Capital privado: como Marcelo derrotou o PS e a extrema-esquerda

Que Marcelo está atento a todos os movimentos e declarações do Governo – já sabíamos. Que Marcelo utiliza as declarações dos membros do Governo para inviabilizar medidas legislativas desse mesmo Governo – é obra.

É o primeiro grande choque frontal entre a maioria parlamentar, que apoia o Governo “tricolor” (preto, vermelho e rosa), e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Trata-se, como já terá antecipado o leitor mais cauto, do veto presidencial à iniciativa legislativa do extremo-PS e da extrema-esquerda que determinava (imagine-se!) a interdição absoluta de participação de investidores privados no capital social do Metro do Porto e da STCP.

Ou seja: quer o Metro do Porto, quer a SCTP teriam necessariamente de ter como accionistas entidades públicas ou sociedades comerciais detidas exclusivamente por capitais públicos. Isto só lembra mesmo ao Partido Comunista e ao Bloco de Esquerda…em qualquer país minimamente desenvolvido (económica e politicamente), tal medida entraria imediatamente (em lugar de destaque) para o anedotário político nacional. Aqui, por terras lusitanas, ainda temos senhores deputados e senhoras deputadas que aprovam medidas tão modernas como a moderníssima União Soviética…

Enfim, felizmente, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa vetou o diploma: levando a acreditar que, afinal, há sempre uma réstia de bom senso e racionalidade na política portuguesa. E a mensagem do Presidente, justificando a sua decisão política de vetar este diploma à la geringonça, revelou-se muito cáustico e até provocatória para o Governo. Julgamos que se trata da primeira vez em que um Presidente cita declarações de um membro do Governo (o Ministro do Ambiente!) para mostrar que o diploma é contrário aos objectivos e propósitos políticos do Governo…Isto é: Marcelo Rebelo de Sousa assumiu-se, nesta sua mensagem inovatória, como o zelador do programa político do Governo – exercendo uma espécie de tutela sobre cada um dos Ministros e mesmo sobre o Primeiro-Ministro.

Que Marcelo está atento a todos os movimentos e declarações do Governo – já sabíamos. Que Marcelo utiliza as declarações dos membros do Governo para inviabilizar medidas legislativas desse mesmo Governo – é obra. É mais um facto político-constitucional criado pelo nosso originalíssimo Presidente. E Marcelo ainda nem perfez meio ano como Presidente em exercício de funções…que mais reservará este Presidente singular para a “geringonça”? Evidentemente que o alvo de Marcelo não é o PS, nem é António Costa – o alvo é, isso sim, o Bloco de Esquerda e o PCP…Porquê? Fácil: porque Marcelo quer debilitar a extrema-esquerda, tirando—a simpaticamente do Governo, abrindo caminho para a reedição do Bloco Central. Vide o nosso texto aqui no SOL de ontem, para mais desenvolvimentos.

Dito isto, pergunta-se: qual a fundamentação política avançada por Marcelo para justificar o veto? E tal fundamentação é procedente? Primeiro, o Presidente Marcelo veta o diploma que proíbe a entrada de capital privado na Metro do Porto e na SCTP, alegando, para além das contradições internas do Governo, que esta decisão deveria ser tomada pelos órgãos de natureza administrativa (Governo, autarquias locais, comunidades intermunicipais…) e não pelo órgão legislativo (Assembleia da República). Ao que acresce que o meio encontrada pelo legislador para prosseguir o seu fim (restrição absoluta da entrada de capital privado para assegurar a primazia do interesse público na gestão das duas sociedades de transportes) é manifestamente excessivo e desproporcional, podendo tal fim ser atingido com uma medida menos gravosa para os direitos dos investidores, designadamente, sem um sacrifício total do direito à iniciativa privada. O Presidente expressa ainda dúvidas sobre se o modelo assente exclusivamente em capital público é o mais eficiente para assegurar o serviço público de transporte na área do Porto. Isto é, para além de ser uma medida legislativa que impõe sacrifícios avultados para os investidores, esta não se traduz numa melhoria da qualidade do serviço, nem num acréscimo de qualidade do serviço de transporte para os utentes.

