea” (2010) e “Soul Notes” (2012), a cantora sentiu que precisava repensar o seu caminho, encerrar capítulos e abrir outros.…

Este novo trabalho, “Restart”, entrou diretamente para o primeiro lugar do top nacional. O facto de ser um registo algo diferente dos dois trabalhos anteriores fez com que se questionasse se seria mais um sucesso?

Vou ser sincera: não pensei se o disco ia vender ou não, pensei apenas na aceitação que teria por parte do público, justamente por estarem habituados a outro tipo de sonoridade. Pensei se iriam gostar, se iriam continuar a acompanhar-me. Estive quatro anos sem lançar um disco, é normal que surjam estas incertezas, ainda mais quando estamos a arriscar coisas novas.

Já conseguiu perceber a reação das pessoas?

Isto ainda é tudo muito fresquinho, mas sim. Sou daquelas pessoas que se dá ao trabalho de ir ler os comentários nas redes sociais e perguntar às pessoas qual é a sua música favorita. Aliás, para mim isto nem é trabalho. Sou curiosa e gosto de saber a opinião das pessoas. E o feedback tem sido muito positivo. Tenho recebido muito carinho. Depois de quatro anos mais recatada não esperava ser tão bem recebida.

Quatro anos dá tempo para imaginar muita coisa…

Sim, passou-me tudo pela cabeça. Até porque a minha cabeça não pára. Mas eu também não parei totalmente, fui dando concertos e aceitei fazer o “The Voice”. Fui sempre tendo contacto com o público. Ainda assim era impossível não pensar que não lançava um trabalho há tanto tempo, será que as pessoas iam gostar de ouvir e se iam identificar comigo? Estou diferente, tenho outra maneira de cantar… Mas também acho que estas dúvidas são normais quando sentimos o peso da responsabilidade. Tal como sinto as borboletas no estômago antes de um concerto. Para mim é muito importante não dececionar o público.

Falou do “The Voice”, programa de talentos em que foi mentora. O que guarda dessa experiência?

Foi um enorme desafio, uma experiência muito intensa, e muito bom em termos de crescimento. Mais uma vez tive de sair da minha zona de conforto e estar à frente de câmaras, que é algo de que sempre tive pânico. Sempre fui muito tímida e reservada e quando via câmaras apontadas para mim ficava sem saber o que fazer ou dizer. Mas atirei-me de cabeça e acho que foi muito bom. Tanto que vou voltar este ano para mais uma edição.

O concerto de apresentação deste novo álbum acontece a 14 de maio, no São Jorge, em Lisboa. Já está a ser preparado?

Claro que sim. Já está a ser tudo tratado, o diretor musical está a trabalhar nos arranjos, já começámos a ensaiar… Estar em cima do palco é o que mais gosto de fazer.

Vai cantar exclusivamente o novo álbum?

Tenho de revisitar alguns temas dos trabalhos antigos, faz parte. Até para mim faz sentido tocá-las. Mas sobretudo vou tocar as novas. Fazer o alinhamento está a dar algum trabalho, porque agora queremos é tocar o disco novo, mas temos de incluir algumas das músicas antigas. Estamos a tentar encontrar o equilíbrio.

Já sentia algum cansaço em relação às músicas antigas?

Sinceramente, não. Há muitas maneiras de fazer espetáculos diferentes. Pode-se mudar o alinhamento, os arranjos, as versões… Além de tudo isto, os concertos são todos diferentes porque os públicos são diferentes. E isso influencia mesmo muito quem está no palco. Acho que as pessoas nem têm noção que a energia do público passa assim tanto para os músicos. Lá em cima sentimos tudo o que vem da plateia. Sugamos essa energia, da mesma maneira que o público também suga a nossa energia. Um concerto é uma partilha constante, por isso é que é tão especial.

O título deste álbum, “Restart”, não deixa grande margem para dúvidas. Era fundamental para si este recomeço, sentia que tinha de recuperar as rédeas da sua própria vida?

Também. Apesar de, ao contrário do que muita gente diz, não acho que tenha acontecido tudo de uma maneira muito rápida, mas antes de uma forma natural. As coisas foram acontecendo. Durante muito tempo preparei-me para lançar o primeiro álbum, estive um ano a cantar nos Templários, em Lisboa. As coisas foram mesmo naturais. Mas agora o que senti foi que precisava de sair da minha zona de conforto e de me distanciar um pouco do que já tinha feito e oferecer algo novo.

Mas sentia-se refém de um estilo musical?

