Sines: o que pode a música fazer por uma cidade?

Na sua 18.ª edição – a da maioridade – o Festival Músicas do Mundo voltou a levar o mundo até Sines, quer nos palcos quer fora deles. E a mostrar que a cidade que o poeta Al Berto adotou continua apostada em recuperar aquilo que perdeu com a construção do polo industrial

Pela cidade a vida corre normalmente, algo adormecida pelo calor e pela perspetiva do fim de semana, mesmo ali, já se lhe toma o gosto. Mas basta descer rumo ao cheiro a maresia para perceber que algo se altera, não é uma mudança abrupta ou violenta, mas suave. Tal como suavemente o Festival Músicas do Mundo (FMM) foi tomando conta da cidade de Sines.

Nas laterais do Centro de Artes, mesmo durante o dia, há jambés, cabeças com rastas, artesãos dos tempos modernos, nómadas da atualidade. Ocupam o chão, que é tão boa cadeira como qualquer outra. Mais abaixo improvisam-se palcos para mostrar as suas artes, da música ao malabarismo e artesanato. E as esplanadas, aquelas onde já se cheira a maresia e onde as gaivotas servem de banda sonora, recebem já jovens que tentam esquivar-se à ressaca com mais uma cerveja. Para os outros, os que estão lá sempre, a vida corre, quase normalmente. Fazem-se obras de construção, bebe-se o café com cheirinho, fazem-se contas à vida, há avós que levam os netos pequenos à praia. Já não há olhares de espanto ou desdém, como é fácil imaginar que terá existido noutros tempos. “Primeiro estranhou-se, menina. Agora já se entranhou”, comentam num café. De dentro do Castelo escutam-se os acordes de um sound check mas ao contrário de outros eventos musicais, aqui as portas estão abertas para quem quiser ver, cerca de três horas antes do concerto, a lenda cabo-verdiana Bitori em palco. Da mesma forma que, pela noite fora, há ecrãs gigantes no exterior do castelo e um palco secundário gratuito, onde acontecem cerca de um terço dos concertos do FMM. “Queremos ser democráticos”, dizem-nos da Câmara Municipal de Sines, organizadora deste festival.

Se o FMM fosse uma pessoa teria ganho o direito ao voto este verão. Dezoito anos depois é um festival multipremiado – só no ano passado recebeu três Iberian Awards – mas é, acima de tudo, um festival abraçado pelas gentes da terra e da mesma forma pelas gentes que chegam de fora. Um festival que ajudou a mudar o rosto de uma região e que ilustra o poder da música. Particularmente numa altura em que as fronteiras se repensam.

A inconveniência do progresso

“Sines, ao longe, cercada pela refinaria e petroquímica iluminadas. Aproxima-me doutro planeta, o mundo parece querer terminar aqui. O mar sob a lua, um rasgão de prata noturno coalhado de astros. Quando o olho do meu terraço na rua do Forte, o mar, não passa de uma superfície azul-chumbo, ou azul-etéreo, ou simplesmente não está ali. (…) Dentro de pouco tempo será insuportável viver aqui”, lê-se nos “Diários” de Al Berto. O poeta, nascido em Coimbra em 1948, mas que adotou e foi adotado por Sines, onde existe inclusive uma escola secundária com o seu nome e onde as artes mais modernas do graffiti lhe dedicaram todo um mural, paredes meias com o Centro de Artes, vaticinou cedo o destino de Sines. Um destino que, de alguma forma, se veio a confirmar. E que ajuda a compreender a importância do FMM para a cidade.

Sines, onde, em 1468, nasceu o navegador português Vasco da Gama, não tem na história um percurso linear. Longe disso. No início do século XX, Sines assenta a sua vida na indústria da cortiça, na pesca e na agricultura, mas sobretudo é a praia de banhos do Alentejo, com a alta sociedade da região – e não só – a passarem ali temporadas.

Mas a história é perversa, tal como o é o progresso. No início da década de 1970, o governo de Marcello Caetano, movido pelo desejo de reforçar a autonomia nacional em setores primordiais, aprova o projeto de um complexo portuário e industrial. O chamado polo industrial de Sines alterou profundamente aquela que era a realidade da região.

