José Vila: “Sempre me desenvencilhei e sempre fui muito explosivo”

Abriu o restaurante para nos receber num dia de semana em junho, numa noite fria que ainda não cheirava a verão. Estava vestido de preto pela Dau, mulher de “toda a vida”.

José Vila: “Sempre me desenvencilhei e sempre fui muito explosivo”

A diabetes levou-lhe a perna há um ano mas foi só isso. José Vila tem 72 anos, é pintor e cozinheiro. Ou cozinheiro e pintor – depende da estação. Num jeito autêntico que não se treina, conta-nos que a vida o diverte. José Vila é dali mesmo, da Mexilhoeira Grande, entre Lagos e Portimão. Começou a pintar durante a adolescência porque gostava. Nunca mais parou. Esteve na guerra da Guiné, depois viveu “dias pegados às noites” em Lisboa, acompanhado por personagens que marcaram o panorama da esquerda intelectual. Já nessa altura fazia amigos à mesa. Antes de voltar à terra, ainda fugiu para Sintra apaixonado pelo vinho Ramisco. Durante a entrevista cantou, recordou, esqueceu. Sempre de braço dado com Lisa, amigo e conterrâneo com quem em 1981 abriu “uma casa para se comer bem”, a adega Vila Lisa. Juntos, recordaram 35 anos de portas abertas e de uma amizade que o negócio não magoou.

Do que se recorda da Mexilhoeira Grande?

Vila: Lembro-me de que era uma aldeia simpática. Toda a gente diz que a sua terra é a melhor e a mais bonita. Mas tenho uma paixão por isto e pela família… Está tudo ligado. A lembrança que tenho dessa altura da Mexilhoeira é a da família e convivência com amigos. Lembro-me de gostar muito disto. E de ir comer a casa da minha avó, que me convidava para ir comer feijão com arroz e sandes de toucinho… Lembro-me da minha mãe, que era fantástica, dava-me educação, e o meu pai não. Não me dava nem deixava de me dar. Mas a minha mãe olhava para mim e eu respeitava. Até ela falecer. 

O que se comia nessa altura além desse prato?

Era quase isso.

A aldeia tinha mais gente do que tem hoje?

Vila: Não, tinha menos gente. Gente simpática, os meus amigos. Brincava sempre na rua. 

Lisa: O adro da igreja era o local de eleição onde se juntava a malta à noite no verão. O Vila costumava subir para o muro e dizia que ia cantar para a Mexilhoeira inteira. E punha-se a cantar Maria do Céu. Isto nos anos 60, era ele puto, devia ter 13 anos. Eu tenho menos 6 anos que ele. Eu era de outra geração mas na altura já acompanhava assim à ilharga estas aventuras. Ele já era velho (risos). 

Desde quando se conhecem?

Lisa: Desde sempre. Desde o adro da igreja! (risos)

Disse que o seu pai não lhe dava educação. Como era a sua relação com ele?

Uma vez deixou-me um bilhete que dizia: “Vê lá se vens a casa que há uma semana que não te vejo”.

Lembra-se de quando começou a ter consciência das escolhas que o levariam por um caminho ou por outro?

Começo a trabalhar em pintura na adolescência. Tive um colega em Faro, o Benjamim, curiosamente nem tinha uma mão, e pintava. Pintava… penso que bem. Ganhei uma amizade fantástica com ele e íamos ao fim da tarde para Olhão para as tascas, tinha eu 13 anos.

Já ia para as tascas com essa idade?

Sim (risos).

E já vendia quadros nessa altura?

Não. Comecei a acompanhá-lo porque gostava da pintura dele. Acho que foi aí que me apaixonei pela pintura.

Como ia da Mexilhoeira a Faro com 13 anos?

Morava em Faro, estava lá na escola industrial. Aí realmente já devia ter mais de 13. Primeiro estudei em Lagos mas fui expulso.

Por que tropelia?

Tentei namorar com a filha de uma professora (risos). Depois disso ainda estudei em Silves e só depois em Faro. Quando estudei em Faro vivia na Luz de Tavira, na casa do meu padrinho, que era padre.

