Elogios à venda? Sócrates pagava por palavras favoráveis

O blogue nasceu em 2005 e era pago por Rui Mão de Ferro, sócio de Carlos Santos Silva, que também sustentou uma avença a Domingos Farinho, o suposto autor do livro de Sócrates.

José Sócrates, enquanto primeiro-ministro, pagou uma avença mensal a um blogger para veicular opinião e informações favoráveis ao seu Governo, ao PS e a si próprio – defende o Ministério Público.

O blogger em causa, António Peixoto, escrevia sob o pseudónimo Miguel Abrantes no blogue Câmara Corporativa (também conhecido como Corporações), criado em 2005 para defender o Governo de Sócrates.

A equipa de investigação da Operação Marquês fez esta descoberta após recentes buscas a empresas de arguidos no processo. O blogger já prestou depoimento no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).

António Peixoto terá sido confrontado com registos bancários e de faturação que indicam que, desde meados de 2005 até dezembro de 2015, recebeu 3.550 euros por mês. O dinheiro era pago pela RMF, a mesma empresa que pagou uma avença a Domingos Farinho durante o período em que este professor de Direito terá escrito o livro de Sócrates A Confiança no Mundo.

E se, em relação a Farinho, a avença mensal passou a ser paga, a partir de certa altura, à mulher (ver caixa), no que toca ao blogger o pagamento seria feito a um seu filho, António Mega Peixoto, assessor desde 2015 do gabinete do presidente da Câmara de Lisboa. Pelo menos desde 2012 era o jovem quem passava os correspondentes recibos à RFM, sociedade de Rui Mão de Ferro, também arguido na Operação Marquês e que é sócio de Carlos Santos Silva em empresas sob investigação por suspeitas de branqueamento de capitais.

Duras críticas a Cavaco Silva e à oposição

Do ponto de vista das autoridades, os pagamentos a António Peixoto assumem relevância porque têm origem na fortuna acumulada formalmente em nome de Santos Silva, mas que a investigação suspeita pertencer a José Sócrates.

O Câmara Corporativa marcou a blogosfera no tempo dos governos de Sócrates, sendo conhecido pela defesa acérrima do Executivo socialista e as duras críticas ao Presidente Cavaco Silva, aos partidos da oposição e às suas figuras mais relevantes, num tom que variava entre o sarcasmo e a ironia. O SOL também era frequentemente alvo de ataques.

O blogue nasceu em setembro de 2005, seis meses depois do início do primeiro mandato de José Sócrates como chefe do Governo. Escrevia Miguel Abrantes no post de estreia do blogue: «O Câmara Corporativa tem, neste contexto, um objetivo preciso: denunciar privilégios (injustificados por natureza) e apoiar, tanto quanto um blogue recente o pode fazer, as propostas que visem romper os liames que asfixiam o país. Não pouparemos a crítica a setores profissionais, associações de classe ou setores de atividade que se comportem como obstáculos ao progresso».

Os primeiros posts, todos assinados pelo mesmo Miguel Abrantes, serviriam a estratégia inicial do Governo de Sócrates de atacar alegados privilégios de alguns grupos socioprofissionais: magistraturas, farmácias, Forças Armadas, PSP e GNR. Daí, aliás, a designação do blogue como Câmara Corporativa.

Além de Miguel Abrantes, o blogue anunciava outros nomes como colaboradores – Afonso Mesquita, João Magalhães, João Reinhart e José Soares – que se presume serem também pseudónimos de assessores de Sócrates ou de jornalistas seus simpatizantes.

 

Divulgava cronistas amigos

O Câmara Corporativa fazia o constante levantamento na imprensa dos artigos de opinião favoráveis a Sócrates, publicando os respetivos links (casos dos textos de Fernanda Câncio – então namorada do primeiro-ministro –, Estrela Serrano, Ferreira Fernandes, Vital Moreira ou Eduardo Pitta) ou a reprodução completa dos artigos quando não tinham acesso livre na net (como as crónicas de Pedro Adão e Silva no Expresso).

Sempre se especulou que Sócrates poderia ser a grande influência por trás do blogue, mas até se saber das suas relações com António Peixoto desconhecia-se como essa influência se processava. Com a posse do Governo da ‘geringonça’, em dezembro do ano passado, o blogue suspendeu a atividade. Mais uma vez, o post derradeiro foi assinado por Miguel Abrantes: «Com um Cavaco com os pés para a cova, um Passos à nora para conseguir afivelar uma nova máscara […] e um Portas, esfarrapadas todas as suas bandeiras (pescadores, lavradores, combatentes, contribuintes, pensionistas, etc.), a ultrapassar largamente o prazo de validade, a direita faz um compasso de espera que poderá desembocar numa remodelação dos líderes. […] O Governo merece, por isso, ter direito a um estado de graça. O CC aproveita para fazer um intervalo. Tendo em conta a infinitesimal participação do blogue para arriar a direita, perdoe-se alguma fanfarronice: missão cumprida».

 

Elogios ao livro de Sócrates

Em finais de 2013, quando se iniciou a Operação Marquês, tornou-se visível para o Ministério Público que quem controlava o blogue era o próprio ex-líder do PS.

Sócrates regressara ao país após um interregno em Paris, onde fez o mestrado na escola de Sciences Po (Ciências Políticas), e lançaria depois o livro A Confiança no Mundo, baseado no respetivo trabalho académico. Ora, o Câmara Corporativa tornou-se num espaço privilegiado para a promoção da obra, reproduzindo todos os textos da imprensa que lhe eram favoráveis. Entre eles, um de Vital Moreira considerando que o livro «tem seguramente assegurado um lugar de relevo na literatura sobre o tema – merece-o».

Curiosamente, António Peixoto também acompanhou a revisão final da obra, mantendo com Sócrates uma conversa sobre o tema dois meses antes da sua publicação.

A 13 de março de 2014, um dia após às alegações finais do julgamento do caso que ficou conhecido como Face Oculta, o procurador da República na audiência, João Marques Vidal, fez questão de salientar que o Governo de Sócrates sabia das escutas telefónicas que a Polícia Judiciária realizara sobre os suspeitos do processo, e que por essa razão estes tinham deixado de usar os telemóveis habituais.

A notícia deixou alarmada a entourage de Sócrates, e, no dia seguinte, Peixoto colocou-se às suas ordens, perguntando-lhe se, acerca «daquilo do procurador da Face Oculta, se se deve dizer alguma coisa ou é melhor estar calado agora».

O ex-governante respondeu que falariam disso depois, e que esperava «uma oportunidade para dizer umas quantas coisas a esse gajo» (o procurador), que acusou de «abusos do seu poder» por ter recolhido escutas telefónicas aos suspeitos quando falavam com Sócrates enquanto primeiro-ministro, alegando que não o podia fazer sem pedir autorização ao Supremo Tribunal de Justiça. «Ele é um procurador, não é um ativista político, ou não devia ser», rematou.