Elizabeth Gilbert. O amor e outras agências de viagens

Depois de “Comer, Orar, Amar”, o final feliz de Gilbert provou ser apenas um ponto e vírgula, e a viagem de autodescoberta que levou milhões de passageiros consigo continua a encontrar curvas e contracurvas

O amor puro e duro, da primeira à última vista, parece ter sido há tanto tempo. E se hoje, como na letra de Leonard Cohen, os corpos nus de um homem e de uma mulher surgem como cintilantes artefactos do passado, poucos são os que voltaram as costas ao assunto, os que riscaram essa linha do topo das suas listas pessoais ou a fizeram descer o suficiente para a felicidade já não ficar à mercê do sucesso ou insucesso nesse capítulo. Simplificando, as histórias românticas complicaram-se muito. Cada vez menos são as aventuras e peripécias de quem se arrisca até encontrar o par ideal e cada vez mais se tornam grandes escavações, autênticas odisseias nos recantos mais ermos e inóspitos de si mesmo, as 20 mil léguas submarinas no interior de cada um, antes que se possa interpretar o próprio coração.

Um bom exemplo será o de Elizabeth Gilbert. Depois do sucesso monstruoso de “Comer, Orar, Amar”, livro que passou quase 200 semanas na lista de best-sellers do “New York Times” e vendeu mais de 10 milhões de exemplares em todo o mundo, uma escritora de indubitável talento e que se vinha afirmando de forma consistente, assinando peças entre a reportagem e o ensaio pessoal nalgumas das melhores revistas norte-americanas, tornou-se uma celebridade e, mais que isso, uma guru não só em questões de criatividade, mas no género das aventuras de autoiluminação, e também uma espécie de conselheira conjugal. Depois de, no ano passado, ter anunciado que estava a divorciar-se do segundo marido – José Nunes, o importador brasileiro, 17 anos mais velho, que lhe deu o final perfeito para o livro, e que segundo ela foi o melhor souvenir que trouxe da viagem de autodescoberta –, no mês passado, Gilbert anunciou ao milhão e meio de seguidores da sua conta no Facebook que, afinal, está apaixonada pela melhor amiga dos últimos 15 anos. “Esta primavera recebi notícias que iriam mudar a minha vida para sempre. A minha melhor amiga, Rayya Elias, foi diagnosticada com cancro no pâncreas e no fígado – doença para a qual não há cura”, lê-se na mensagem que publicou na rede social. “A morte – ou a perspetiva da morte – consegue retirar do caminho tudo aquilo que não é real, e nesse espaço de realidade pura e dura vi-me confrontada com esta verdade: eu não sinto simplesmente amor pela Rayya, eu amo-a. E não tenho tempo para negar essa verdade.”

A irresponsável meia-idade Gilbert acrescentou ainda: “Para aqueles de vós que estão por esta hora a fazer contas, e se estão a perguntar se esta situação foi o que levou ao fim do meu casamento nesta primavera, a resposta simples é sim.” Entretanto, a escritora de 47 anos reconheceu recentemente que agora que pôs fim ao segundo casamento, há algo no seu comportamento que começa a parecer “irresponsável e as pessoas põem a hipótese de eu estar a passar por uma crise de meia-idade”. Por outro lado, quando deu a notícia tinha já escrito: “Preciso de viver a minha vida com verdade e transparência, mais ainda do que preciso de privacidade, boa publicidade, prudência ou da compreensão e aprovação das pessoas.”

Se os detalhes da vida pessoal de Gilbert têm alguma relevância é pela forma como permitem reler não só o seu livro de memórias publicado em 2006, mas repensar todo o movimento de autoiluminação a que este deu origem. “Comer, Orar, Amar” conta-nos a sucessão de eventos que a levaram, depois de um divórcio litigioso, aos 32 anos, que a deixou à beira da depressão, chegando ao ponto de considerar o suicídio, a deixar tudo para trás e viajar durante um ano pelo mundo. (Neste ponto convém colocar uma espécie de aviso legal ou, pelo menos, uma advertência: Gilbert encontrava-se tesa, na altura, e só pôde dar-se a tamanho luxo porque foi esse o extraordinário avanço que resultou do contrato com a editora, ficando comprometida a entregar, no fim, um livro sobre as suas experiências.)

