Fátima: mistério da fé

No Santuário, fale baixinho, pedem as placas. Muitos cumprem, muitos prevaricam. Ao nosso lado, um grupo grande com sotaque do norte fala alto a combinar o ponto de encontro de regresso a casa. O sino dobra e o grupo barulhento ao nosso lado parece que dispersa quase em simultâneo. 

Fátima: mistério da fé

São 15h30 de 11 de maio, faltam dois dias para um dos, senão o dia mais importante para a devoção mariana de Nossa Senhora de Fátima, e está a começar a missa celebrada em inglês na capelinha das aparições. Viemos perguntar a estas pessoas o que é a fé – tarefa que julgámos, antecipadamente, que seria mais fácil. Perguntar sim, foi fácil. É até uma pergunta direta, sem artifícios, descomplicada, mas que pôs muita gente a gaguejar e a dizer “não sei” ou a dar-nos respostas tão monossilábicas como “acreditar”, “adorar”, “agradecer”.

Será que a fé é um verbo? Não desistimos. Nem com a chuva que parece ter-se enganado no mês e que anda há uma semana a encharcar peregrinos. Há gente descalça, outros de chinelos, outros apenas com meias ensopadas, a maioria tem ténis calçados. E, apesar do recinto estar longe de ter a capacidade esgotada, há muita gente. (“Os dias principais são mesmo o 12 e o 13”, explica-nos o dono de uma loja, onde nos refugiámos momentaneamente da chuva.) Não é preciso andar muito para ouvirmos vários idiomas. Há espanhol com sotaque da América do Sul, e castelhano aqui do lado. Chinês ou japonês – assumimos que não conseguimos perceber a diferença. Inglês, alemão, francês, uma mini babilónia de visitantes que não estão ali todos por uma questão de fé. Lá chegaremos.

Voltemos à capelinha, o centro nevrálgico da fé – pedimos desculpa pela repetição, mas para além de ser aparentemente difícil de definir também é uma

palavra pouco amiga na hora de arranjar sinónimos – e, por isso, nosso ponto de partida.

“Lord have mercy on us”, responde ao celebrante um senhor idoso de profundos olhos azuis e fato puído, ombros curvados, com um acentuado sotaque britânico. Segundos depois, atende o telemóvel e desata a berrar em francês, sendo

imediatamente repreendido por outro homem que carrega uma série de figuras de cera – das quais destacamos uma cabeça –, e que nos lembram que estamos ao lado do tocheiro. No ano passado, foram queimadas 29 toneladas de velas apenas nos dias 12 e 13 de maio.

Três mulheres queimam três intestinos de cera com ar comovido. Ter fé é crer que queimar aquela cera, que não é propriamente barata, trará os desejos

pedidos? Ou a fé não será pedir? Ter fé é prometer?

“Fé é sacrifício”, diz-nos Rosa Loureiro, 27 anos, com as calças de fato de treino encharcadas. Caminhou pela quarta vez entre Moimenta da Beira e Fátima.“Porquê sacrifício?”, indagamos. “Porque a Senhora também me ajuda cada vez que lhe peço. Por isso o meu sacrifício é uma forma de agradecimento e de retribuição. E este ano foi muito duro!”, diz. Ao lado desta Rosa estava a cunhada, outra Rosa, desta vez Pinto, que acabara de percorrer de joelhos o corredor até à capelinha das aparições, rodeada dos quatro filhos pequenos e do marido. Tem 31 anos e veio de Marco de Canaveses. Não quis ser fotografada – nem a cunhada ou os filhos a conseguiram persuadir –, mas tentou-nos explicar o que era a fé. “É uma coisa que se sente, não sei dizer melhor. Mas quando venho a Fátima a pé sinto mais fé do que quando venho de carro. É diferente, é estranho”.

Estas peregrinas já estavam com o modo ‘dever cumprido’ ligado, mas os muitos grupos que foram chegando durante a tarde e colorindo o espaço mostravam diferentes reações à chegada. Houve os que chegaram em amena cavaqueira, outros ao telemóvel, outros a cantar, principalmente o hino do 13 de maio. Muitos chegaram a chorar. Outros, num silêncio profundo e comovido, tão comovido que queremos falar-lhes para nos explicarem porque choram e não conseguimos: sentimos que qualquer pergunta vai ser uma devassa absoluta daquele momento tão privado em espaço público.

Os peregrinos vão-se misturando com as equipas de técnicos que preparam o espaço para a procissão das velas, na noite de 12 de maio. Há carrinhas a passar dentro do espaço, holofotes a serem cobertos por plásticos, andaimes que se montam e muitas grades aglomeram-se em pequenos grupos. Na noite de 12 para 13, é costume que o número de participantes supere as 200 mil pessoas. No ano passado, “mais de seis milhões e 678 mil pessoas participaram nas 9948 celebrações na Cova da Iria”, diz o Departamento de Comunicação do Santuário em comunicado. Espera-se que a vinda de um dos Papas mais queridos pelos fiéis, Francisco, às comemorações do centenário das aparições celebrado no próximo ano, traga um número recorde de visitantes.