É durante essa fase que sente que começa a formar a sua personalidade?

Talvez, ou ainda antes. Também vivi em Castro Marim, andei lá na escola primária e foi um período de grande aprendizagem igual quase à da Mexilhoeira. (Mostra uma foto vestido de Carnaval em Castro Marim ao lado de uma menina). Era a Maria Rita! Ainda me lembro!

Quando começa a alcunha de Vila?

Foi depois de vir de Castro Marim, talvez por influência espanhola. Estava já na Mexilhoeira e recitava poemas do Vargas Vila. Foi o pessoal da terra que me deu o nome. 

Onde é que recitava os poemas?

Aí no meio da rua, para os moços da minha idade. A ideia era enaltecer coisas de que gostava. Recitava porque gostava, não era de propósito. E como fazia tanta coisa assim… Sempre tive força para transmitir aos outros qualquer poema ou qualquer coisa que eu fizesse, daí os quadros. Sentia um certo orgulho ou prazer naquilo. Sempre tive a ideia de transmitir o que sei ou sinto em voz alta para os outros, e ainda hoje tenho isso. Tenho força para tudo.

Voltando à alcunha. Na altura em que começou a ler os poemas do Vargas Vila era normal um miúdo da aldeia gostar tanto de poesia?

Lia para malta da minha idade. Sempre aceitaram e gostavam, por isso é que me deram a alcunha do Vila que andava sempre a dizer poemas. Agora não me lembro de nenhum, só lendo. Andava sempre à procura. Há poemas, e outras coisas, que nos caem dentro e uma pessoa não esquece. Como o meu amigo Benjamim, o pintor. Há coisas que ficam.

Que tipo de quadros pintava na altura?

Não tinham nada a ver com os que pinto agora, como é lógico. Tenho alguns em casa a óleo que talvez sejam dessa altura. Mas o objetivo de pintar nessa altura, para além de ser para beber copos, era quase para sobreviver. A cada rifa que vendia pagava uma rodada à malta que estava no António José, na Luz de Tavira.

Na altura não tinha dificuldades em ter acesso às tintas e pincéis?

Nem sei como os arranjava, só sei que os tinha. Sempre me desenvencilhei e sempre fui muito explosivo, acho que a vida é feita para se viver não é para se estar acomodado. Sempre pensei isso e ainda hoje penso. Desde puto que tenho ação para tudo. 

Porque é que o Vila era conhecido como o Zé Bandido?

Porque andava descalço de inverno e era vadio na linguagem desta gente, e andava de barba já nessa altura. E vinha a pé para a Mexilhoeira.

Lisa: E um dia pintou o peito de um puto inglês na praia do Camilo. Estava lá a pintar e levava sempre um fogareiro, sardinhas para assar, um garrafão de vinho e um pão. O miúdo viu aquele cenário e aproximou-se de tronco nu. O Vila fez um quadro no peito do puto.

A política fazia algum sentido para si nessa altura?

Sim, fazia. Era do contra. Havia um chefe de brigada da PIDE e mais outros dois inspetores. E agentes então… Só aqui, numa terra tão pequenina e com tanto informador. Toda a malta da minha idade era meio de esquerda. À noite púnhamos papéis com ameaças por baixo da porta dos gajos. Vá lá que não foi ninguém preso, eles sabiam bem quem éramos. Éramos infantis nesse aspeto. Mas pronto, era a maneira de ser do contra. 

Quando começa a lutar pela sua independência? Até aqui vendia rifas, pagava copos, etc. 

Estive inscrito nas Belas-Artes e depois fui para a tropa para a Guiné, devia ter 20 anos. 

De que se recorda da Guiné?

De coisas boas. Montei lá um bar e tudo. Querem que conte? Isso é uma história que nunca mais acaba. 

Conte.