Não sou refém de nada, mas acho que devemos sempre procurar fazer coisas novas. Como em qualquer outra profissão devemos estudar, trabalhar com pessoas novas e aprender com elas. Neste álbum, não quis mudar drasticamente de estilo, mas sim procurar sonoridades um pouco diferentes. Para tal quis ir à raiz da soul music, ou seja, aos EUA. A mudança foi sobretudo ao nível da produção, pois mudei completamente de equipa, desde alguns músicos até aos compositores – o Héber Marques e o Enoque Silva criaram dois temas. E eu finalmente arrisquei-me na composição. Estas pequenas mudanças, todas juntas, notam-se, mas a essência do que sou enquanto artista está lá.

Sentiu necessidade de mostrar que era mais do que a rapariga do “Busy”?

Acho que foi uma evolução, um amadurecimento. Tornou-se natural que me quisesse mostrar de outra forma. As minhas necessidades não são as mesmas de quando lancei o primeiro álbum, o “Aurea”, numa altura em que caí de paraquedas na música.

No texto de apresentação deste novo álbum assume que houve capítulos que encerrou, outros que abriu.

Sim, na minha vida como mulher e na minha vida como cantora também sentia que havia coisas para alterar, para encerrar, para iniciar.

Mas o quê?

Ao nível profissional, a mudança de equipa. Os nossos desejos, as nossas prioridades, começaram a ser diferentes, e tivemos de seguir caminhos diferentes. Foi por isto que mudei toda a equipa, só se manteve a minha banda, que é como se fosse uma família, que quero que se mantenha por muitos anos. Além disto, nestes quatro anos enfrentei a morte de pessoas muito próximas. Foi a primeira vez que tive um contacto muito próximo com a morte.

Quem perdeu?

Perdi o meu avô e perdi uma grande amiga, a Nônô [criança de cinco anos que lutou mais de um ano contra um tumor num rim, contando com o apoio da sociedade civil]. Eram pessoas muito especiais para mim e perdê-las levou-me a pôr muita coisa em causa. Mas estas perdas também foram um despertar para a vida. Percebi que tinha mesmo de resolver algumas coisas no meu caminho, tinha de acordar para a vida.

Estava a ser tomada de assalto por negatividade?

Estava-me a deixar levar pela vida. Quando nos é muito complicado resolver uma situação, quando já há muita coisa envolvida, deixamos andar, empurramos com a barriga. Era isso que me estava a acontecer. O meu pai sempre me disse que tinha de enfrentar os problemas que me aparecem na vida, mas eu sempre tive muitos problemas em fazê-lo. Nestes quatro anos percebi que, por muito que nos custe, temos de enfrentar os problemas.

O facto de ter tido, desde o início, uma legião de fãs, mas os pares nem sempre a terem aceitado bem, também lhe criou alguns fantasmas?

Sinceramente não. Acho que cada um tem o seu lugar na música. Tenho feito um esforço enorme para aprender cada vez mais.

Para colmatar a sua falta de formação em música?

Sim. E quem sabe se um dia não venho mesmo a ter formação. Gostava, por exemplo, de aprender a tocar um instrumento. Venho de uma família muito musical: o meu pai toca guitarra portuguesa, o meu irmão aprendeu a tocar guitarra sozinho. Mas não me preocupo muito com isso. Respeito a música e o trabalho dos outros. E mantenho-me no meu lugar.

Da equipa que fez este álbum, saltam à vista dois nomes: Cindy Blackman Santana e Jack Daley, que trabalham regularmente com alguns dos maiores músicos da atualidade. Como chegou até eles?

O meu manager João Pedro Ruela já tinha trabalhado com a Cindy no “By Request”, do Paulo Gonzo, e ficaram próximos. Quando começámos a falar sobre este álbum, ele sugeriu-me a Cindy. Fui investigar o percurso dela, e do Jack, porque eles trabalharam juntos, e ela já tinha trabalhado com a Joss Stone, que é uma grande influência para mim e ele tinha gravado com a Beyoncé. Enviámos as músicas, ela gostou e aceitou trabalhar comigo. Depois foi conciliar agendas, que foi complicado porque ela estava em tour com o trio dela e com o Lenny Kravitz.

Quanto tempo esteve em Las Vegas?

Por estranho que pareça estive pouco tempo, cerca de uma semana. E mesmo assim gravámos com muita calma. Cheguei lá quase afónica e mesmo assim gravámos tudo sem problemas. Eu dormia no hotel onde era o estúdio, o Studio At the palms. Descia do quarto para o estúdio, dava para ir de pijama. Só saía para a rua à hora de almoço, para arejar as ideias. E depois ficávamos no estúdio até tarde.

Este álbum foi gravado de forma diferente dos anteriores?

