Caminho de Santiago. Seis dias de mochila às costas e coração nos pés

Na cabeça tínhamos uma meta: uma semana para ir de Ponte de Lima a Santiago de Compostela. Com as férias marcadas, a mochila às costas e os pés bem forrados, os (vários) passos seguintes são comandados pela setas amarelas que ditam o caminho a seguir. Se a pica inicial encurtou o caminho para seis dias,…

Como minhota de terra a fazer fronteira com Espanha, um domingo só era domingo com uma ida à feira de Tui, não havia data especial que não fosse comemorada com uma mariscada em Vigo e o Natal era sempre mais recheado depois de uma ida ao El Corte Ingles, de onde vinha de bolsos cheios de Werther’s.

Mas ser minhota de terra a fazer fronteira com Espanha é também crescer com as histórias de Santiago, até porque a Galiza não se faz sem esta espécie de meca onde todos querem ir, seja em quatro rodas ou de mochila às costas. A vontade de não ser apenas ouvinte das histórias contadas em almoços de família, por quem até de cavalo ou bicicleta já se aventurou foi sempre crescendo, acompanhada de um adiar constante, umas vezes por falta de companhia, outras por falta de tempo livre e quase sempre por falta coragem. Estes três ingredientes-chave juntaram-se durante um mês de Maio, para um arranque marcado na ressaca do dia da criança.

Com a possibilidade de fazer check na disponibilidade, na vontade e na companhia – que já vem de outras maratonas – faltava só encher a mochila, quando “encher” é a palavra proibida quando se fala em andar com quilos às costas.

Pensos higiénicos para almofadar os pés, agulhas e linha para as bolhas, vaselina para evitar que as bolhas magoem. As mezinhas são como as opiniões, cada um tem a sua e todos fazem questão de dizer que a sua é que é a mais acertada. Optei pela vaselina nos pés bem forrados de meias sem costuras, protetor solar nos braços, linha e agulha na mala (e de onde nunca chegaram a sair) e o resto, o resto entrega p’ra Santiago.

Ponte de Lima – Rubiães

O dia começou com uma boleia madrugadora (obrigada mãe!) até ao albergue de Ponte de Lima, onde a Pink – podia estar aqui a engasgar-me todas as vezes que a tivesse que tratar por Catarina, e para esforço já basta o físico – esperava depois do avanço de um dia no caminho que começou uma etapa antes, em Barcelos.

Às 6h45 dá-se o arranque, ainda falador, típico de quem está a começar. Há histórias para contar, novidades das férias, cusquices e dicas de quem já está na estrada há um dia. Pelo meio alguns “bons dias”, ainda tímidos  dados aos caminhantes igualmente madrugadores. Tudo parecia perfeito, até a temperatura.

Mas chegaram as nove da manhã e com ela uns quase 30 graus a bater em cheio na etapa de maiores subidas e descidas de todo o caminho. Mesmo assim, em quatro horas estávamos no destino, que rapidamente se transformou num mero ponto de passagem.

Olhando em volta, Rubiães tem um albergue, um – arrisco até em dois – cafés, uma igreja e verde, muito verde. Depois de um power coffee e de uma dose de proteína, pareceu-nos mais sensato juntar 17 quilómetros aos 17 já feitos e avançar até Valença.

Apesar do risco, o saldo é positivo: zero bolhas, vagas no albergue e um Intermarché aberto para ajudar a fintar os “menus de peregrino” que piscam em cada montra da vila.

Valença – Redondela

Ora, se os primeiros 35 se fizeram com a pica de principiante, os 30 quilómetros previstos para hoje pareciam tarefa impossível mal os pés saíram do saco-cama e pousaram no chão. Mas não há nada como ver o sol nascer entre as muralhas que guardam Valença para fazer esquecer as dores.

A ordem das setas direcionam-nos para a ponte internacional e em menos de cinco minutos, quando paramos para um café, já nos perguntam: “con leche?”. Expresso, por favor, e isto porque ainda é muito cedo para aproveitar as tapas que a passagem da fronteira para Tui oferece e o calor que já se sente não permite ir muito além de fruta e barrinhas até à hora de almoço.

A passagem por Porriño marca a metade do caminho e o foco está agora direcionado em chegar a Redondela. “Vamos só ver como é o percurso”, sugiro eu, de mapa na mão. Já a minha avó dizia que a ignorância, às vezes, é uma virtude. “Três quilómetros sempre a subir e seis a descer”. É ligar o piloto automático e chegar ainda a tempo de aquecer com o sol de fim de tarde que bate nas dezenas de esplanadas que enchem o centro desta vila.

Redondela – Pontevedra

Ok, os 60 e muitos quilómetros dos últimos dias começam a sentir-se em zonas que não julgávamos ser possível doer. O ombro adormece com o peso da mochila, os gémeos doem a descer e as canelas a subir. Mas os pés ainda sem bolhas são um respirar de alívio para uma jornada que se vislumbra mais tranquila. Afinal, o que são 18,2 km para quem tem feito mais de 30 por dia? Dá até para aproveitar as alternativas à beira-rio ou parar para um café mais prolongado numa casa particular transformada numa espécie de estação de serviço para quem passa e, tendo em conta o cachecol da entrada, mais convidativa ainda se for adepto do Benfica.