E Marcelo tem toda a razão: foi uma decisão, a um tempo, corajosa e certeira do Presidente da República. Sucede, porém, que Marcelo vetou o diploma politicamente – e não juridicamente. O que não deixa de constituir uma contradição lógica de Marcelo: por um lado, os fundamentos que alicerçam o seu veto são de natureza mais jurídica do que política – mas, apesar disso, Marcelo vetou politicamente! Entendamo-nos: dizer-se que a Assembleia da República não é o órgão competente para aprovar esta medida é o mesmo que se dizer que o diploma é inconstitucional por violação do princípio da separação de poderes (artigo 111.º da Constituição da República Portuguesa). A competência dos órgãos é matéria de Direito – e não matéria própria do jogo político.

Dizer-se que a medida é censurável porque o meio utilizado para prosseguir o fim é excessivo e desproporcional, mais não é do que alegar-se que a medida viola o princípio (jurídico) da proporcionalidade, ínsito à ideia de Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa). Ou seja: para o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, atendendo à fundamentação por si expressa, o diploma deve ser vetado (como foi!) porque é inconstitucional, por violação dos princípios da separação de poderes e da proporcionalidade.

O que Marcelo fez foi o que sempre criticou ao longo de anos, quer como analista político, quer como cultor do Direito Constitucional: utilizar argumentos jurídicos para vetar politicamente, o que o Professor Marcelo, nas suas lições, já qualificou como uma “fraude à Constituição”. O que diria então (já nem dizemos o comentador Marcelo Rebelo de Sousa) o Professor Marcelo Rebelo de Sousa da fundamentação do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa? Que seria uma “fraude à Constituição”?

Mais uma vez, expressamos aqui a nossa perplexidade: o Presidente da República teve receio (incómodo? gestão de conflitos e de popularidade?) de mostrar que discorda politicamente do mérito da iniciativa legislativa da “geringonça”. E como não quer mostrar que está nos antípodas ideológicos e programáticos deste Governo, Marcelo teve de inventar esta combinação exótica de justificações jurídicas, sob as vestes de argumentos políticos. No entanto, retenhamos o essencial: este veto foi uma decisão muito positiva, que merece a nossa saudação, do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Até porque Marcelo matou definitivamente esta ideia bizarra de proibir a entrada de capital privado na Metro do Porto e na STCP. Bem pode o Bloco de Esquerda ameaçar e esbracejar efusivamente: o diploma legal vetado por Marcelo já pertence à história. Efectivamente, ao contrário do que sugeriu José Soeiro, a maioria parlamentar não poderá confirmar este diploma legal. Porquê? Porque a Constituição exige, neste caso, uma maioria qualificadíssima de 2/3 dos deputados presentes, desde que superiores à maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções para derrotar a vontade política do Presidente da República. É o que resulta do artigo 136.º, n.º 3, b) da Constituição da República Portuguesa – a iniciativa legislativa vetada pelo Presidente traduzia-se, na prática, na proibição do exercício de uma actividade económica ao sector privado. Neste domínio, a Constituição é especialmente exigente – e não poderia deixar de o ser, sob pena de Portugal voltar às suas derivas socializantes (e albanesas, acrescentarão alguns). Bem sabemos que o cumprimento de regras não é o forte da geringonça, mas ainda assim…

Portanto, o Presidente da República impôs-se à geringonça, vencendo o extremo-PS e a extrema-esquerda. Impedindo, por este meio, que o diploma mais ridículo, absurdo e contrário ao interesse nacional, alguma vez aprovado pelo Parlamento (pelo menos, nas últimas décadas), pudesse entrar em vigor. O que mostra ao centro-direita (melhor: a todo o espaço político moderado!) a importância de eleger um Presidente do seu espaço político…