Eu era de engenharia e só ia para o mato desarmar minas, mas não sabia. A minha especialidade era minas e armadilhas mas nunca passei cartão a isso. Vá lá que nunca me aconteceu nada. Quando fui para a Guiné aluguei um quarto grande em Bafatá onde estava à frente daquela secção. Mandava em dois soldados (risos). Não havia quartel. No quarto fiz uma divisória e fiz uma espécie de bar, uma coisa para beber copos, e convidava gajos porreiros que ia conhecendo para irem lá à noite. Só entravam desfardados. E entravam com um peúgo preto e outro branco, unidos venceremos. Gente contra a guerra.

Pintou na Guiné?

Aí não, não havia hipótese nenhuma. Levei a minha mulher para a Guiné, eu e Dau já estávamos casados. Conheci-a em Lagos, ela era de lá. Era a única branca na Guiné. Morreu a 15 de agosto, faz dois anos – faleceu e eu depois fui para o hospital. Naquela altura levá-la para a Guiné… ninguém fazia isso. Eu quis que ela fosse. E vivemos lá um tempo fantástico.

O que achava a Dau do bar da Guiné?

Passámos bem o tempo. Até entravam morcegos em casa. Ela é que conduzia o jipe da tropa, uma vez fez um pião na areia. Ela ia para o Baga Baga, às vezes parávamos e ela levava a minha G3 para fazer tiro. Ainda fomos para Bissau e ela foi secretária do Diogo Neto, coronel da aviação. Depois voltámos de avião para Lisboa e não de barco, por causa dessa ligação. 

Estiveram casados quantos anos?

O tempo todo. Desde os 20 até agora. Casámos em Portimão, na igreja por causa do meu padrinho padre. 

Como era a sociedade lá?

Havia muito racismo da nossa parte. 

(E não contas aquela da ponte? Essa é giríssima, diz o Lisa)

Vila: Pois é. Fui fazer uma ponte, como era de engenharia (risos). Fui medir o rio com a maré vazia e mandei vir a ponte de Portugal com essas medidas. Só que a maré encheu, a ponte chegou e ficou quase a meio do rio. 

Não foi repreendido?

Não, depois um engenheiro que lá foi disse simplesmente “mandamos vir o resto dos moldes”. Não era urgente. 

Esteve lá quanto tempo?

Dois anos, por aí. Depois vim e inscrevi-me no Ar.Co e noutra escola de mosaico e morava no Restelo. E a minha vida aí foi com intelectuais, como o Manuel da Fonseca. Convivi muito com o Ary, no Parque Mayer e no Galo, por aí.

Onde trabalhava nessa altura?

Numa empresa ligada ao Ministério da Educação. Corri o país todo a ver terrenos para escolas, era a melhor profissão do mundo, andar de carro a conhecer os sítios todos do país. Em Lisboa foi assim, essa fase toda de convivência e trabalho e de começar a pintar. Fartei-me de Lisboa e fui para Sintra por causa do vinho Ramisco.

Porque se fartou?

Levava uma vida… Entrava às 9, às vezes nem me deitava. Morava no Restelo, tinha uma casa porreira mas decidi que ia para Sintra. A minha mulher também quis ir. Era um ambiente diferente, mais calmo. Vinha todos os dias para Lisboa trabalhar e às vezes ficava. Nunca deixei os amigos e a vida de Lisboa.

E como era essa vida?

Ia ao café Montecarlo e ao café Gelo na Baixa, mas o Montecarlo era fantástico. Era um tempo em que havia pessoal com carroças de Caneças para abastecer os hotéis. 

E não ia ao Cais do Sodré?

Às vezes, mas só ia lá beber e partir pratos a dançar no bar grego. Éramos libertinos, procurávamos tudo o que fosse extravagância. Era uma vida excessiva, o dia e a noite eram muito pegados.

E em Sintra?

Comecei a apaixonar-me pelo vinho tinto, o Ramisco, um vinho de Colares fora de série. Ia à adega do Saraiva, jantava lá sempre. Em Lisboa era só bebidas brancas, em Sintra havia a cultura do vinho. A vida alterou-se e comecei a viajar muito, mas principalmente em Portugal. Também lia muito. Agora é mais difícil por causa das cataratas, vamos ver como vai ser mas vou tentar. Nesta altura continuava a trabalhar na mesma empresa escolar e corria quase todas as cidades e aldeias. Há sítios fantásticos em Portugal, na comida e na paisagem. Aveiro é uma cidade fantástica. Todos os dias tenho saudades de Aveiro, é uma coisa curiosa. Sou um indivíduo que tem saudades do país, de terra a terra quase.

