Como pode a Índia ser o país que mais carne de vaca exporta?

80% da população indiana pratica o hinduísmo, uma religião que encara a vaca como um ser sagrado. No entanto, a Índia exporta, por ano, mais de dois milhões de toneladas de carne deste animal. Como se explica este fenómeno? 

O hinduísmo é uma religião praticada por 80% da população indiana. É também uma crença que encara a vaca como um animal sagrado. Como pode então a Índia ser o maior exportador mundial da carne deste animal?

As vacas são sagradas em várias religiões, como o hinduísmo, o jainismo e o zoroastrismo. Já nas civilizações mais antigas, este animal era visto como um símbolo de riqueza, já que as populações dependiam das vacas para o consumo de leite e derivados, para lavrar as terras e usar as suas fezes como fertilizante. Apenas as famílias com mais posses conseguiam criar estes animais, daí que, em algumas civilizações, fossem tão valorizados quanto os materiais mais preciosos. Muitas das crenças surgem no seguimento desta dependência da vaca, que tanto contribuía para o bem-estar do povo.

Mas este animal nem sempre foi visto como um ser sagrado: de acordo com o livro ‘The Hindus: an Alternative History’, de Wendy Doniger, “os Brâmanas [textos sagrados] dizem que um búfalo ou vaca deve ser morto quando um convidado chega, uma vaca ser sacrificada para Mitra [deus do sol] ou para Varuna [deus arquiteto e ferreiro], e uma vaca estéril para Marutas [filhos dos deuses Rudra e Diti], e 21 vacas estéreis devem ser sacrificadas no sacrifício do cavalo”. Para além disso, evidências arqueológicas mostram ossos de vaca com marcas de faca, o que sugere que a carne terá sido consumida.

Com o passar dos séculos, também as crenças religiosas sofreram transformações, tornando-se nalguns casos mais extremistas. 

Hoje em dia, na Índia, a vaca continua a ter um papel importante na sociedade – o leite bovino, por exemplo, continua a ser fundamental nas cerimónias religiosas. Dado o seu estatuto, algumas vacas são deixadas a vaguear pelas ruas – até em Deli, a segunda maior cidade indiana, estes animais passeiam pelas ruas movimentadas sem serem importunados. 
Mas há quem veja nestes bovinos uma oportunidade de negócio em crescimento: em 2015, a Índia exportou dois milhões de toneladas de carne de vaca, mais 200 mil toneladas que a Austrália e mais 400 mil que o Brasil. No entanto, parte deste número deve-se à exportação ilegal – como explica o jornal “The Times of India”, muita da carne de vaca exportada é-o em contentores onde deveria seguir apenas carne de búfalo. De acordo com o mesmo jornal, o governo chegou até a instalar laboratórios nos portos para que a carne fosse testada antes de ser exportada. Para além disso, existe o problema dos matadouros ilegais. 

Estima-se que existam cerca de 30 mil espaços destes na Índia. Muitos destes são propriedade de muçulmanos, para quem o consumo de carne de vaca não representa um problema. 

Há que ter em conta também que a lei que proíbe o abate de vacas não é aplicada em todo o país – cada estado tem a sua legislação no que diz respeito a este assunto, o que faz com que, em muitas regiões, seja permitido matar estes animais. Por isso mesmo, milhões de vacas são levadas de um lado para o outro do país, para serem mortas nos estados onde é permitida esta prática.

Ou seja, a vaca é “sagrada” para todos os indianos, mas cada um encara este termo como lhe convém: milhões não consomem a sua carne, enquanto outros milhares veem neste alimento um negócio em crescimento, capaz de competir com as maiores potências mundiais.