Teresa de Calcutá : a santidade em tempos de cólera

Nem duas décadas depois da sua morte, a freira que ganhou o Nobel da Paz e ficou conhecida como a missionária do século XX, foi canonizada no domingo, mas não sem alguma controvérsia

Foi eleita algumas vezes a pessoa mais admirada do século XX. Este domingo, a aura de santidade que fez da sua história a mais poderosa lenda moderna da Igreja Católica, foi oficialmente proclamada numa cerimónia presidida pelo Papa Francisco na praça de São Pedro, no Vaticano. Depois de mais de 300 mil peregrinos se terem dirigido a Roma, em 2003, para a sua beatificação, Madre Teresa de Calcutá recebeu agora o mais alto grau canónico da Igreja católica, na véspera do 19º aniversário da sua morte. No entanto, a canonização da mulher que se tornou conhecida como a “Santa das Sarjetas”, é uma questão controversa e veio reacender o debate em volta dos méritos do seu trabalho de caridade e quanto à natureza do legado que deixou. 

Tendo-se tornado uma figura icónica da fé católica, Teresa de Calcutá é reverenciada não só por cristãos, mas pelos muçulmanos e hindus, com a sua dedicação aos “mais pobres dos pobres” a ser reconhecida com o Nobel da Paz, em 1979.

Nascida Anjezë Gonxhe Bojaxhiu, a 26 de Agosto de 1910 em Skopke, na Macedónia (na altura território albanês), Teresa fez votos aos 18 anos nas Irmãs de Nossa Senhora do Loreto, mas foi 18 anos mais tarde, em 1946, durante uma viagem de comboio entre Calcutá e Darjeeling, que sentiu o apelo que a levaria a fundar, quatro anos depois, a Ordem das Missionárias da Caridade.

Para os seus admiradores, é inquestionável a santidade de uma mulher que se debateu com profundas crises de fé, que muitas vezes se sentiu incapaz de rezar por se sentir abandonada por Deus – a tal ponto que na sua correspondência (que só foi tornada pública em 2007, quando foi promovida a sua beatificação) fala do período de quase 50 anos em que enfrentou um vazio espiritual que a deixou à mercê de “torturas infernais”, mas que assim mesmo prosseguiu aquele que considerava ser o seu chamamento, uma imensa obra espalhada por 133 países. Desde casas de acolhimento para moribundos, lares para os sem-abrigo, vários serviços de sopa dos pobres, clínicas para leprosos, centros para o tratamento dos doentes com HIV, e orfanatos, escolas, centros de acolhimento para mães com bebés de colo, centros de reabilitação para toxicodependentes e alcoólicos. Uma das mais impressionantes redes de caridade, são 4500 as freiras que, todos os dias, procuram seguir o exemplo de sacrifício e dedicação de Teresa no esforço para aliviar o sofrimento de pessoas que dão por si em situações de um desamparo e desespero inimagináveis.

Ainda que os feitos de Madre Teresa sejam, só por si, um testemunho de grande fé e altruísmo, ao longo das décadas foram vários os críticos – e alguns deles figuras notáveis – que colocaram em causa o bem pelo qual toda a vida se bateu. O mais firme e eloquente dos seus detratores foi o jornalista e escritor britânico Christopher Hitchens que, em 1994 , lhe dedicou um filme chamado “Hells Angel” (Anjo do Inferno). A sua principal tese, que viria a ser desenvolvida no livro “Missionary Position”, publicado no ano seguinte, é de que a Madre Teresa era um personagem que, com todo o socorro que prestava aos miseráveis, na verdade estava a traí-los pois todo seu trabalho passou por tratar os sintomas da pobreza sem questionar as suas causas. No pequeno documentário, Hitchens oferece exemplos de várias opções questionáveis da freira, nomeadamente ao manter relacionamentos e receber dinheiro de algumas figuras obscuras tanto da política como personalidades do mundo dos negócios envolvidos em falcatruas, entre os quais se destacam o ditador haitiano Jean-Claude Duvalier e o financeiro norte-americano Charles Keating. “Ela até pode trazer algum conforto aos aflitos, mas nunca se distinguiu por trazer aflições aos confortáveis”, adiantava o jornalista. “Madre Teresa admira a força dos poderosos quase tanto como encoraja a resignação dos pobres.” Neste retrato daquela que foi para muitos a “missionária do século XX”, ela surge não como uma figura que lutou pelos pobres mas antes alguém que ajudou a perpetuar os desequilíbrios que garantem que há cada vez mais pessoas a depender de caridade.

“O culto de Teresa é hoje uma multinacional do missionarismo, com receitas anuais na ordem das dezenas de milhões. Se estes valores fossem investidos em Calcutá, isso poderia certamente financiar um hospital e talvez produzir uma diferença significativa. Mas a Madre Teresa preferiu espalhar o seu franchise com recursos mínimos.

No fim, ela, o convento e o catecismo assumem prioridade sobre as clínicas”, diz Hitchens. E é justamente o tipo de cuidados de saúde oferecidos em Calcutá aos pobres que podem provar ser o aspeto mais polémico da ação das freiras, e que levou o escritor a falar num “culto de morte e sofrimento”. 

