Natascha Kampusch. Fugir de uma prisão para cair noutra

A jovem austríaca que há dez anos escapou a um homem que a tinha raptado ainda criança e que a manteve em cativeiro durante oito anos escreveu um segundo livro em que conta como a vida em liberdade não tem sido fácil, e como sente que fugiu de um inimigo mas ganhou milhares.

Natascha Kampusch. Fugir de uma prisão para cair noutra

Para todos os males só há dois remédios – tempo e silêncio. Uma frase sublinhada entre as páginas de “O Conde de Monte Cristo”, livro que em muitas das suas passagens servirá de bálsamo a quem se viu sequestrado num inferno terreno sem um anjo nas repartições do céu a quem pedir deferimento. “Quero reaver a interpretação da minha própria história.” Foi esta a resposta que Natascha Kampusch deu a um jornalista que lhe perguntou por que não virava costas, não deixava apagar-se a memória dos 3096 dias que passou em cativeiro. 

Nascida num subúrbio de Viena, aos 10 anos Natascha já perdera de vista a infância. “Estava habituada a lidar com gente perturbada”, disse ao “The Guardian”, em relação ao bairro onde vivia. Deprimida e solitária, era comedora compulsiva. Divorciados, os pais não a poupavam a insultos, e também não viam mal nenhum em temperar a sua educação com alguns tabefes. Na manhã de 7 de Março de 1998, o primeiro dia em que fez sozinha, a pé, o caminho para a escola, deu por um homem junto a uma carrinha branca. Detetou algo de suspeito apesar do seu ar composto. O instinto estava certo e ao passar ao lado da carrinha o homem puxou-a.

Oito anos numa cave de seis metros quadrados sem janelas, insonorizada, debaixo da garagem do raptor, Wolfgang Priklopil, no próspero subúrbio de Strasshof. A 23 de Agosto de 2006, Natascha reaparecia passados anos de uma grande operação de busca sem sucesso, acabando o seu rosto entre inúmeros outros que ficam como reticências sem continuação nas listas de desaparecidos. Esquálida, a jovem foi vista a correr pelos subúrbios de Viena, numa imagem que poderia ter servido de vinheta para os contos mais negros dos Irmãos Grimm. O público, preso à história, ansiava pelas primeiras palavras da criança que escapara das garras do monstro. Apesar de ter confirmado que sofrera abusos de toda a ordem, Natascha recusou-se a servir detalhes sórdidos, como recusou a linearidade do papel da vítima, indo ao ponto de confessar que chorou ao saber da morte de Priklopil.

Na noite do dia em que escapou, o corpo do seu raptor apareceu numa linha de comboio. Mas o que parecia um final feliz ficou arruinado a partir do momento em que Natascha revelou empatia com Priklopil. No primeiro comunicado à imprensa, a 28 de Agosto de 2006, disse: “Por vezes, simbolicamente falando, ele era o meu apoio e, outras vezes, aquele que me batia. Foi parte importante da minha vida e, por isso, sinto alguma tristeza por ele.” Depressa a onda de comoção com a jovem deu origem a mensagens de ódio, insultos e até agressões.

No livro de memórias que escreveu e publicou em 2010 – “3096 Dias”, o mesmo título da adaptação ao cinema em 2013 -, a jovem não se limitou a colorir dentro dos contornos da horrífica fábula que se construíra na cabeça de tantas pessoas quando escapou e as notícias do que lhe acontecera correram o mundo. Natascha revelou-se uma escritora com um aguçado sentido crítico e uma capacidade de dissecar de forma acutilante os anos que passou em cativeiro. O livro tornou-se um best-seller, mas não serenou a antipatia em relação a si, e segundo ela, continuaram a chegar-lhe reações adversas de pessoas que não gostaram de a ver ganhar dinheiro com a sua história. Também não lhe foi perdoado o não ter alimentado o fascínio e até curiosidade mórbida em relação aos abusos que sofreu às mãos do seu raptor. “Claro que fui sexualmente abusada, mas o facto de já ter falado e escrito sobre isso não é suficiente. Algumas pessoas acham que tenho de recontar cada pormenor”, diz num excerto do seu novo livro, “Dez Anos de Liberdade”, lançado recentemente na Alemanha e na Áustria.

Natascha debruça-se agora sobre as dificuldades por que tem passado desde que se libertou. “Fugi de um inimigo e de repente tinha dezenas de inimigos, milhares até, em alguns fóruns da internet”, disse numa apresentação do livro em Berlim, relatada pelo “The Times”. E reage à série de fantasiosas e sórdidas teorias que têm circulado na internet, sobre o que realmente se terá passado naqueles oito anos. As mais persistentes destas teorias contam que Kampusch e Priklopil tiveram um filho, e que este supostamente foi enterrado no jardim da casa, ou que o raptor integrava uma vasta rede de pedofilia que contará entre os seus membros com figuras de alto perfil da sociedade austríaca. Para alguns, o antigo engenheiro de telecomunicações, que tinha 44 anos quando Natascha fugiu, não se suicidou, mas foi assassinado. E Natascha não entra em mais detalhes porque está, afinal, a esconder um terrível segredo: a suposta rede de pedófilos.

Para Natascha, o fascínio que o seu caso provoca prende-se com o entrar no domínio do inimaginável. Se vários especialistas notaram que é normal que tenha desenvolvido laços de afeição com um homem que foi a única presença na sua vida ao longo de tantos anos, e que se lhe batia e violava, também a alimentava e lhe lia histórias, no seu novo livro Natascha refere que a sociedade precisa de “supostos monstros como Wolfgang Priklopil para dar um rosto ao mal que vive nelas. Precisam de fotografias de masmorras em caves para evitar ver toda a violência que está escondida atrás de uma fachada burguesa e de todas essas casas com jardins.”