Sim, gravámos tudo em simultâneo. Não foi grava a bateria, depois grava o baixo e no fim de tudo grava a voz. Queríamos que o público, ao ouvir o disco, sentisse que estava a ouvir uma banda ao vivo. Foi incrível, mais natural.

No meio de todas as mudanças na sua equipa, há uma parceria que não muda, com o Rui Ribeiro. Foi ele o responsável por se envolver noutras áreas que não apenas a interpretação?

O Rui é perito em tirar-me da minha zona de conforto, em dizer-me que eu consigo e empurrar-me. E preciso que me empurrem para fora da minha zona de conforto. Para gravar a maquete deste disco, cheguei a casa do Rui e ele tinha já as bases instrumentais gravadas e disse-me que queria fazer as coisas de uma maneira diferente: queria que eu gravasse as bases melódicas. Disse-lhe logo “Eu? Não consigo fazer isso!”. Mas ele insistiu. E aconteceu.

E acaba por também assinar uma letra, de “Too Old Too Soon”, algo que no passado rejeitava.

Tinha muito medo, mesmo muito medo. E acho que essas coisas não se devem forçar. Nessa altura, se me pusessem um papel e uma caneta à frente, não ia fazer nada. Tinha defesas, estava bloqueada, não sentia que fosse a altura. Agora senti que era a altura certa. E no próximo quero voltar a tentar.

Percebeu que cantar as suas palavras é muito diferente de cantar as palavras dos outros?

É um bocadinho diferente. Sempre senti que o Rui era tão meu amigo e me conhecia tão bem, que escrevia as minhas experiências como nem eu própria conseguiria. Mas apesar de ele o fazer de forma incrível e de eu querer que ele continue a compor para mim, é diferente quando estou a cantar aquilo que larguei da alma.

O que quis contar neste tema?

Uma experiência de amor que vivi e não resultou, algo que também me aconteceu nestes quatro anos. Fez-me bem falar sobre isso, foi como uma terapia e é algo com que já fiz as pazes. Este álbum um lado de terapia. Soube-me bem deitar cá para fora algumas coisas. Espero que as pessoas percebam que este disco foi gravado com muita emoção.

Nunca pensa como teria sido a sua vida se tivesse ficado no curso de teatro?

Às vezes penso. Sou uma curiosa. De vez em quando penso como seria a minha vida se tivesse ido para direito, como o meu pai queria, ou se tivesse ido para psicologia como eu queria, ou se não tivesse desistido de linguística, se não tivesse ido para Évora, se não tivesse conhecido o Rui…

Mas tem vontade de ter experiências como atriz?

Neste momento sinto-me mesmo muito completa a cantar. Mas se, mais tarde, fizer sentido voltar ao mundo da representação, voltarei.

Cresceu no sul do país. De que forma é que isso influenciou a sua infância?

Nasci em Santiago do Cacém, a minha família mora toda em Alvalade de Sado e aos dois anos mudei-me para o Algarve. Ou seja, cresci entre o Algarve e o Alentejo. Nas férias passava sempre um mês no Alentejo com os meus avós. Não sei como é crescer na grande cidade, mas acho que nós vivemos as coisas com mais tranquilidade. Cresci de forma muito genuína.

E a música esteve sempre presente?

Sim, antes de saber falar já cantarolava. E lá está o meu pai tocava guitarra, o meu irmão também, a minha mãe cantava, o meu tio cantava, o meu avô, tal como o meu pai, pertenceu ao grupo coral… Muitas vezes reuníamos a família e era desde cantares alentejanos a fado ou Elvis Presley. Eram serões maravilhosos.

A família olha para si como aquela que concretizou o sonho de uma carreira musical?

Não sei se eles alguma vez tiveram esse sonho de fazer da música profissão. A minha mãe chegou a dar alguns concertos, só que é tão envergonhada que desistiu. Mesmo em casa só canta se estiver sozinha. Mas sei que a minha família olha para mim com muito carinho e orgulho.

O seu pai já não fala do curso de direito?

Não, não. Mas eu também disse-lhe sempre que para direito não ia. Ele insistia que eu daria uma ótima advogada porque tinha um bom poder de argumentação, mas eu nunca quis.

A verdade é que andou algum tempo sem saber o que fazer da vida.

