Chiara Ferro. ‘Só como uma pasta carbonara em Itália’

Desde 2012 que a Osteria, uma tasca italiana aberta por Chiara Ferro, está na ribalta dos restaurantes italianos em Lisboa. A “chef”  (entre aspas porque a  designação a irrita) acaba de lançar o “Al Dente”, um livro onde desfaz mitos sobre pastas e partilha receitas que pode provar no restaurante.

Chiara Ferro. ‘Só como uma pasta carbonara em Itália’

A pasta é vista como uma proteína, por isso comê-la com carne – por exemplo, almôndegas – não faz sentido nenhum, mas receitas onde a massa e batata se juntem já são normais. Nunca se mistura alho com cebola. A beringela é a melhor amiga do azeite porque é porosa e absorve-o, depois é preciso ter calma e deixá-la ‘expelir’, por si própria, o excesso. Cortar o esparguete ou qualquer massa comprida dá direito ao purgatório. As natas servem para ligar os molhos e não afogar a massa.

Podíamos continuar mas queremos que leia a entrevista a Chiara Ferro, a italianíssima “chef” da Osteria na Madragoa que acaba de lançar – sim, a receita maravilhosa de pasta com beterraba que serve no pequenino restaurante está lá – um livro de receitas. Não traduzimos as expressões italianas porque transcrever uma conversa com a Chiara sem uns ‘dio mio’ pelo meio não seria a mesma coisa. Mandamentos à parte, se não começar pelo início, o desfecho da sua receita poderá ser mais mais agri do que doce: o segredo começa mesmo na massa.

 

Qual foi o maior desafio que sentiu ao fazer este livro?

Estou habituada a cozinhar mais para que o prato sai bom do que bonito, e por isso o mais difícil foi fazer 60 receitas em três dias para tirar as fotografias do livro. Não estava habituada e enlouqueci (risos).

Explica algumas receitas no livro que são pratos do restaurante. Não tem medo que partilhar o segredo lhe roube clientes?

Não tenho absolutamente medo nenhum porque meter as receitas no livro também diz a toda a gente que são servidas aqui. Se alguém as copiar faço outras (risos). O livro é uma mistura de receitas mas que seguem as regras italianas básicas. Por exemplo, cebola e alho não se misturam.

Mas batata e pasta já se misturam?

Sim, muito! A maioria dos portugueses não sabe até porque aqui não há montanhas altas o suficiente onde cresce a batata boa, a batata precisa altitude.

Qual é o seu produto fetiche?

Só um, mas isto é uma tortura?

Sim, o primeiro que lhe vem à cabeça.

O camarão cru da lagoa de Veneza, chama-se carabineiro mini. Estou a enlouquecer para o encontrar aqui. Gosto de o comer cru só com azeite, pimenta e sal, nem se põe limão. É brutal, derrete na boca, parece manteiga.

Vai regularmente a Itália?

Gostava de ir mais. Tenho ido em trabalho, vou lá comer, portanto (risos).

Já que fala nisso, o que é uma refeição ideal para si?

Dio mio… nisso vou contra todas as regras. Quando estou sozinha como sempre a mesma coisa: pasta com manteiga! (risos). Adoro a manteiga em geral, isso dá-me um conforto incrível.

No livro fala da polpa de tomate…

Está no fogo agora.

Diz que não pode falar de marcas mas sugere às pessoas que venham à Osteria ter consigo. Aqui já pode dizer?

No Osteria só uso pomodoro S. Marzano da marca Mutti e as pastas são todas da Rummo, que é feita de trigo que não levou qualquer químico. Mas no livro dou apenas sugestões para que as pessoas consigam encontrar alternativas no supermercado. Uma boa pasta é a base mais importante.

O que é para si um bom cozinheiro?

Um bom cozinheiro é uma pessoa que não se abate quando erra, que gosta de comer e que aceita desafios. Tenho um vício horrível que é o de servir pratos que raramente experimento, adoro a sensação arriscar e conseguir. Até agora correu sempre bem, tive sorte. Também fazia isso quando cozinhava na embaixada de Itália aqui em Lisboa.

Foi por isso que veio para Portugal?

Não, vim por amor, há 11 anos.

A palavra chef irrita-a?

Um bocadinho.

Como prefere ser tratada?

Gostava de ser chamada de marmiton, que são aqueles cozinheiros que não andaram na escola. Chef parece-me um bocado estúpido para me chamarem.

Qual é a sua memória gustativa mais antiga?