Não se pode prever os números do futuro, mas podem analisar-se dados do passado. E os números continuam a crescer nos últimos anos, pelo que as preparações continuam. Dentro da basílica de Nossa Senhora do Rosário – a mais antiga –, compõe-se os altares com flores brancas. Aqui, os visitantes concentram-se nos transeptos da igreja: à direita, está o túmulo do pastorinho Francisco. Do lado oposto, os de Lúcia e Francisca, pelo que esta igreja é um dos locais de principal devoção, logo a seguir à capelinha.

No topo oposto a nova basílica. A da Santíssima Trindade, inaugurada fará para o ano dez anos, a 13 de outubro. Lá dentro, um grupo de escuteiros abraça-se em frente ao altar. Mal dá para imaginar que foi neste espaço – adornado de um discutível dourado mas onde o clima convida realmente ao silêncio – que um homem de 68 anos se suicidou logo no início do ano. Falta de fé?

Ao lado da igreja, a estátua de João Paulo ll, sempre rodeada de fiéis e de flores. Aidil Carvalho, 74 anos, faz parte do grupo de 28 pessoas de Cabo Verde que encontramos a cantar para o Papa. Há gente das ilhas do Fogo, do Maio e de Santo Antão. Aidil faz uma festinha na estátua, outros dão beijinhos. Vive em Santiago e é a quinta vez que aqui vem em peregrinação. “Chegámos a Lisboa na segunda-feira e a Fátima hoje de manhã (quarta-feira). Vamos ficar até dia 14”.

Adora vir a Fátima. “A gente vem cá e fica unida. Dá para sentir paz, serenidade, pode-se ficar caladinho a rezar ou não. Dá uma alegria que nem sei de onde vem”. Pedimos-lhe para explicar esta alegria. “É uma alegria espiritual, nem sei bem”. “Para si, isso é fé?”, queremos saber. “Não, fé não é bem isso. A fé é uma coisa que a gente não explica. Por exemplo, eu não vi nossa Senhora aparecer aqui mas eu acredito. Fé é acreditar sem ver, sem provas. É isso, é acreditar no que se sente, não é acreditar só no que se vê”. Queremos saber se a fé que Aidil sente é sempre igual. A resposta chega depois de uma gargalhada. “Não, a fé às vezes fica bem pequeninha, quando estamos lá em baixo. Outras vezes cresce. É assim”.

Nesta tarde, há muitos grupos com feições das mais diversas partes do mundo. Mas os motivos da vinda são diversos. O casal japonês Ando e Asuka Takaouii, ele de 31 anos, ela de 33, está pela primeira vez em Portugal e veio pela dimensão turística, e não espiritual, do santuário. São de Nagoya e, através de um tradutor que os acompanhava, falam-nos do motivo da visita. “Eles escolheram vir aqui porque estavam interessados no tema, não são católicos nem seguem nenhuma outra religião”. Pedimos ao intermediário que lhes pergunte o que é a fé, recebemos um encolher de ombros imediato à colocação da pergunta em japonês. “Dizem que não sabem, mas estão impressionados com o que aqui encontraram, principalmente com a fé das pessoas que percorrem o espaço de joelhos”, responde-nos o guia. “Impressionados no bom ou mau sentido?”. Novo momento de tradução. “No bom, estão muito impressionados no bom sentido”. Despedem-se com uma tradicional vénia.

Fátima pode ser visitada por muitos estrangeiros, mas “os peregrinos de nacionalidade portuguesa continuam a ser a maioria dos visitantes nas grandes peregrinações de maio e outubro”, adianta o Departamento de Comunicação do Santuário à agência Ecclesia. Depois dos portugueses, nos números do ano passado seguem-se os espanhóis, os italianos e os polacos.

Os principais clientes do comércio também continuam a ser portugueses, dizem-nos os lojistas. E se dentro do santuário encontrámos visitantes de todos os tipos ­ – desde gente profundamente comovida, passando pelos entediados atrás dos balcões, apenas nos deparámos com católicos.

