Em dez anos vai haver mais robôs do que médicos nos hospitais?

A Web Summit dedicou um dos palcos do último dia ao futuro da saúde. Da industrialização da medicina ao potencial dos dados dos doentes para melhorar mais tratamentos, há boas perspetivas mas também alguns receios

Em dez anos vai haver mais robôs do que médicos nos hospitais?

A pergunta era mais uma vez provocadora e a plateia mostrou-se dividida. “Em dez anos vai haver mais robôs do que médicos nos hospitais?” Metade achava que sim, a outra metade que não. Gary Mudie, responsável da Babylon – uma rede britânica de consultas online – e Ricardo Gil da Costa, neurocientista português a trabalhar nos EUA, trocaram argumentos durante alguns minutos e o resultado foi um público ainda mais cético. “Queremos mesmo que os robôs tomem o lugar dos profissionais de saúde?”, questionou o cientista. Mudie diz que o cenário é incontornável e garantiu que os hospitais robóticos – tal como muitas indústrias o passaram a ser nos últimos anos – estão prestes a tornar-se realidade. “O Japão tem o habitante mais velho do planeta. O número de japoneses vai aumentar em sete milhões. Hoje, 25% da população tem mais de 65 anos e no futuro serão 39%. Não temos recursos humanos suficientes. Não há alternativa senão usar tecnologia e robótica.”

Hoje, os robôs já são usados em diferentes frentes da medicina, da cirurgia robotizada aos equipamentos para a recuperação motora. Gil da Costa não descartou o potencial da automatização em algumas áreas médicas, mas defendeu que serão sempre aplicações específicas e auxiliares. “Em dez anos poderão ter mais tarefas, fazer suturas, reanimação e algumas cirurgias”, admitiu o investigador, referindo como exemplo a estreia de um robô numa operação aos intestinos, este ano, nos EUA. O robô STAR, desenvolvido pelo Children’s National Health System em Washington e pela Universidade John Hopkins, foi testado pela primeira vez em suturas em tecidos moles, por agora em animais, mas revelou ser mais preciso do que o homem. “Nesta área e em algumas especialidades como ortopedia, talvez, mas agora em neurocirurgia, Deus nos livre”, disse Gil da Costa. “Quando operamos um doente temos de estar constantemente a tomar decisões.” “Isso é assumir que os médicos não cometem erros”, contrapôs Gary Mudie. “Claro que sim, mas têm toda uma experiência acumulada para lidar com a situação”, contra-argumentou o português.

Então como vai ser o futuro? Gil da Costa diz que o ponto de equilíbrio, até para resolver o dilema da escassez de profissionais, está na telemedicina, área em que Portugal também tem estado a apostar para resolver as assimetrias nacionais e que é encarada como uma forma de melhorar os cuidados de saúde nos países em desenvolvimento. “Preferimos um médico responsável por cinco aldeias à distância ou enviamos um robô para lá?” Mudie aproveitou a dica para desvalorizar o ceticismo e apontar o que considera ser o desafio: o design das atuais máquinas, que não gera confiança. No futuro, com robôs mais humanizados, o jogo da opinião pública pode virar. Gil da Costa nem assim cedeu e conseguiu levar a plateia com ele. “Se alguém vai ter uma solução somos nós (neurocientistas), e por muito que já tenhamos avançado, irá demorar muito tempo até isso ser possível. Médicos e profissionais de saúde não são pessoas que lidam com papéis, não é algo em que possamos errar.”