A papa de arroz e também uma sopa de pão com manteiga chamada pan cotto.

Há alguma receita de família no livro?

Os gnocchi, que são uma receita do meu papá, e a sopa de arroz com abóbora.

Toda a gente cozinhava na sua família?

Sim, toda a gente cozinhar é comum em Itália. Lá sou uma boa cozinheira, mas não sou extraordinária.

Lembra-se da primeira vez que cozinhou para muita gente?

Cozinhava muito com o meu pai, íamos apanhar cogumelos no Piemonte e fazíamos uma mangiata [à falta de melhor, comezaina]. A primeira vez que cozinhei sozinha para muita gente já andava na universidade a tirar Paleontologia. Não tem nada a ver (risos).

A Chiara é perfeccionista com os produtos que usa. Tem muitos problemas em arranjá-los?

Agora já tenho os fornecedores estabelecidos mas no início foi complicado, tive que provar muitas coisas. Hoje 90% dos meus produtos chegam de Itália. Só a tinta de choco é que vem de uma fábrica espanhola, mas neste caso o choco é que faz o trabalho todo!

Tem mais algum livro pensado, por exemplo, de sobremesas? Há pelo menos uma sobremesa da Osteria que já é famosa.

O mascarpone é a que as pessoas mais gostam [tarte de mascarpone com pane carasau, mel, alecrim e amêndoas]. Mas é impossível que eu venha a fazer um livro desses porque odeio sobremesas, não sou nada boa a fazê-las e tenho que me preparar psicologicamente, é terrível.

A Osteria é cada vez mais concorrida e muito pequena. Pensa em mudar?

Mudar não, porque ia descaracterizar completamente, mas poderia pensar em abrir outros espaços deixando este sempre aqui. Sinto-me muito feliz em Portugal. Adoro os portugueses e, felizmente, a grande maioria dos meus clientes são de cá. É muito fácil falar com eles e explicar-lhes os pratos. Depois de ouvirem, eles iluminam-se e dizem: “Pode ser, leva-me a Itália, faz como quiseres!”. E depois gostam mesmo muito de comer.

Qual é o seu prato português preferido?

Pezinhos de porco de coentrada. A primeira vez que comi foi num restaurante brutal em Évora. Foi uma experiência incrível porque serviram mesmo o caldo à parte e o pão crocante como se fazia antigamente.

Come-se melhor a sul, ao centro ou a norte de Itália?

Que pergunta difícil! Acho que não tenho uma resposta. O problema é que todas as regiões têm os seus pratos típicos. Se tiver de escolher uma região italiana com mais produtos premium terá que ser Bolonha. O prosciutto de Parma, parmesão, vinagre balsâmico, as lasanhas, os gnocchi, a bolonhesa, os bifes panados que, na verdade são de lá.

É verdade que os italianos nunca comem almôndegas com esparguete?

Sim, é verdade. A pasta é vista como uma proteína. Comemos sempre as almôndegas com puré ou com um acompanhamento vegetal. Claro que não é com salada, não se pode misturar o molho de tomate com vinagre. Dio mio, não façam isso!

No livro conta que há italianos que, se vissem alguém a partir a massa, deixavam de falar à pessoa em causa. Confesse que estava a exagerar…

Não, estava a falar a sério. Acho que ficamos mesmo horrorizados com isso. Como é se come esparguete curto assim [faz o gesto com as mãos]. É impossível, como se enrola no garfo, a sério? (risos) Não consigo perceber!

E as “carbonaras” que andam aí pelo mundo, também a irritam?

Um bocado, sim. Só peço carbonara em Itália. Acho que a comida italiana é a mais especulada do mundo. O problema é dar o nome de uma receita como a carbonara a uma coisa que não é carbonara. Não tenho problemas que me apresentem uma pasta com nata e bem temperada desde não lhe chamem carbonara! Usar um nome de uma receita tradicional só para chamar clientes é injusto.

Também encontrou essa “saga das natas” em Portugal?

Os primeiros sítios de pasta que surgiram em Portugal eram um pesadelo.Com certeza que há algumas receitas que levam nata, mas só um pinguinho para ligar.

Qual foi a coisa mais bonita que já lhe disseram da sua comida?

Há muitos portugueses que vêm cá e me dizem que a minha comida, mesmo sendo italiana, lhes lembra a cozinha das avós. Para mim é a melhor coisa que me podem dizer. Não são as receitas que os fazem sentir isso porque a maioria das avós portuguesas não cozinha comida italiana. Deve ser outra coisa qualquer. Talvez seja amor.