Moda no hospital psiquiátrico. Uma passerelle para a cura

Um ateliê de costura e artesanato no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa organizou esta semana um desfile de moda verão. As peças são feitas pelos doentes e pelas monitoras da valência de terapia ocupacional. Alguns até aceitaram desfilar e passaram a fazer abdominais e a correr para ficar em forma. No pavilhão 32 do antigo…

Moda no hospital psiquiátrico. Uma passerelle para a cura

Joaquina calça uns sapatos pretos de verniz, com um atilho e um salto  razoável. “Não os punha desde o casamento da afilhada”, desabafa. Quando foi  isso? Há 50 anos, sorri. São os últimos preparativos para o desfile de Moda Verão do ateliê de artesanato e costura Ar’Cos do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. Joaquina tem 85 quase 86 anos, é a mais velha na passerelle. Perdeu o marido há nove anos, um luto difícil que a deixou com uma depressão profunda. Só agora começa aliviar o preto. Traz umas calças com uns laivos de branco, tem o rosto leve. Para o desfile leva uma camisola tricotada no ateliê, uma flor de croché no cabelo. Uma saia preta, porque havia, acrescenta logo. “Se não até punha outra coisa.”

Há uns tempos não a convenciam mas esse é também o trabalho do ateliê, uma das respostas de terapia ocupacional do centro hospitalar psiquiátrico que resultou da fusão do antigo Júlio de Matos com diferentes serviços de saúde mental na zona de Lisboa. Dão resposta aos moradores da cidade mas também aos que vêm dos subúrbios. Os doentes chegam quando já estão compensados, mesmo que continuem internados no hospital. Em alguns casos, vivem em residências autónomas onde se prepara a reintegração na sociedade. Outros vêm como utentes externos, só passar o dia.

O ateliê funciona todos os dias das 10 às 12. Júlia coordena a parte de artesanato e Regina a de costura. Odete é a terapeuta ocupacional. Os desfiles, que começaram a fazer há três anos, são um dos pontos altos do ano e este ano decidiram avançar com uma edição estival, que aconteceu na sexta-feira. Numa altura em que se fala tanto do lado terapêutico do regresso à máquina de costura e às agulhas de tricô, aqui o sentido é literal.

Razões para mudar

Os preparativos do desfile começaram há mês e meio. Na sala do ateliê, no antigo pavilhão 32 do Júlio de Matos onde em tempos havia uma lavandaria para a roupa das centenas de doentes que viviam no hospital, há um ambiente calmo. Trocam-se uns dedos de conversa mas a concentração para acabar as últimas peças é total. Fazem-se rendas, tricôs, juntam-se peças diferentes, refazem-se outras. Cada utente tem uma ou duas peças para mostrar, trabalhos minuciosos que ajudam a ir distraindo a cabeça. “O nosso objetivo é encontrar uma atividade que dê sentido à vida da pessoa e que de certa forma a faça ter rotinas”, explica Odete Gomes, coordenadora da unidade de terapia ocupacional do centro hospitalar. Para alguns utentes, é só uma forma de sair de casa e estar ocupado. Para outros, acaba por abrir perspetivas de futuro. Uma utente passou por ali depois de um episódio grave de doença mental. Começou aos poucos a interessar-se e acabou por fazer uma formação em costura e engomadoria – o centro hospitalar tem uma unidade de formação profissional apoiada pela Comissão Europeia com módulos nesta área mas também informática. Conseguiu um estágio numa loja de confeções para crianças e hoje está a trabalhar e até está a fazer um curso mais aprofundado de corte. “Em dois anos a vida dela mudou radicalmente. Não tenho dúvidas de que se tivesse tido alta e tivesse ido simplesmente para casa teria tido um risco maior de ter uma recaída e vir parar outra vez ao hospital.”