“Nem fazia sentido estar aqui se assim não fosse”, diz-nos Henrique Silva, 49 anos. Atrás do balcão da loja número 9 da Praceta de Santo António –, uma espécie de mercado com 45 pequenas lojas idênticas, não é costume encontrá-lo por lá. “Estou aqui apenas nestes dias de maior movimento para ajudar os meus pais”, explica. Apesar de se dizer católico, diz que a fé “é uma questão complicada”. Depois de uns segundos, define uma resposta. “Penso que, acima de tudo, é acreditar em algo. É acreditar que existe algo”. “E esse algo, o que é?”. “Não sei, mas talvez a minha avó soubesse”. Desta feita, somos nós que não percebemos a resposta, que carecia claramente de esclarecimentos que chegaram de pronto, como se tivesse estado à espera desde o início da conversa para nos contar esta história. “A minha avó, Teresa de Jesus, era amiga de infância da Lúcia. Chegou a ir falar com ela, já adultas, ao Carmelo de Coimbra porque a Lúcia pediu. Eram miúdas, andavam todos aqui pelos campos com as ovelhas, e claro que depois do milagre se separaram, houve um corte e seguiram caminhos completamente opostos. Mas foram sempre amigas. Ela morreu há oito anos, teria agora talvez cem anos, não sei bem”.

Pedimos mais lembranças familiares sobre a mais conhecida entre os três videntes. “Lembro-me dela contar que, na altura, a Lúcia era uma criança igual às outras, como seria normal. Depois, em crescida, tanto a minha avó, que nasceu em Aljustrel, como o avô, deram muitos testemunhos para o livro do Padre Luís Kondor, que foi o principal impulsionador da mensagem de Fátima”.

Não resistimos. “A sua avó acreditava no milagre?”. “Sim. Depois disso foi tudo muito rápido, este local era só mato, imagine-se. Fátima teve uma progressão muito rápida”.

Deixamos Henrique a pensar na probabilidade de encontrar um neto de uma amiga de infância da pastorinha que, há cem anos, se tornou num ícone da devoção mariana, muito embora ainda não tenha sido ele a dar uma resposta inédita sobre a fé.

Céu Antunes, 61 anos, espreita do lado oposto da praceta, onde ocupa a lojinha número 43. Está aqui há mais de 40 anos, desde que há comércio na praceta. Que é o mesmo que dizer: desde que há praceta. Queixa-se do negócio, mas larga as palavras com um sorriso. “Desde há três anos que está fraquinho. No início também foi assim, pouca gente a comprar. Depois melhorou e agora as pessoas vêm mas não têm dinheiro”. Vende essencialmente medalhinhas e terços. “Isto não é um bem essencial, as pessoas compram por lembrança e sempre as coisas mais baratas”. Sobre a faixa etária dos clientes, Céu diz que vende apenas a pessoas mais idosas. “Os mais jovens não ligam nada!”.

Continua a falar com uma voz calma e doce, com o mesmo sorriso a despontar-lhe nos cantos da boca, mesmo quando se diz cansada. “Sinto-me cansada da cabeça. Fecho no inverno, mas mesmo assim estar aqui tantas horas sozinha, à espera de alguém que não prometeu vir, à espera de ter clientes, cansa. Por vezes temos sorte de aparecer alguém, outras passam-se horas. A chuva também não ajuda nada, foi um inverno muito longo”.

A sorridente Céu (que, no fim, quase não se riu para a fotografia) ouve bem, da sua banquinha, as Avé Marias que se elevam do santuário, ali a dois passos. E nem a rotina de estar ali todos os dias lhe quebra o encanto que sente pelo espaço. “Acho que fui a pessoa a nascer mais perto do Santuário”, confidencia. “É que nasci ao pé do Paulo VI!”. Nestes quarenta anos, já viu três papas: Paulo VI, João Paulo ll, Bento XVI. Daqui a um ano, espera ver o quarto: Francisco. “Dizem que haverá três vezes mais peregrinos. Vamos ver. Mas não acredita que os hotéis já estejam todos esgotados. “Isso é conversa deles. Mas não acho que digam isso para depois levantarem os preços, acho que é mesmo porque não querem aceitar reservas com tanta antecedência e depois as pessoas não aparecerem”.

Católica, vai à missa uma vez por semana ou no santuário ou na igreja da freguesia de Fátima.

Tantas caras devotas vê de ano a ano, tantos turistas, um posto de trabalho quase geograficamente incrustado no santuário e, finalmente, alguém que pouco hesita quando lhe perguntamos o que é a fé. “Sabe, estive a pensar nisso hoje. É que, por acaso, de manhã fui à capelinha das aparições e vi chegar um grupo de peregrinos. Estavam todos muito emocionados. Homens, mulheres, todos choravam. Aquela imagem marcou-me, quando voltei para aqui até disse a uma colega: ‘Já viste, nós que estamos aqui tão perto não sabemos o que aquilo é!’. Até posso achar que tenho fé, mas acho que aquelas pessoas devem ter mais do que eu, não sei. Olhe, não sei o que é a fé”. Mistério. Da fé.