O caminho mais curto dá direito a chegar a Pontevedra a tempo de alinhar na fila de peregrinos que espera pelas 13 horas para poder entrar no albergue e cumprir o ritual: banho quente, furar bolhas, calçar chinelos e conhecer a cidade.

Estar tão perto de Portugal mas uma hora frente dá a vantagem da luz do dia deixar que o dia se prolongue até que sejam os lhos a cair de sono. Prestes a trocar a sala de convívio pelo conforto de um beliche num quarto dividido com 30 pessoas, ouço um sotaque familiar. “És servida?”, pergunta Abel, de queijo da serra na mão. Entre uma tosta e um cálice de vinho do Porto, ficamos a saber que este empresário largou tudo em 2008 para abrir um albergue de peregrinos no Porto. Desde aí já fez o caminho 38 vezes e viu o seu espaço crescer de três hóspedes no primeiro ano para quase 800 em 2015. “E está a um quilometro do caminho, sem setas amarelas a indicar o desvio”. Como é que isso é possível?. “São coisas do caminho”. Assentimos com a cabeça, com jeitos de quem já começa a perceber o porquê desta frase ser tantas vezes repetida entre peregrinos.

Pontevedra – Caldas de Reyes

Ao fim de uns dias percebemos que a Galiza não é o melhor lugar para começar a adotar bons hábitos de descanso. Se às 22 horas, a luz do dia não convida a entrar num quarto já meio adormecido, acordar às 6 da manhã é sinónimo de começar a caminhar ainda de noite. “Mas hoje é curto” – 21,5 km – “e plano”, convencemo-nos mentalmente, enquanto desfrutamos de uma laranja, uma sandes de queijo e um café, ao pé de profissionais cujo pequeno-almoço passar por omeletes de seis ovos ou pratos cheios de bolonhesa. É de força que falamos e os calejados pelo caminho saberão de onde ela vem.

O caminho debaixo de um céu nublado tornar-se de facto, mais curto, principalmente quando feito rodeado de outros peregrinos que, mesmo sem combinar, se acabam por encontrar à porta do próximo albergue. Os sorrisos já são cúmplices e imaginar as suas histórias é passatempo de encher um serão. No intervalo desta novela, ainda há tempo para pôr os pés em água quente nos conhecidos tanques deste pueblo. Mesmo sem palavras, quase que consigo ouvir um obrigada a cada mergulho nestas águas a 40 graus.

Caldas de Reyes – Padrón

A etapa mais fácil em território espanhol permite – na loucura – ficar na cama até às 6h30. Só o medo que a previsão de chuva dada pela aplicação de meteorologia do iPhone se concretize obriga a acelerar o passo.O caminho de hoje é verde em esplendor e, para quem é do Minho, é como se ainda estivesse a apreciar a paisagem da janela de casa. E quem diz paisagem, diz comida. Aqui , como nas mesas das avós do norte, há sempre pão, seja para acompanhar o caldo galego, já por si bem rico, seja para abafar o picante dos pimentos. Já agora, fica a dica: esqueçam a água e até mesmo a cerveja. Só mesmo um naco de rosquilha consegue ajudar a atenuar a roleta russa que é picar um prato destes pequeninos pontos verdes originais do México e que só os galegos conseguiram domesticar. Mas estamos em Padrón e esse jogo de sorte é quase obrigatório. Aventuramo-nos na Pulperia Rial por indicação de um senhor que, ao ver-nos de mapa na mão e cabeça no ar, se aproxima: “Vem gente de todo o lado para comer ali”. Ai é? E nós vimos a pé, merecemos até juntar aos pimentos um pratinho de pulpo à galega, ao menos nesse, o picante está à vista.

Padrón – Santiago

Em dia de chegada à meta, os recordes começam antes da partida. Às 6h20 já tínhamos ouvido o toque de partida que dava o mote aos últimos 25,5 quilómetros. Debaixo de um céu carregado de nuvens, é mais fácil caminhar rápido, as paragens para recuperar o fôlego são mais distanciadas, assim como a necessidade de encher garrafa de água que nos dias de sol parece que se evapora como por magia. Daí que pouco depois do meio-dia, já a catedral tinha deixado de ser miragem e a Rua Franco, uma das mais movimentadas de Santiago, já nos fazia companhia. Porta sim, porta sim, há tartes de Santiago e torron para provar , souvenirs do caminho mesmo para quem deixou o carro no parque, cañas e tapas para todos, que aqui ninguém discrimina meios de transporte. O importante é chegar à praça principal, deitar na pedra quente e procurar o melhor ângulo para apanhar numa só fotografia as caras de conquista, as mochilas ainda cheias e a uma catedral que, apesar das obras, se mantém imponente.

Os relatos dos mais experientes ditava que as próximas horas fossem passadas em filas intermináveis para carimbar passaportes, recolher diplomas e almoçar na Casa Manolo, paragem obrigatória para os peregrinos a precisar de repor calorias com um mix de tudo o que a Galiza tem de melhor. A verdade é que meia hora depois de chegar a Santiago, as provas em papel já faziam companhia às do palato.  Sorte? Eu diria mais que são “coisas do caminho”.