A era dos dados médicos 

Uma nova variável na equação pode ser o avanço da inteligência artificial, que por agora todos insistem em dizer que, na saúde, será sempre complementar. Um dos projetos em destaque no painel dedicado à saúde na conferência de Paddy Cosgrave foi o sistema Watson, da IBM, um supercomputador com aplicações em diferentes áreas que promete revolucionar a medicina, permitindo aos médicos e outros profissionais de saúde terem mais informação na hora de diagnosticar os doentes do que alguma vez poderiam guardar na memória. A premissa do projeto é que, atualmente, a informação sobre saúde, resultado dos doentes tratados e dos estudos e ensaios clínicos publicados, duplica a cada dois anos. “Os médicos teriam de ler 29 horas por dia para estar a par de toda a informação.” O sistema de inteligência artificial já começou a ser usado em hospitais nos EUA e já chegou também à Europa. Na Alemanha começou a ser usado num centro de diagnóstico de doenças complexas em Marburgo.
Num painel dedicado ao tratamento dos dados em saúde, os intervenientes mostraram mais otimismo. O desafio é garantir a confidencialidade da informação mas, ao mesmo tempo, conseguir usá-la para melhorar os tratamentos e conseguir melhores diagnósticos. “Um dos meus filmes preferidos é o ‘Gattaca’ (1997), em que um bebé nasce e os médicos conseguem fazer uma análise de ADN e dizer que aquela criança vai ter diabetes aos 32 anos. Não estamos ainda aí, mas é esse o futuro”, defendeu Steven Barlow, da Health Catalyst, consultora que ajuda as organizações de saúde a implementarem as práticas que lhes dão melhores resultados. A otimização dos cuidados de saúde, reduzindo a discrepância nos custos e resultados entre clínicas e hospitais com base na informação recolhida durante os tratamentos dos doentes, é uma das áreas em que Barlow considera mais interessante a utilização da informação clínica. E, por agora, o desafio ainda é comportável. “Um doente gera 100 megabytes de informação a cada ano, menos do que seis horas de voo”, comparou. Os obstáculos? O facto de haver vários sistemas de informação implementados em simultâneo e de as empresas de tecnologias de informação nem sempre estarem interessadas em ceder dados.
Ida Tin, fundadora da Clue – uma empresa que tem por missão melhorar a saúde feminina através de ferramentas digitais, por exemplo no planeamento familiar –, diz que é preciso ultrapassar o sentimento de big brother associado à tecnologia e ao processamento de informação. Há o lado da privacidade, que não deve ser descurado e precisa de uma regulamentação forte, defendeu, também para proteger os doentes do acesso das seguradoras a informação médica. “Mas não há apenas um lado negativo, podemos usar a tecnologia para melhorar a vida das pessoas.”
Consensual é que a saúde, apesar de central, foi das áreas em que a digitalização e o aproveitamento da tecnologia têm demorado mais tempo a ganhar espaço, ao contrário de outras áreas, como a banca ou o comércio. Agora, o movimento está aí de vez. Como sobreviver à industrialização sem pôr em causa os direitos dos cidadãos e garantindo a relação entre médico e doente são os desafios.

Projetos a seguir

Watson – IBM

ibm.com/watson/health/

Máquinas de diagnóstico

Começou com um desafio: arranjar um computador que conseguisse bater os humanos em cultura geral tal como Deep Blue superou Kasparov no xadrez. Nos últimos dez anos, a multinacional IBM desenvolveu os algoritmos e agora, na área da saúde, diz que o equipamento consegue ler e processar 200 milhões de páginas a cada três segundos e dar as melhores respostas perante casos clínicos reais, ajudando os médicos a achar o diagnóstico e tratamento mais indicado. Além de já estar a ser usado na clínica, o Watson começa a servir de ferramenta de investigação. Esta semana a IBM Watson Health, o MIT e a Universidade de Harvard anunciaram um projeto de 50 milhões de dólares para, nos próximos cinco anos, tentarem perceber porque é que há tumores que se tornam resistentes aos tratamentos. 

Freenome

freenome.com

A cura do cancro?

Gabriel Otte conseguiu prender a atenção da plateia da Web Summit. É o responsável pela Freenome, uma start biotecnológica sediada em São Francisco, e defende que não é preciso descobrir novos tratamentos para o cancro: “Curar o cancro só depende de conseguirmos diagnosticá-lo mais cedo”. É isso que prometem fazer: a Freenome está a desenvolver novos testes de diagnóstico a partir de material genético extraído numa análise ao sangue. Por agora, em testes retrospectivos, conseguiram o diagnóstico precoce em 97% dos casos contra uma média de 75% nos testes convencionais que avaliam apenas uma parte do ADN da pessoa. O preço será uma vantagem, anunciou Otte. Mil dólares para despistar cinco cancros contra os atuais 3000 dólares da tecnologia convencional. Os primeiros testes deverão chegar ao mercado em 2017, disse ao i Otte.

Neuroverse

neuroverseinc.com

Os elétrodos wireless

Ricardo Gil da Costa é um dos fundadores da Neuroverse, que desde 2012 está a tentar criar novas ferramentas de investigação mas também de reabilitação na área das neurociências. Um dispositivo wireless que pode vir a substituir os elétrodos quer no tratamento, quer no diagnóstico habitual através de eletroencefalogramas, é um dos produtos em desenvolvimento. Além da aplicação, permite monitorizar e investigar atividade cerebral no dia-a-dia, quer de pessoas saudáveis quer de doentes.