Vem aí a Bíblia como nunca a conhecemos

Uma nova tradução do ‘livro dos livros’ promete ser a mais completa em português e revelar novas nuances nos textos sagrados. Frederico Lourenço, o tradutor, fala em «utopia». Francisco José Viegas, o editor, em «sonho» e «milagre».

Francisco José Viegas, diretor da Quetzal, chama-lhe «o sonho de qualquer editor». Para Frederico Lourenço, é «uma utopia» e o projeto «mais importante» que alguma vez empreendeu na vida. Estamos a falar de uma nova tradução da Bíblia, a mais completa em língua portuguesa, reunindo 80 livros e perfazendo no total mais de duas mil páginas. O primeiro dos seis volumes (dois para o Novo Testamento, quatro para o Antigo), que contém os Quatro Evangelhos, estará à venda a partir de 23 de setembro.

«Gutenberg inventou os tipos móveis para poder imprimir a Bíblia. Isso mudou a história da literatura e determinou em definitivo qual seria o caminho da nossa cultura, centrada no livro», disse Francisco José Viegas num pequeno-almoço com a imprensa. «Daí que eu possa dizer que o sonho de qualquer editor seja reinventar ou reproduzir o gesto de Gutenberg. Não é segredo para nenhum de vós que eu tenho uma relação muito especial com a Bíblia e no último mês tenho vivido uma aventura maravilhosa, que é a leitura dos Quatro Evangelhos. Ao reler Marcos, Mateus, Lucas e João redescobri a razão por que esses textos são fundamentais para a nossa cultura. Por vezes achei que estava diante de um texto que nos ultrapassa por todos os lados, em todos as direções», continuou. «E outras vezes, a maior parte delas, achei que estava diante da invenção do romance moderno».

Frederico Lourenço, de 53 anos, autor de traduções aclamadas da Odisseia e da Ilíada, corroborou esta ideia, comparando certas passagens do Novo Testamento a Em Busca do Tempo Perdido, a obra-prima de Marcel Proust. No seu entender, a Bíblia «não é um livro antigo, mas intemporal, uma grande obra poético-literária», ao ponto de às vezes dar «a sensação de estarmos a ler um livro que vai ser escrito em 2017».

A tarefa hercúlea de traduzir ‘o livro dos livros’ foi iniciada há dois anos. «Exige concentração total e entrega total» e implica «um horário de trabalho de manhã, à tarde e à noite», diz o tradutor. Obrigou-o a cessar todas as outras ocupações, excetuando as aulas que dá na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

«A imagem que me ocorre é a do poeta que abdica de si próprio», elogiou Viegas. «O trabalho de Frederico Lourenço não tem nome, ultrapassa aquilo que eu conheço. É o trabalho de um homem solitário, que toma notas, que faz comentários, vai buscar a palavra original, que enfrenta dois mil anos de texto e dois mil anos de versões».

«O livro mais importante que existe»

O poeta, tradutor e helenista revelou que a decisão de traduzir a Bíblia chegou num momento em que já não estava «tanto na onda de católico praticante». «Muitas coisas me vão interessando, sobretudo um grande fascínio pela tradição judaica. Mas independentemente do grau de cristianismo da minha vida, [a Bíblia] continua a ser para mim o livro mais importante que existe».

A ambição já vinha de trás e pode ser remontada ao ano de 1984, quando Frederico Lourenço adquiriu na Feira do Livro uma edição em grego do Novo Testamento. Ia entrar para o primeiro ano da licenciatura em Línguas e Literaturas Clássicas e «não tinha ainda conhecimentos de grego que me permitissem ler aquele livro, mas comecei a tentar».
Mais de 30 anos passados, considera: «Em toda a minha vida nunca senti que estivesse a fazer algo tão importante». E por isso diz ter «pânico de morrer» antes de concluir o projeto. «Está a ser uma viagem espiritual muito forte, uma aventura interior, de interrogação e proximidade cada vez maior em relação a qualquer coisa que ainda não sei o que é».

A nova tradução tentará ao mesmo tempo restituir o texto à sua ‘pureza’ original. Como um arqueólogo escrupuloso, Frederico Lourenço tem expurgado o texto de acrescentos posteriores que foram colocados para o tornar mais acessível. «Todas as bíblias que nós lemos têm muitas palavras que não estão na Bíblia. São palavras necessárias para completar as frases para que estas se tornem compreensíveis». Também por isso, «há muitas coisas que as pessoas estão habituadas a ler de uma determinada maneira – como o Sermão da Montanha ou o Pai Nosso… – e que agora vão ler de uma maneira muito diferente».

Francisco José Viegas, que aludiu à pletora de notas de rodapé de natureza sobretudo histórica e filológica, também falou sobre a experiência de leitura desta nova versão: «Depois de ler as primeiras páginas do primeiro volume apercebi-me de que é uma experiência múltipla. Tem a ver com a poesia, tem a ver com a história, tem a ver com a língua, com a religião, magia, contemplação. Tem a ver com a pura filologia, com o puro amor da palavra. Alguém transformou um sopro num relâmpago, e Frederico Lourenço é o alquimista desse milagre». O editor estima que o último volume desta Bíblia seja colocado à venda em 2019.