Se, por um lado, entre 1972 e 1981, a região cresce, em termos habitacionais, 92% – ou seja, praticamente duplica a sua população – recebendo famílias oriundas de todo o país, mas também portugueses regressados das ex-colónias após o 25 de abril. Esta afluência dita o crescimento descontrolado da região, refletido na pressão urbanística. E, em menos de uma década, Sines passou de paraíso balnear para região industrial. “Ninguém quer passar férias com vista para um porto e uma refinaria”, ouvimos frequentemente da boca dos mais velhos.

É neste cenário que, em 1999, nasce o FMM. Foi Carlos Seixas, ainda hoje diretor criativo e de produção do festival que fez a proposta à Câmara Municipal, de criar em Sines um evento dedicado à world music que vivia então o seu apogeu. “Em Sines apostávamos na diversidade cultural, na inexistência de fronteiras entre géneros ou geografias, no diálogo intercultural, na contaminação resultante entre tradições e realidades estéticas aparentemente distantes. O conceito de músicas do mundo ultrapassava desde logo a ortodoxia dominante”, explicou, à data, Carlos Seixas acerca deste projeto. E a verdade é que, o que parecia, à partida, uma proposta insana, recebeu um eco positivo por parte da câmara e assim teve lugar a primeira edição do FMM, tímida, com sete concertos – os portugueses Corvos, Clã, Opus Ensemble e Quinteto de Carlos Martins, a espanhola Carlos Nuñez Band, o sírio Abed Azrié e o norte-americano Sonny Fortune – e cerca de sete mil visitantes.

Dezoito anos volvidos, o FMM já está longe de ser um pequeno festival dedicado à world music, tendo-se transformado numa referência dentro do género – só no ano passado passaram por Sines 90 mil espetadores do FMM. Este ano estima-se que o número possa ter atingido os 100 mil, que tiveram a oportunidade de assistir a 47 concertos, vinte dos quais vieram a Portugal pela primeira vez. Músicos como a argentina Juana Molina, a guineense Karyna Gomes, as inglesas The Unthanks, os mongóis Nine Treasures, os brasileiros Bixiga 70, ou ainda os Islam Chipsy, do Egito, Noura Mynt Seymali, da Mauritânia, Konono nº1, da República Democrática do Congo (que tocaram com o projeto luso-angolano Batida) ou ainda o inglês Billy Bragg. “Queremos continuar a ser o festival que dá a conhecer ao público português e ao público estrangeiro que nos visita, artistas que, de outra forma, dificilmente conheceriam”, explica Nuno Mascarenhas.

O atual presidente da Câmara Municipal de Sines recorda-se do arranque do festival, até porque à data era vereador da oposição há um ano. “Este festival cresceu porque acontece numa região como Sines, que é aberta ao mundo. Não é por ser a terra de Vasco da Gama, mas é realmente uma região aberta ao mundo. Mesmo as suas comunidades, como a piscatória, sempre receberam pessoas de outras localidades do país e até das ex-colónias. E depois, com a construção do complexo industrial de Sines, nos anos 70, recebemos ainda mais trabalhadores das antigas colónias. Sines foi sempre um concelho aberto ao mundo, com uma grande comunidade cabo-verdiana, moçambicana… Por tudo isto digo que seria sempre mais fácil para Sines ter um festival como este e vê-lo crescer do que outra região do país. Claro que, quando o festival nasceu, houve uma natural estranheza por parte dos locais. Mas hoje em dia é um símbolo do nosso crescimento e de uma nova imagem que procuramos para Sines. O FMM foi o grande motor para inverter a imagem de Sines após a construção do polo industrial.”

