Abel Salazar: o homem que era feito de mil homens

Abel Salazar era médico, cientista, professor, pedagogo, pintor, escritor, filósofo, artista, militante pela liberdade. Foi um verdadeiro homem do renascimento que atravessou como um cometa uma época sombria. Morreu com 57 anos, sempre preocupado com a juventude do mundo

Correspondência de Abílio Mendes com Abel Salazar”, de Jaime Mendes, é um livro precioso naquilo que revela de uma época, e na forma que nos permite conhecer melhor homens que marcaram gerações, apesar do silêncio e da obscuridade da ditadura. Abel Salazar foi médico, professor, artista e homem de cultura e um dos maiores intelectuais portugueses da sua época. “Homens como estes morrem sempre cedo demais. No momento em que o seu pensamento atinge a plenitude, as suas vidas esfumam-se. Quando ainda têm uma infinidade de coisas a ver e a dizer, os olhos e a boca fecham-se. A única compensação que existe para este destino é a continuação pelas gerações mais novas a quem transmitem o ‘facho’”, é assim que o autor Jaime Mendes inicia o texto que resgata um conjunto de cartas entre o seu pai Abílio Mendes e Abel Salazar. Estas missivas, datadas de 1935 e 1936, entre um estudante de medicina e dirigente estudantil e o reputado mestre, permitem-nos sentir uma época e perceber melhor aqueles tempos. “Estas cartas vêm esclarecer, numa fase conturbada da sua vida académica, algumas facetas do seu caráter, como o amor à juventude e o entusiasmo n educação e formação, quase encarada como uma missão e um dever para com as gerações mais novas. Não menos importante, mostram o amor à liberdade e à democracia, assim como o relato da sua angústia perante a retaliação que lhe é feita proibindo-o de qualquer contacto com o meio académico”, alerta o autor. Numa das cartas, que constam do livro, Abel Salazar conta a Abílio Mendes que pediu para frequentar a biblioteca da Faculdade de Medicina, tendo sido proibido terminantemente de o fazer, por despacho de um ministro de um outro Salazar, António Oliveira de seu nome: “A separação de serviço do Professor Abel Salazar já determinada pelos inconvenientes da sua atuação política e social sobre a população escolar. Nestas condições não é de permitir que frequente os laboratórios e mais dependências universitárias”. O professor conta em carta a Abilio Mendes o ridículo das sucessivas proibições, algumas delas com justificações e receios absolutamente fantasiosas: “por outro lado, como me não me deixaram trabalhar numa litografia, sob o pretexto que aí estou organizando não sei que fantástico soviet litográfico, resolvi fazer dois cursos técnicos de histologia e citologia”, cursos esses que as autoridades também vão proibir.

Abel Salazar é expulso do ensino, por despacho de Oliveira Salazar, juntamente com outros nomes prestigiados da universidade portuguesa, cujo o único pecado era prezarem a liberdade e oporem-se à ditadura fascista. Nessa fornada a academia portuguesa é privada de pessoas como Aurélio Quintanilha, Rodrigues Lapa, Álvaro Lapa, General Norton de Matos, Sílvio Lima, entre outros.

Apesar de ser corrido da universidade, com outros 33 professores, continuou a publicar trabalhos científicos, com grande impacto no estrangeiro, dada a sua qualidade científica impar.

Abel Salazar para além de cientista notável, foi pedagogo, artista, prosador, crítico e filósofo, um autêntico homem do renascimento, que quis o azar viver em tempos negros de ditadura. Um dos aspetos interessantes deste livro de Jaime Mendes é a recolha e publicação, para além da correspondência, de um conjunto de artigos de Abel Salazar e também de Abílio Mendes. Nesses artigo se percebe, à semelhança de Bento de Jesus Caraça, a preocupação das maiores figuras da intelectualidade portuguesa em conseguirem chegar às pessoas e envolverem o povo na discussão e fruição daquilo que mais avançado o conhecimento humano tinha à época.

O seu afastamento do ensino leva-o a dedicar mais tempo à pintura. Em 1938, um grupo de amigos reúne a sua vasta obra e expõe-na na Sociedade Nacional de Belas Artes. As críticas nos jornais são-lhe altamente favoráveis. Artur Portela [pai do também jornalista Artur Portela Filho] apelida-o no “Diário de Lisboa” de “génio”, “O Diabo”, jornal que reunia os intelectuais que se opunham ao regime, descreve o homem: “Abel Salazar nosso eminente colaborador, é uma das figuras de maior relevo como cientista. É-o igualmente como escritor. É-o ainda como artista plástico. Para encontrar um homem que parece feito de pedaços de vários homens, todos notáveis, somos forçados a andar para traz nos tempo e recordar personalidades ricas, riquíssimas, geniais como houve algumas há quinhentos anos”.

Abel Salazar morreu em 29 de dezembro de 1946, em Lisboa, tinha apenas 57 anos.

A “Correspondência de Abílio Mendes com Abel Salazar”, de Jaime Mendes, permite-nos perceber melhor a dimensão humana do homem, e convoca à nossa memória, não só o mestre, como o seu discípulo Abílio Mendes, médico e antifascista, com uma carreira e obra notável, nomeadamente na formação de várias gerações de jovens médicos. Entre várias coisas, há um traço comum na vida destes dois homens, para além do apego à liberdade, a importância que davam à formação da juventude, ou da “mocidade”, como Abel Salazar escrevia.