Provou muitas comidas pelo país fora?

Fazia viagens de propósito para comer, daqui a Espanha. Já fui e vim de San Sebastian para ir almoçar ao Arzac. Fui lá várias vezes. Quando me apetecia, pronto. Mil e tal quilómetros. Outras vezes ficava lá ou pelo caminho. É dessa vida de que tenho saudades. Agora ando afanado por causa disto [aponta para a perna], mas espero que daqui a um mês ou dois já esteja bem. 

Voltando à pintura. O que acha que o inspirou para pintar desta forma?

O tipo de pintura vai evoluindo. Cada vez que começo a pintar e paro, quando volto ganho outra garra. 

Mas o que lhe vai na cabeça?

É uma entrega muito forte. A pintura não é sempre igual e nasce da força que me vai na cabeça. Quando começo a pintar, às vezes nem paro, ou melhor, nem parava, tenho que estar um mês no ateliê a procurar pintar. Um mês a ganhar força, sei lá. Pensar no que faço ou não faço. Os meus quadros são todos diferentes. Esta maneira de agarrar a pintura é muito interior.

Tem pintado desde a operação?

Não consigo ir para o ateliê. Estou a tentar fazer algumas coisas muito pequeninas, sentado. Até porque tenho que me distrair. E distrair não é só ir a Ayamonte (risos). 

O restaurante abriu em 81?

Lisa: Nesse ano e no ano a seguir só abriu em agosto. 

A ideia de juntar os nomes surgiu de quem?

Vila: Surgiu naturalmente. Ele é o Vila eu sou o Lisa ficou Vila Lisa (risos).

E quem decidiu abri isto?

Lisa: Aí acho que posso intervir. Numa bela manhã de verão na Meia Praia, para aí em julho, aparece-me o Vila com um colchão repimpa debaixo do braço, daqueles colchões antigos que se levava para a praia. Ele andava sempre com um desses, era cheio no início do verão e só era vazado no fim (risos dos dois). Disse-me que ia almoçar mas que estava chateado porque os restaurantes só tinham comida da escola hoteleira. Isto foi em 80. Perguntei-lhe qual era o problema. Ele responde-me que eu tinha uma casa na Mexilhoeira vazia e que podíamos abrir uma casa de comidas. Achei que era mais uma ideia maluca do Vila. 

Mas o Vila já tinha tido ideias malucas?

Lisa: Como já dissemos, era conhecido em Lagos como o Zé Bandido. Naquele dia fui dar um mergulho mas não pensei mais no assunto. Só que meteu-se-lhe aquilo na cabeça e acho que eu ainda nem tinha acabado o mergulho e já estavam os pedreiros a partir a casa (risos).

De quem era a casa?

Lisa: Do meu pai. Essa é outra história. O meu pai, que era uma pessoa muito conservadora, muito antiga, chega aqui, vê esta confusão toda e manda embargar a obra. Lá falámos com ele e depois da hora de almoço já estava a ajudar os pedreiros a trabalhar. Foi convencido a aderir ao projeto.

Quando abrem, em agosto de 81, que pratos serviam?

Vila: Abriu só esse mês. A ideia de abrir, como o Lisa estava a explicar, era de fazer comida algarvia. Sempre tive um paladar apurado para comida desde os tempos da casa da avó. A minha mãe era uma cozinheira fora de série. Quando ela estava a cozinhar toda a gente sabia e diziam: ‘A Anquinha (Ana) está a fazer o jantar ou o almoço’. Cheirava na terra toda. A minha mãe, como tinha um café, cozinhava de portas abertas, e as pessoas cheiravam a comida na rua e adivinhavam se era cabidela ou isto ou aquilo. O gosto pela comida vem daí, sempre tive um prazer pela comida simples que não consigo ainda hoje comer outra coisa.

