Margarida Vale de Gato. Os sinais de fumo à margem da poesia

“Lançamento” é o segundo livro da poeta e um em que os poemas contam com o desafio suplementar de se furtarem a um programa afetivo que tenta pô-los ao seu serviço.

Ultrapassando o risco de que os nomes possam desfigurar as coisas, e as palavras tranquem o mundo em curtos, frios reflexos, cabe ao poeta baixar-se inteiro ao ritmo, felino arqueando ao passar da aragem sobre si, para negar à presa um odor que o denuncie. Caçar pelo ritmo, magnetizando a expressão. E orquestrar no verso um galope, com enérgicos impulsos da garupa de uma palavra a outra, progredindo na debandada dos sentidos que possa provocar. É enormemente ilustrativa disto a poesia de Margarida Vale de Gato, que tem um ouvido sem igual na sua geração, capaz de produzir mudanças de estado físico na linguagem, com um alcance que nos faz pensar nessa “potência múltipla desordenando os nomes: mantendo/ o mundo/ pela desordem” (Herberto Helder).

Depois de uma mais do que convincente estreia, com “Mulher ao Mar” (Mariposa Azual, 2010 – livro que foi reeditado com acrescentos em 2013, sob o título “Mulher ao Mar Retorna”), ficou aberto o caminho a uma poesia que exige como poucas uma intensa releitura, e que se foi desenrolando, percutindo, no que aproveitou do aparecimento de forma ocasional de novos poemas em algumas publicações e também no seu blogue – D’ama: http://alfinetedama.blogspot.pt/. Agora, surge-nos o segundo livro, “Lançamento”, numa edição da Douda Correria, e os poemas deste seguem os anteriores, nessa densa trama tão cadenciada, num barroco desconcertante, que homenageia o génio da língua nos seus recessos e passagens, e antes mesmo de se perceber o que a frase quer, esta muda a boca, faz-lhe um gosto que a educa. Margarida é uma poeta da voluptuosidade, que sabe ser moderna, atualíssima, dessa forma tão desabrida, camoniana.

E, no entanto, à margem dos poemas força-se neste livro um embuste inexplicável, com uma breve nota que o abre, prosseguida num texto mais longo no final do livro, e que, ainda que curiosos, só atrapalham e provocam ruído para o leitor ideal – aquele que, seguindo a definição proposta por Joaquim Manuel Magalhães, “só quer ler e partir para o que é dele com essa leitura”. Para o leitor que se esteja nas tintas para os compromissos biográficos e afetivos do poeta, há uma componente integradora neste livro, um fio que procura criar uma contiguidade virtual entre estes poemas, que é mais do que dispensável. Causa até perplexidade, pelo modo como fragiliza o exercício de autonomia, apropriação ou recriação a que a poesia, enquanto género necessariamente experimental, sempre convida.

Margarida Vale de Gato ensanduicha os poemas numa série de considerações que os submetem a um programa afetivo que só com grande complacência se poderá acatar. O melhor, como se verá, será mesmo ignorá-lo inteiramente. Diz a poeta que a morte de pessoas que lhe eram próximas a levou a “lançar o mapa de uma tribo na geografia da minha vida, a que possa voltar”. No epílogo, tenta encenar uma luz que justifique o dar ao leitor além dos versos esse croqui com os envios para nomes próprios que se nos tornam opacos, intransponíveis. Assume que, “contra as evidências de ‘toda a inteligência’, o encalço deste livro é ainda assim o de uma constelação de comunidade”. E adianta: “É por causa de quem morreu”. Assim, e ao invés de desonerar os poemas, ameaça corrompê-los através do exercício de um confessionalismo mutilado, uma troca de correspondência que obriga o leitor a relevar as circunstâncias, para numa segunda e terceira leitura desconsiderá-las.

Não há novidade alguma no gesto de homenagem contido nas dedicatórias, seja aos mortos seja aos vivos, de resto tornou-se um hábito algo vulgar na poesia portuguesa, o de conduzir, com recurso a estas marcas subtilmente expressivas, rituais de galvanização, assinalando afinidades mais afetivas do que propriamente eletivas. A “comunidade” ou “tribo” surgem deste modo como realidades pessoais que extravasam para o campo literário como marchas de companhia.