Melhorar a autoestima

Se é certo que nem todos vão fazer da moda profissão, a organização de um desfile acaba por ser um bónus, faz disparar os níveis de motivação de alguns utentes. Nas últimas semanas houve quem passasse a fazer abdominais ou a correr a ir correr para o estádio universitário de Lisboa. Houve perguntas sobre depilações, sobre arranjos no cabelo. “Temos pessoas que nunca foram a um cabeleireiro, tudo isto traz uma animação diferente”, conta Júlia. É o caso de Florinda, 64 anos. Pela primeira vez na vida aceitou meter-se num desfile, nunca tinha sequer imaginado tal coisa. “Gostar não gosto mas tem de ser”, sorri. “O tempo dos sonhos já passou, era trabalhar mas não posso. Mas tem de se ir para a frente”. Uma depressão depois de uma recaída de cancro deixou-a em baixo. Ouve mal desde pequena e a doença deixou-a com medo de tudo, de sair, de fazer coisas. Enclausurou-se até chegar ao limite. Demorou até acertar com a dose de medicação e de há três meses para cá vai começando aos poucos a reorganizar a vida. A novidade deixa-a um pouco nervosa. Nunca se tinha maquilhado, nunca tinha posto sequer um bocado de bâton, nem no dia em que casou. Quando nos últimos preparativos, a jeito de ensaio, Júlia lhe passa um pincel pelos lábios sorri com vergonha. Mas sorri.

O diagnóstico fica lá fora

No ateliê não se fala de doenças. “Não nos cingimos ao diagnóstico. Claro que sabemos quais são, mas aqui importa o que as pessoas são capazes de fazer”, resume Odete. Há casos de depressão, esquizofrenia, dependência de drogas que alimentou psicoses. Comprimidos, álcool. “Tentei-me matar duas vezes”, sussurra-nos uma doente, num misto de culpa e arrependimento, com uma vontade de não chegar nunca a esse ponto. Sentia-se a sobrecarregar a família. Ali a doença não é para expor, é para ultrapassar ou para integrar numa vida que seja o mais normal possível. E melhor do que era, de preferência.

Firmina, de 38 anos, deu corpo ao cartaz do desfile. Esqueceu-se da data e cortou o cabelo rente, o que lhe dá ainda um ar mais esguio. Quando tinha 20 anos trabalhou como modelo, chegou a desfilar para Ana Salazar. A mãe pagou-lhe um curso de manequim na Elite Model Look. Mas depois a vida deu uma volta. Perdeu o namorado na ponte 25 de Abril, o corpo nunca foi encontrado. Entrou numa espiral complicada que a levou muitas vezes ao hospital e passou os últimos anos aos altos e baixos. Maquilhada para o desfile aparece com outra autoestima. E isso dá força. É das que começou a tentar perder peso para ficar melhor nas roupas que ajudou a tricotar, lembrando-se dos ensinamentos da avó que tinham ficado bem lá atrás na vida.

Dar valor ao trabalho

A maioria das utentes do Ar’Cos são mulheres. Ser uma arte que muitas dominam, até pela idade, faz com que tudo seja natural. Mas o investimento vai muito além de fazer umas coisinhas para passar o tempo. As monitoras desafiam os participantes com modelos diferentes, com apliques de artesanato. De um cachecol do chinês faz-se um bolero. Mete-se um aplique de croché numa saia antiga e fica logo um modelo de diferente. De uma capulana faz-se uma túnica. De um sari faz-se um três em um: uma peça que dá para usar como saia, calça ou camisola, explicam-nos. Tudo feito pelos utentes ou com ajuda deles.

E depois há bijuteria de autor. Aqui quis uma coincidência que houvesse uma ajuda quase profissional. António, de 35 anos, é o único homem do grupo. Está a recuperar de uma depressão e quando descobriu o fórum decidiu juntar o útil ao agradável. É criador na área da joalharia e há um ano que todas as manhãs participa no atelier, para ajudar outros e ser ajudado. “Acabo por também ter ideias para o meu trabalho”, diz.