Então e o Arzac?

(risos) Não consigo aderir à nouvelle cuisine se não for boa. Mas em Espanha não é isso, o Arzac não é isso. 

Voltando à gastronomia, sempre gostou de comer? 

Sempre comi pouco. 

Continuando no restaurante…

Quando abriu ainda estava em Lisboa, vinha só aos fins de semana e nas minhas férias, e não tinha onde comer. Abrimos isto e convidávamos a malta para vir cá jantar, de dia também íamos para a praia. Era sempre sopa de grão com rabo de boi. Levávamos x a cada um para pagar a despesa. Basicamente servíamos o que servimos agora. Depois, a partir de 83, é que começámos a fazer como agora. Em julho, agosto e setembro abrimos todos os dias. No resto do ano à sexta e sábado. 

Quando abrem há intelectuais de esquerda que começam logo a vir cá. Como se tornou um fenómeno?

Lisa: Julgo que foi a comunicação social. O Miguel Esteves Cardoso, por exemplo, escreveu logo muito sobre isto.

Vila: Não, eu conhecia muita gente em Lisboa. Começaram logo a vir à adega comer grão com rabo de boi e outro prato. Se calhar funcionou assim um ano. Depois um trouxe o outro e isto alargou, acho que foi muita boca a boca. Os jornais vieram mais tarde.

Como se mantém um fenómeno de popularidade durante 35 anos?

Não mudando a base, fazendo sempre pratos algarvios.

É ou não é verdade que o James Gandolfini, o Tony Soprano da série, dançou em cima da mesa?

Não, dormiu em cima da mesa! Aquela ali (apontam para uma das mesas corridas). E encheu a mesa, era muito grande (risos). Comeu um prato de sopa e depois foi-se deitar. Ele veio com o Robert De Niro. 

Que outras personagens famosas cá vieram.

O Serge Gainsbourg trazia uma série de raparigas e rapazes novos com ele e depois andava do lado de fora, de janela em janela, a pedir bacalhau, que nós não tínhamos. Depois não comia nada, só fumava Gitanes à janela, sempre de copo na mão. Só bebia vinho, não comia, andava sempre de pé. Um dia lá lhe fizemos bacalhau, passou a noite inteira a gritar ‘bacalao’ mas não comeu nada (risos). Vinha de táxi do hotel Penina, o táxi ficava ali fora à espera dele. No início ainda contávamos o dinheiro que ele deixava, depois deixámos de o fazer. Se chegasse, chegava. Mas a maioria das vezes sobrava, uma vez a conta dele era 25 contos e ele deixou 45. Quando era para pagar, agarrava no maço de notas, nem via quanto era.

Adaptaram alguma receita algarvia?

Lisa: Tentamos que seja o mais típico possível. O Vila é que é o mestre, aprendeu a conjugar os sabores com a mãe. Depois com as vivências que teve pelo Algarve fora aprendeu a comer marisco com uma personagem que havia aqui na Mexilhoeira que era mariscador e aprendeu o gosto da simplicidade. Por exemplo, do lingueirão aberto na chapa com um bocadinho de limão por cima. Aliás o lingueirão que se come aqui é assim, são grandes passados na chapa. Aprendeu as coisas simples do povo e reproduziu-as aqui.

Essa é a magia da comida portuguesa?

Lisa: Talvez seja. A simplicidade e a qualidade dos produtos. Por exemplo, nós temos aqui um prato que é o polvo assado no forno. É evidente que se vende por aí polvo da Mauritânia tenríssimo e que se desfaz na boca, mas onde está o sabor dele? É muito mais barato que o polvo da nossa costa, como o de aqui de Sagres, que até é um polvo um bocadinho rijo que tem mastigação, mas tem um sabor fora do normal. A batata, uma das entradas. O que faz a diferença é o azeite. Se eu puser aqui o azeite Gallo ou Oliveira da Serra nunca mais chego lá. E se for uma batata que não presta e que saiba a terra a mesma coisa. O truque é o tempero simples conjugado com as coisas boas. 

E a paixão não é precisa?

