O mundo não tão idílico de Beatrix Potter

Impedida pelos pais de construir uma carreira, a autora britânica criou uma vida doméstica que conquistou o mundo com os seus pequenos livros de contos para crianças

Com o cuidadoso detalhe de quem nunca perdeu de vista os lugares que conheceu na infância, Beatrix Potter escreveu e ilustrou pequenos contos para crianças tendo um subtil olhar crítico sobre o mundo e a sociedade da época, que surge tantas vezes revista à escala dos coelhos, gatos, esquilos e ratos. Pequenas personagens que tantas vezes são capazes de corajosos atos de resistência, vivendo aventuras e enfrentando perigos contra os avisos e a autoridade dos mais velhos. A autora britânica, nascida há 150 anos, alcançou um sucesso fenomenal e fixou os sonhadores contornos de uma visão que há gerações vai sendo transmitida de pais para filhos.

Traduzida em 36 línguas e com mais de 45 milhões de livros vendidos em todo o mundo, os contos completos de Potter só chegam este ano a Portugal, numa edição em quatro volumes que reúne os 23 pequenos livros que a autora publicou em vida. O primeiro volume chegou às livrarias no mês passado e, a partir de setembro e até ao Natal, cada mês terá um novo volume. Com tradução de Eugénia Antunes e Paulo Rêgo, a iniciativa é da Pim!, chancela da Europress e da Ponto de Fuga que nasce com esta publicação.

À semelhança dos seus pequenos heróis, Potter alcançou o sucesso por não se ter conformado com o ‘não’ dos editores a quem propôs o primeiro dos seus livros – A História de Pedro Coelho. Em dezembro de 1901, decidiu-se a publicar ela mesma a história inspirada num coelho de estimação chamado Peter Piper, mandando imprimir 250 exemplares. Os livros voaram das poucas prateleiras, e ainda antes do fim do ano a autora mandou imprimir mais 200. Segundo nos revela o prefácio assinado por Vladimiro Nunes no primeiro dos tomos, um dos exemplares da primeira edição comprou-o Arthur Conan Doyle, criador do famoso detetive Sherlock Holmes, para os filhos. Outro exemplar, já recentemente, foi arrematado por 43.400 libras (cerca de 50.700 euros) juntamente com outros artigos de Potter, como desenhos e cartas, num leilão que assinalou os 150 anos do nascimento da autora.

O êxito do livro encorajou a Frederick Warne & Co., uma das editoras que tinham recusado a sua publicação, a reconsiderar, colocando, no entanto, uma condição: que as ilustrações, originalmente desenhadas a caneta preta, fossem coloridas. Em outubro de 1902, a obra chegou às livrarias de todo o país e logo se tornou um fenómeno de popularidade. Potter tinha já 36 anos quando se deu conta de que, a partir do seu imaginário, podia estender uma rede de túneis que a levariam muito para lá do seu terno e delicado mas um tanto opressivo mundo.

Nascida em Londres, a 28 de julho de 1866, no seio de uma família da alta burguesia inglesa, como se lê no prefácio, Helen Beatrix Potter foi educada de acordo com as rígidas convenções da sociedade vitoriana. Ao contrário do irmão mais novo, Beatrix não frequentou a escola, tendo sido instruída em casa por precetoras. Herdando dos pais a sensibilidade artística como o gosto pela natureza e pela vida no campo, Beatrix e o irmão cresceram rodeados de animais, que sempre estudaram e que povoavam os seus desenhos.

Representação da sociedade burguesa

Se os contos de Potter com animais que falam seduziram a mente tão disponível quanto faminta das crianças, há um encanto nostálgico em relação à infância que os tornou populares também entre os adultos. As atribulações e situações angustiantes em que se veem metidas as suas adoráveis personagens agarram os pequenos, ao passo que os graúdos ficam intrigados com a sua forma de colocar em perspetiva nas entrelinhas e em curiosos detalhes nas ilustrações uma multiplicidade de aspetos sociais do seu tempo, desde questões políticas ou de classe, questões de género ou outras relacionadas com a vida doméstica.

A forma hábil como a autora foi fazendo recortes mordazes das piedosas convenções dos textos moralizantes da literatura infantil do século XIX pode confundir um leitor ocasional, apressando-se a ver o seu trabalho como algo simplesmente delicado. Mas os seus animais ilustrados com uma precisão realista, anatomicamente corretos, embora vestidos com coletes, chapéus e xailes, com posições e hábitos humanos, podem espelhar a forma como as crianças brincam com os seus animais domésticos. Mas se desde muito cedo Potter teve sempre por perto todo o tipo de animais, nalguns aspetos a brincadeira ganhou uma certa consciência crítica e até subversiva, no que toca à representação da sociedade burguesa, e, a um nível mais pessoal, em relação às frustrações da sua juventude. 

Mantida em casa e longe de todos os perigos sociais pelos pais excessivamente protetores, Potter viria a ficar noiva – contra a vontade destes e numa já tardia idade (39 anos) – do seu editor, que morreu pouco depois. Só aos 47 anos casou finalmente com um agricultor na região de Lake, onde comprara uma casa que manteve em segredo dos pais.

Ao longo de toda a sua vida, debateu-se com uma pressão extrema das convenções sociais vitorianas e particularmente com aquela que diz que «filha um dia, filha para toda a vida». A autora ia ao extremo de escrever em código o seu diário. Só em 1950, sete anos depois da sua morte, é que este foi finalmente decifrado. O mais triste é que os segredos ali contidos não passam de detalhes da sua intimidade: pequenos atos decorosos do dia-a-dia, descrições dos seus animais e do clima, muito poucas lamentações, e algumas especulações sobre política, jardinagem e aquela que teria sido a sua área profissional se os pais não lhe vedassem o caminho, as ciências naturais.