No desfile todas as peças são colocadas à venda e a oferta repete-se na altura do Natal, em que os presépios do ateliê também são bastante cobiçados pelos diferentes ministérios para ofertas. No caso da roupa, há uma política de custo justo: parte da receita, depois de se pagar os materiais, reverte para autora. E os preços não são muito altos mas também não são uma pechincha. “São peças únicas e feitas com cuidado. Lá porque é feito aqui não te de ser, como se diz, ao preço da uva mijona”, diz Odete. Vai-se lá pela concorrência: “quanto custaram as suas calças na Zara?”, perguntam a Sofia, responsável pela comunicação do centro hospitalar que também participou no desfile como modelo com um modelo feito pelas utentes. Tira-se um ou dois euros ao preço de marca e está feito.

Vencer o estigma

Apesar de o espaço passar bem por um qualquer ateliê de costura no meio da cidade, muitos admitem que não contam lá fora onde vão passar algumas manhãs da semana. Joaquina não o diz às vizinhas: “ainda há o estigma de ser um sítio de malucos.” Odete reconhece que ainda há muito a fazer e por vezes aconselha os utentes que passam pela terapia ocupacional a simplesmente o omitirem. Quem trabalha ali sente na pele como o estigma pode ser injusto. “Há pessoas com muito mais cabeça aqui do que lá fora”, diz Júlia. Também há os casos complicados: as manhãs das quartas-feiras são dedicados aos utentes mais demenciados, mas a monitora sublinha que mesmo aí é possível intervir. “Aqui não há obrigações. Fazem o que conseguem fazer, seja recortar revistas, fazer umas florinhas de papel, ajudar a varrer o chão se for caso disso. Se há dias em que não lhes apetece fazer nada, ficamos a ouvir música. Claro que há pessoas de quem não conseguimos tirar nada, mas muitas conseguimos alguma coisa.”

Mais que não seja, ajudam a espairecer. Cristina, de 45 anos, frequenta o ateliê há um ano. “Tem ajudado um bocadinho”, diz. Preparou um lenço de croché para se usar na cabeça e está a fazer uma camisola. Está de baixa com uma depressão crónica. Há um mês o marido teve um AVC, o que veio dificultar bastante as coisas, mas sente que tem de se agarrar à vida, procurar ter ânimo. Aparece duas vezes por semana e vai costurando aos poucos o otimismo.

Mostrar que é possível dar a volta

Edna veste a túnica de capulana. Fica-lhe bem. Quanto teve alta começou a fazer a formação profissional em costura e engomadoria. As monitoras acreditam que poderá ser mais um caso de sucesso da escola do centro hospitalar, se não houver distrações com a medicação, reparam. Edna acena que sim. Tem 32 anos, deixou de estudar no 9.º ano por problemas familiares e doença mental descompensada. Agora que as coisas estão mais controladas, tem conseguido dar alguns passos em frente. Está a viver numa residência e vai ganhando alguma coisa a fazer bainhas e outros trabalhos que a formação que está a ter no centro hospitalar já lhe permite aceitar, muitas vezes partilhados entre conhecidos e funcionários do hospital. “Não podemos dizer que a nossa intenção neste espaço e noutros da terapia ocupacional é tratar, é complementar. As pessoas têm de estar de alguma forma compensadas. Mas sem este lado dos tratamentos de certeza que teríamos muito mais reinternamentos, muito mais consumo de medicamentos.”

Edna nunca pensou seguir carreira na moda, mas desfilar sim. “Quando era pequena lembro-me de ver os desfiles e de pensar que um dia havia de ser manequim.” Desta vez o dia chegou mas a família e alguns amigos não acreditaram. Também para ter como lhes mostrar, posa sorridente para a foto. Não acha que o futuro passe pela passerelle, mas queria tirar um curso de moda mais avançado e já andou a ver os preços na escola Modatex, por enquanto fora de alcance. Se para alguns o tempo dos sonhos passou, Edna sabe hoje que tem a vida pela frente.