Umas vezes além e outras aquém de uma arte poética, há neste texto algo de um desabafo que se estende tão sentida quanto perdidamente. Ora claro num passo, ora abstruso no seguinte, parece buscar um transe imersivo: “Atenção que somos todos fracassos da ironia romântica, cautelosos do sublime. Será ainda assim a via que nos socorre de um problema maior, a retidão, o rigor, essa mania dos princípios. A abstração leva à exclusão de muita coisa, o genérico à opressão. O sublime, para mim, passa por concretizar-se no corpo, a sua metafísica é um efeito da física, que convoca e expande os sentidos, atingindo cada um nas suas extremidades, poros e orifícios, deformados e perecíveis. A cada qual a sua intimação.”

Neste jeito de ir tateando, mirabolando, podia defender-se tudo e o seu contrário. Celebra-se a poesia como uma confissão alternativa, uma prática que “se não salva, abstrai menos perigosamente, [porque] não é um sistema de controlo”. Os passos vão-se sucedendo e às tantas damos pela poesia a chegar a um plano em que “seria bom o deslumbramento, mas aceita-se a ofuscação, nem cega nem profética”. E a certa altura não andamos muito longe de uma sensibilidade new age: “Um espírito experimental pode amar imenso e havendo será bom fazer-se o que se queira”.

Os nomes próprios feitos título dos poemas são os de “gente que eu amo e resultam, menos bem do que eu queria, praticamente anonimizados”. E socorrendo-se de um artigo de Julia Kristeva “cuja tradução treslida, para se adaptar a este excurso, seria ‘Nome de Morte ou Vida’”, Margarida explica “que o nome próprio, que nos referencia e singulariza, atua no campo da literatura como uma cifra ‘que permite ao sujeito representar como signos todas as experiências heteróclitas que não conseguiram até agora achar significação, antes permanecendo ‘sentidos’ inomináveis, aquém da linguagem’.

Antes de chegar ao fim e à conclusão, servida através da citação – “Onde está poesia escreva-se amor e será também verdade” –, é difícil não se ter já antes concluído que todo este investimento é uma tentativa de controlar o destino de versos que funcionam tanto mais quanto parecem surpreender sentidos ferozes e acidentais.

A esse respeito os poemas, no seu estilo seco mas impressivo, encavalgando sentidos e sons, são tão mais vivos, menos turvos, quanto não se deixam enredar em ânsias explicativas mas cortam o mato, se movem ao longo de grandes e inquietantes distâncias sem nunca pôr um dedo especificamente no mapa, para dizer que foi aqui, deixando que seja a ferida a estender-se e pôr-se debaixo do dedo, de cada dedo. Melhor do que qualquer interferência explicativa, um par de versos dizem-nos que “no fundo do silêncio há um furo/ inclinado à sede duma fonte”.

E há um poema que se chama Jorge, e que a este respeito – ou a outro qualquer que prefira o leitor – nos diz: “Engana-se tempo ausência solidão/ silêncio luz que falha demência –/ A poeta escreve sempre na prisão./ Permite-o a linguagem: pode/ montar-se um mundo povoá-lo pode/ bater-se à colher com persistência/ na húmida pedra oclusa a palavra/ não/ precisas vezes para ser verdade// mas a liberdade talvez exista/ só na recusa da eloquência”.

E, porque os melhores poemas deste livro são aqueles que melhor se furtam às transações “entre pares”, amigos ou às mais reduzidas inflexões do “eu” e “tu”, lançando uma realidade paralela, bem mais vasta e livre, vale a pena lembrar o que escreveu há mais de meio século António Ramos Rosa a este propósito: “A única significação de um poema é o próprio poema. (…) Classificando-o de objeto, implicitamente damos ao poema a autonomia e especificidade de algo que vale em si, mas que por isso mesmo se estrutura e impõe à perceção do leitor a partir de uma organização interna e singular, e de uma certa coerência estrutural, embora não dependa de nenhuma poética prévia. (…) O poema comunica ou exprime algo que não pode ser comunicado ou expresso doutro modo e se a sua comunicação específica se dá é porque o poema só a si mesmo se significa. Esta comunicação não implica, necessariamente, a inteligibilidade de um conteúdo lógico; logo, a obscuridade pode subsistir, não como a incapacidade expressiva, mas como aquela margem que a razão lógica não aborda e só a razão poética ilumina.”