Lisa: Claro! Mas a qualidade do produto é a base, a partir daí as coisas surgem. O lingueirão que aqui usamos, por exemplo, é apanhado na ria de Alvor com sal. Não tem nada a ver com o lingueirão apanhado com uma fisga, que vem magoado e traz areias. Este não, põe-se umas pedrinhas de sal no buraco, que parece uma fechadura, e o bicho vem ao de cima e é apanhado à mão na maré vazia. O pão que servimos também é feito na Mexilhoeira, é um pão fantástico. 

Qual foi o quadro mais caro que vendeu até hoje?

Dois mil euros ou coisa assim. Mas os meus quadros, não é por vaidade, valem mais dinheiro. Tenho muitos colecionadores, e também amigos, que me compram quadros. O Gigi já tem uma coleção minha. 

Quando descobriu que era daltónico?

Disseram-me (risos). E também já tinha percebido, mas isso para mim em termos de pintura não me interessa nada. Sei as cores que vou aplicar, vejo nos tubos. E conjugo ou desconjugo tudo. Nunca interferiu em nada.

Disse numa entrevista que dava quadros por raiva. Porquê?

Para fazer mais. Porque gostava dos quadros e das pessoas mas dava-os por raiva porque sabia que ia fazer mais. A raiva, entre aspas, dá-me força. A revolta.

Por que não vendem refrigerantes ou cerveja?

Lisa: Faz parte. A nossa alimentação é assim, isto partiu do princípio que era uma tasca.

As tascas vendem essas coisas…

Vila: Pronto, isto partiu do princípio de ser uma casa para se comerem coisas boas. Os refrigerantes são só para crianças ou coisa assim. E a cerveja não liga bem com a comida.

Vocês são ditadores, portanto.

Somos sim! (risos)

Vila: A ideia de abrir a casa nunca foi como restaurante mas como passatempo ao fim da tarde, e nesse passatempo não se ia comprar sumos para os amigos beberem. E abriu assim e pronto.

Lisa: E convenhamos que acompanhar a refeição com refrigerantes é estragar a comida! (risos) Vinho branco ou tinto e água. Mas não proibimos outras bebidas, quem faz questão de beber cerveja atravessa a estrada e há uma senhora aqui da frente que vende. Ela é que faz bom negócio com isso. Deixamos entrar as garrafas e depois vamos levar o vasilhame. 

Alguém conhecido já ficou à porta?

Lisa: O Mário Soares vinha cá muitas vezes, mas uma vez não marcou mesa e o motorista veio cá perguntar se havia lugar. Disse-lhe que tinha tudo cheio mas ainda me veio à cabeça perguntar se havia cá alguém do PS que cedesse gentilmente o lugar. Acho que nesse dia ele decidiu à última da hora, na altura em que isto era só tinha três mesas. 

Quando aumentaram o espaço?

Em 1995, por aí. Em agosto, nos anos 80, isto era a loucura, só com três mesas. Havia filas à porta. Começámos a meter as mesas na rua e tudo. Agora cabem cá 80 e tal pessoas ao mesmo tempo, na altura era só 25. 

Quantas vezes rodam o turno?

Lisa: Duas vezes, às 20h e às 22h em certos dias de verão. Mas não corremos com as pessoas em ponto, há sempre uma tolerância. Comem ao balcão um aperitivo, vão bebendo um copo. É como na Assembleia da República, os deputados têm sempre o seu tempo para falar mas depois dão-lhes sempre tolerância (risos).

Tem ideia de quantos quadros já pintou na vida?

Talvez quinhentos. 

Vai mudando os quadros que tem aqui expostos?

Sim, até porque vou vendendo alguns. Dantes às vezes até tinha o preço afixado.

Quais são as suas grandes referências na pintura?

Posso ter influências mas não imito, espraio a minha pintura.

Continua a beber gin?

Sim. Todos os dias bebo um nos bares por cima da praia. Mando meio gin de cada vez para depois beber quatro, e assim passo as manhãs. A beber gin tónico e olhar para a praia. Agora que não posso andar é mais difícil.