Renascer por nove dias

O FMM pode, numa espécie de corrida de fundo, ajudar Sines a renascer do impacto da transformação de zona balnear em zona industrial. Mas, no imediato, essa transformação ocorre todos os anos, durante os dias do festival. As casas, outrora vazias, ganham vida durante estes dias, alugadas por amigos e famílias e que ali vêm passar uns dias. A área do Parque de Campismo de Sines – que morreu consequência do fim do turismo na cidade – é ocupada de forma desgovernada por grupos de jovens que ali montam as suas tendas. Na verdade, onde há um pouco de relva, brota uma tenda.

As poucas unidades hoteleiras da cidade estão na capacidade máxima. É o caso do Hotel Búzio, uma espécie de residencial com 38 quartos, que não só serve de quartel-general para os jornalistas que fazem a cobertura do FMM, como ainda recebe outros visitantes do festival. Carlos Gonçalves Maria, 86 anos, é um dos donos do espaço e ali passa os seus dias que “sempre é melhor do que estar em casa a ver novelas”. Paredes meias com o Parque de Campismo, não gosta nada “do que para ali vai com as tendas todas à balda”. Mas habituou-se. “Temos de nos compenetrar que são jovens. E, no fundo, o festival é uma coisa útil para a cidade. Veio compensar o negócio que deixou de existir com a indústria”, diz, não negando, no entanto, que no antigamente é que era: “Sines era um luxo”.

Carlos partilha os anos com Manuel Beliche, que também já deixou os 80 lá atrás. Há 57 anos que está à frente do Café Baía, bem no centro de Sines. Trocou a incerteza do mar pelos clientes certos, a quem conhece pelo nome, do café que herdou do seu tio. Todos os dias (exceto ao domingo), pelas 7h, já ali está. Às 19h fecha portas para ir para casa – mesmo nos dias de festival. Até porque diz não receber muitos clientes do festival. “Claro que noto que há muito mais gente na cidade, mas aqui vêm comprar água e usar o wc. De resto não vêm muito que aqui somos mais velhos. Mas farto-me de rir com alguns trajes, parece um Carnaval”. Talvez por isso nunca se aventurou a ir espreitar os concertos, que “isso é coisa para ser uma grande confusão”.

A confusão de que fala Manuel tem o seu epicentro à volta das muralhas do Castelo, no Largo da Igreja e pelas escadarias até à zona da praia – sempre cheia mal o sol espreita e onde muitos aproveitam para tomar o banho que não tomaram antes e onde, mais pela noite, têm lugar os concertos. É por aqui que se multiplicam as tendas de artesanato. Há de tudo um pouco: roupa, colares, brincos, óleos e até sabonetes. Alguns dos vendedores, como é o caso de Paulo Caldeira, de 41 anos, vendem aqui há quase tantos anos quantos a vida do FMM.

“Cheguei a Sines pela primeira vez há 12 anos”, explica. “Encontrei um senhor que me comprava incensos, ficámos amigos e passei a vir sempre”. Nota que, de ano para ano, são cada vez mais as pessoas. “A vender, a comprar, a vir só passear. Acho sempre que as pessoas da terra têm uma grande paciência para nos aturar a todos”. Se não os podes vencer, junta-te a eles. Podia ser este o lema de uma Sines que aprendeu a receber, de braços abertos, aqueles que chegam com o FMM.

Só este ano será feito um estudo do impacto económico do festival, mas há estudos para os quais o olhar é suficientemente conclusivo. Nos nove dias que dura o FMM, Sines renova-se. Os negócios surgem a cada esquina. Sobretudo lojas de bebidas e comidas que se improvisam em qualquer recanto com espaço. As litrosas passam a ser o produto mais vendido, nos supermercados, nos cafés, nos cabeleireiros, nas lojas de congelados. Até na sede do PS se improvisa um bar. E numa das laterais do Castelo assenta arraiais o Brownie, bar de Lisboa, que passa o verão em Sines, levado pela dona, Xana Silva, filha da terra. Os dias durante o FMM são, de resto, tão longos que é frequente perder-se a fronteira entre o dia e a noite. E não há aqui ironia, apenas a constatação de uma realidade: o FMM faz-se do esbater das fronteiras. Entre a música, entre as cidades, entre os países, entre as pessoas. E até entre o dia e a noite.