Essa avaliação negativa foi recentemente corroborada por investigadores das universidades de Montreal e Otava, que concluíram num relatório divulgado em 2013, que Teresa não merece a reputação de santa devido “à mais que duvidosa forma de cuidar dos doentes, a associação problemática a figuras políticas, a gestão suspeita das enormes somas de dinheiro que recebeu, e os seus pontos de vista excessivamente dogmáticos a respeito de questões como o aborto, a contraceção e o divórcio”. Serge Larivée, um investigador da Universidade de Montreal, afirmou que “dada a tão parcimoniosa gestão das obras de Madre Teresa, é-se levado a questionar onde foram parar os milhões de dólares que recebeu para socorrer os mais pobres dos pobres?” Nas entrevistas que realizaram, os investigadores descobriram que a grande maioria dos pacientes que chegaram às missões dedicadas a casos terminais esperavam encontrar médicos que lhes prestassem algum tipo de cuidados paliativos, mas o que tinham à sua espera eram espaços sem condições de higiene, as seringas eram reutilizadas sem serem esterilizadas, a alimentação era inadequada e para controlar as dores não havia mais que a aspirina. Hitchens tinha já enunciado todos estes problemas, e em 1994 a revista científica britânica “The Lancet” visitou a casa para moribundos de Calcutá e contou que as freiras nem sequer conseguiam fazer a distinção entre pacientes terminais e aqueles que podiam ser curados. Em defesa das suas casas para os doentes terminais, a freira lembrou que não se tratava de um hospital. “Nós não somos enfermeiras, não somos médicos, não somos professores nem somos assistentes sociais. Somos religiosos.”

A par da compaixão com os pobres, Madre Teresa foi uma das figuras que rejeitou de forma mais veemente o consumismo. Por outro lado, algumas vezes a sua “ostentação do anti-materialismo” raiava o extremismo, e exemplo disso foi a forma como, no seu convento de São Francisco, mandou que todos os colchões, carpetes, cortinados e sofás fossem retirados, porque o conforto corrompe. E deixou de abrir uma casa para acolher os pobres do Bronx depois das autoridades terem insistido que o edifício teria de ter um elevador. Depois havia a sua sublimação do sofrimento, que para ela era uma manifestação da “beleza” na medida em que permitia aos pobres “partilharem a paixão de Cristo”. Curiosamente, quando os problemas de saúde a afetaram a ela, o que era bom para os seus pobres já não foi bom para ela, e teve direito aos melhores cuidados de saúde em hospitais com todas as condições.

Outra conclusão retirada pelos académicos canadianos, em 2013, e depois de terem vasculhado cerca de 96% de toda a literatura que se referia ao ícone da Igreja Católica, foi de que a sua reputação como a grande santa do século XX se ficou a dever a uma operação de marketing à escala global. 

Entretanto, também na Índia, país onde Teresa realizou a maior parte do seu trabalho, o seu legado tem sido posto em causa, e no ano passado o líder do grupo nacionalista hindu Rashtriya Swayamsevak Sangh causou uma onda de indignação ao questionar as verdadeiras intenções da freira. “É meritório dedicarmo-nos a uma causa por razões altruístas, mas o trabalho de Madre Teresa tinha um motivo ulterior, que era converter a pessoa que estava a ser atendida ao cristianismo”, disse Mohan Bhagwat na inauguração de um orfanato no estado do Rajastão em Fevereiro de 2015. “Em nome do serviço aos pobres, foram feitas conversões religiosas. Um exemplo que foi seguido por outras instituições.”

Mas se têm sido muitas as vozes críticas, isso não atrasou nem parece ter criado grandes obstáculos à canonização de Teresa. “Ela ergueu um império de caridade”, disse o padre Bernardo Cervellera, editor da agência de notícias afiliada ao Vaticano, a AsiaNews. “Ela não tinha um plano para conquistar o mundo. A sua ideia era ser obediente a Deus.”

Os defensores de Madre Teresa garantem que nunca procurou estar de bem com os ricos e poderosos para seu benefício, mas que tinha uma missão muito difícil a fazer num mundo cheio de problemas. Em vez de se deixar desmoralizar, acreditava que mesmo o dinheiro ganho de forma desonesta pode ser resgatado, redimido se for usado para o bem.

O que os críticos chamavam de hipocrisia, talvez não fosse mais do que a réstia de esperança para aqueles que se propõem afetar a vida de muitas pessoas, e que portanto são forçados a encarar os desafios com uma boa dose de pragmatismo. Afinal, também Jesus conviveu com personagens com uma reputação duvidosa.

A combinação de fé pessoal, absoluta dedicação, clareza nos seus propósitos e mesmo um certo instinto para as relações públicas, fizeram dela um génio no que toca às competências organizacionais, de tal modo que, segundo as palavras do antigo secretário-geral da ONU, Javier Pérez de Cuéllar, uma simples freira se tornou “a mulher mais poderosa do mundo”.

Num artigo de opinião assinado no “The Guardian”, Paul Vallely, um dos maiores especialistas em religião britânicos, afirma que se tratou de um erro apressar a canonização de Madre Teresa, uma vez que não foi dado o tempo necessário para que as suas fraquezas se apaguem da memória coletiva. O escritor nota que um santo não é uma pessoa perfeita mas uma pessoa cujos atos procuram o sagrado. Lembra ainda que uma das qualidades que a Igreja Católica requer para canonizar uma pessoa é que esta tenha revelado uma “virtude heroica”. No passado a Igreja deixava passar décadas, até mesmo séculos, antes de declarar alguém um santo. O tempo permitia que as falhas fossem esquecidas, impondo-se essa virtude capaz de inspirar todos os homens.