Sim… Fui para linguística, que foi uma carga de trabalhos para convencer o meu pai a ir para esse curso e em Lisboa. Mas mal comecei as aulas percebi que em Portugal não existia linguística forense, que era o que eu queria. Além de que não gostei muito de viver em Lisboa, senti-me sozinha. Nisto uma amiga avisa-me que vai abrir uma terceira fase de candidaturas para psicologia, na universidade de Évora. Fui ver o currículo, mas vi também o de teatro que ia abrir mais vagas. Fiquei encantada. Tinha voz e canto, corpo e movimento… Acabei por me atirar de cabeça para o curso de teatro, apesar de nem nunca sequer ter feito teatro amador. Felizmente tenho uns pais que me esticam a corda e me apoiam sempre. E no fim do primeiro ano do curso conheci o Rui e tornámo-nos muito amigos, antes sequer de saber que ele já trabalhava em música. Por esta altura já tinha tudo programado: queria trabalhar em teatro musical ou em cinema.

Mas mudou tudo.

Pois. Aprendi a não fazer grandes planos. O Rui estudava música e volta e meia juntávamo-nos com amigos para cantarmos. Um dia, numa das salas onde havia um piano de cauda, ele começou a tocar e eu a cantarolar. Depois disso ele foi para casa, compôs uma música, sem me dizer nada. Uns dias mais tarde perguntou-me se não queria ir a casa dele gravar um tema, só na brincadeira. Lembro-me que até tinha Expresso para o Algarve e acabei por nem conseguir gravar a música até ao fim. Ainda assim ele pegou nesse bocadinho e enviou para a produtora. Eles gostaram e disseram que me queriam conhecer. Aí o Rui teve de me contar tudo. Lembro-me de chegar um dia a Évora, vinda do Algarve, e ele me convidar para beber um café, explicar as coisas e perguntar se eu aceitava ir com ele a Lisboa. Fiquei sem reação. Lá viemos e logo nesse dia perguntaram-me se queria gravar um disco. Fiquei a olhar para eles sem acreditar. Claro que fiquei muito contente, mas tenho os pés muito presos à terra e enquanto as coisas não acontecem mesmo nunca conto com elas.

Não contou a ninguém?

Só aos meus pais. Até porque depois, entre as gravações e as noites em que comecei a cantar nos Templários, acabei por ter de desistir do curso, no último ano. Senti que precisava de vir viver para Lisboa e dedicar-me à musica. O meu pai ainda me pediu para aguentar mais um bocadinho mas senti que o momento era aquele.

Quando começa a gravar o primeiro álbum sentiu-se um pouco peixe fora de água, no sentido em que, apesar de a música ter feito sempre parte da sua vida, nunca a tinha visto de forma profissional?

Eu estava fascinada com aquilo tudo! Queria ver os músicos a tocar, os arranjos, conhecer os sistemas. Senti-me como nunca me tinha sentido na vida. Quando descobri a música encontrei o meu lugarzinho no mundo.

E soube logo que queria cantar soul music?

Antes de gravar o disco fizemos uma primeira maquete com vários géneros musicais para perceber com qual me identificava mais: do jazz, à bossa nova, pop, rock… A última música que o Rui fez para a maquete, só tinha a base instrumental, era o “Busy”. Mal ouvi disse que era aquilo que queria fazer.

Nada a fazia imaginar o sucesso que teve, com salas cheias, primeiro lugar do top, inúmeros prémios?

Pois não, eu era uma desconhecida, cantava em inglês, estávamos em crise… Foi um orgulho enorme receber o reconhecimento que recebi. Mas não tenho de me deslumbrar com isso. Nunca deixei de fazer o que fazia antes.

Como, por exemplo, cantar descalça que é algo que não começou a fazer quando lançou o primeiro álbum, mas que já fazia quando cantava no bar Templários?

Exatamente. Mas entretanto já calcei sapatos em palco! O que sempre quis foi estar confortável. E tornou-se uma imagem de marca, toda a gente começou a falar disso. Mas sim, já me descalçava nos Templários, porque queria estar confortável.

Quando vai na rua já lhe aconteceu receber abordagens mais inusitadas?

Sim, já me pediram em casamento… De resto, como já disse, leio tudo e no início, quando tinha um comentário menos positivo, ia-me muito abaixo. Com isso, sim, tive de aprender a lidar. Antes bastava um comentário negativo para me esquecer de tudo o que de bom tinham dito sobre mim e ficar arrasada.

Quando começa a preparar o segundo álbum sentiu a pressão de ter tido um grande sucesso?

Um bocadinho. As pessoas estavam sempre a perguntar-me quando saía o segundo álbum e se ia ser tão bom como o primeiro. Isso deixava-me logo com muita ansiedade.

Tem falado muito de sair da sua zona de conforto. Isso pode significar que, num próximo trabalho, poderá finalmente ultrapassar o medo e gravar fado, um género que lhe é tão querido mas que nunca gravou?

Adoro fado! Se tiver que acontecer, acontecerá.Mas tenho muito respeito ao fado e acho que eles estão num nível superior. E não sei se deva aventurar-me.