A história viria a ser adaptada ao cinema em 2010, com Julia Roberts a tomar o papel de Gilbert, que não deixou de se mostrar muito satisfeita com a sua “versão trabalhada em Photoshop”. Por outro lado, a escolha levou Dana Stevens, crítica de cinema da revista “Slate”, a notar como, no fundo, Gilbert é a Julia Roberts dos escritores. Para Stevens, esse terá sido um dos poucos aspetos em que a adaptação conseguiu ser mais fiel ao livro.

Mas os novos capítulos da vida de Gilbert têm lançado uma luz inconveniente sobre a sua viagem de autorrevelação, o que levou alguns críticos, como Mackenzie Dawson, num artigo no “New York Post”, a denunciar o livro e as suas noções como mais um exemplo de banha da cobra no nível das terapias new age. Segundo ela, o livro segue essa vulgar fixação de que a resposta esteve sempre noutro lugar – “em destinos sempre muito fotogénicos, como Itália, Índia ou Bali (curiosamente, nunca ninguém parece encontrar a resposta na fila da autoridade portuária ou numa cidade industrial na província de Guangdong)”.

O problema da mais recente revelação pessoal feita por Gilbert, e disso ela parece estar ciente, é o quanto esta vem deitar por terra a ênfase numa noção perversamente romântica de que a resposta pode vir num pacote turístico idealmente concebido e promovido sob a forma de tendência cultural, numa viagem de descoberta espiritual. A resposta, no caso de Gilbert, parece ter, afinal, vindo a pedalar calmamente até ela, e tê-la-ia sempre visto passar, já que a perspetiva da morte acaba por visitar- -nos a todos.

Mas se, como frisa Dawson, o sucesso de “Comer, Orar, Amar” não pode ser responsabilizado pelo fenómeno do “turismo de iluminação”, desde a sua publicação, a indústria cresceu exponencialmente e, só nos últimos cinco anos, as agências de viagens anunciaram um aumento de 164% neste tipo de viagens espirituais. “Ao longo da última década, as mulheres têm sido encorajadas a pensar que não se deve olhar a meios no que toca a perseguir a verdadeira felicidade, seja embarcando num dispendioso retiro de ioga, num seminário de tema curativo ou numa excursão a outro país”, escreve Dawson. Entretanto, houve uma cadeia de hotéis de luxo em Bali, Tailândia e Butão que procurou capitalizar o sucesso do livro, tendo começado a oferecer excursões “Comer, Orar, Amar” dirigidas a um público maioritariamente feminino.

Outra inusitada decorrência do sucesso do livro foi o facto de, desde a sua publicação, a procura dos serviços do curandeiro balinês Ketut Liyer, que tem um papel central na trama do livro, ter aumentado a tal ponto que este se tornou uma verdadeira atração turística, com pessoas a esperarem em filas todo um dia só para vê-lo.

As críticas não são dirigidas a Gilbert, que nunca poderia ter adivinhado o profundo impacto cultural que o seu livro viria a ter, mas, como sublinha Dawson, o problema está num certo tipo de discurso que exorta as pessoas a “descobrirem a sua paixão”, uma indústria que alimenta a insatisfação para promover a busca constante e lucrar com gastos sem fim à vista.

O último desenvolvimento na história de Gilbert parece claramente ter dispensado o final feliz, com a escritora a pôr em risco a sua imagem para viver abertamente o que lhe resta de um amor com os dias contados. Mas desta história infeliz renasce a moral de que não só o amor não está para venda como, possivelmente, a viagem a que obriga não podia ser mais o oposto do tipo de fuga que representam os horizontes místicos e as costas distantes.