Ferreira Gullar. Memória de um homem na cidade

Falar da vida de um poeta na hora da sua morte deve ser, acima de tudo, falar da sua obra. E no caso do brasileiro Ferreira Gullar nada como falar de “Poema Sujo”

“Poema Sujo”, livro que não apenas carrega este nome como contém o poema com o mesmo título (e que foi editado em Portugal, em 2010, pela Ulisseia), reapresenta-nos a obra que alguns críticos brasileiros consideraram, desde a sua publicação em 1976, como “o poema nacional”, tal a sua abrangência linguística e temática, o ato poético “nacional” por excelência em que o mais cerrado intimismo se conjuga perfeitamente com a deriva pública e histórica do Brasil, desde a sua fundação até a meados do século passado. Vinicius de Moraes anunciava então, com alguma hipérbole, que se tratava do melhor poema da década, em qualquer língua, e afirmava ainda que Ferreira Gullar seria “o último grande poeta brasileiro”. Outros, como Affonso Romano de Sant’Anna, Assis Brasil e o falecido Wilson Martins, pronunciar-se-iam sobre variadas facetas da escrita de Gullar, colocando-o sempre no topo da hierarquia literária do país, não na de antigas academias, mas sim segundo o consenso crítico nas mais variadas publicações de quem realmente tem o poder de legitimação e – porque não? – aclamação. Ferreira Gullar morreu no Rio de Janeiro, no domingo, 4 de dezembro, com uma pneumonia. Tinha 86 anos.

Não vamos aqui ajuizar estas e outras inúmeras apreciações ao longo dos anos da obra de Ferreira Gullar (pseudónimo de José Ribamar Ferreira), mas deverá ficar bem vincado para os leitores da atualidade o espaço privilegiado que o autor passaria a ocupar nas letras do seu país, tendo sido ainda há poucos anos nomeado para o prémio Nobel, tendo, em 2010, finalmente recebido o reconhecimento máximo em língua portuguesa, o prémio Camões. Na sua vastíssima obra, que inclui outros géneros como teatro, crónica, ensaio e ficção, “Poema Sujo” ocupará sempre a centralidade do cânone do próprio autor.

Ler Ferreira Gullar, muito especialmente este seu “Poema Sujo”, é para um açoriano, como eu, mais do que justificado, não só pela beleza da nossa língua refeita e pela nossa histórica e viva intimidade com o Brasil desde o início, como sobretudo pela sua temática: um ato de escavação e memorialização da terra-pátria enquanto vivendo a dor do exílio, a excomunhão, por assim dizer no caso de Ferreira Gullar, decretada pela política, tal como a nossa fora sempre decretada pela desigualdade económica e social. Não foi por acaso que a literatura nordestina dos anos 30 exerceria uma grande influência entre os nossos modernistas que no arquipélago começavam a manifestar-se nas suas próprias páginas um pouco mais tarde. “Terra-pátria”, no contexto de “Poema Sujo”, querendo dizer primeiro o nosso lugar de nascimento e ponto referencial de partida para todas as subsequentes caminhadas, depois a memória e a experiência transfiguradas num microcosmo necessariamente de todo o país, e eventualmente da condição humana em geral. “Poema Sujo” será das poucas obras abertamente “ideológicas” que sobrevivem ao tempo e aos acontecimentos que transformam constantemente os nossos rumos públicos e pessoais. É essa a essência primeira deste poema de Ferreira Gullar. De uma intimidade quase escatológica parte para tudo o que nos rodeia através do binómio conflituoso que é a sujeira inerente aos homens, bichos e coisas em confronto com a vida vivida, na busca perpétua do lugar harmonioso e belo que nunca deixa de ser o sonho de todos nós. Um poema desta grandeza linguística e metafórica está aberto a infindáveis interpretações, e esta poderá ser uma outra leitura de aproximação textual quase identitária com uma obra que foi elaborada longe da terra e do seu povo, longe de todos os que constituem o palco do seu “drama em gente”, a razão suprema da sua dor e da sua saudade.

“Poema Sujo” foi escrito em Buenos Aires, em 1975, após alguns anos de exílio forçado pelo regime militar que então governava o Brasil. Atentemos na data em que foi escrito: foi o tempo em que quase todo o continente estava mergulhado na mais dura realidade política, na violência e miséria geral; o assassínio dos dissidentes, por vezes em massa como no Chile pós-Allende, tornado uma ação consertada entre as ditaduras que reinavam, quando não mesmo a colaboração ativa, de alguns poderes ocidentais. As artes estavam literalmente aprisionadas, reduzidas, como escreveria mais tarde Nancy T. Baden no seu “The Muffled Cries”, que naturalmente inclui nalgumas das suas páginas outro testemunho de Ferreira Gullar, a “vozes amordaçadas”. Só que no Brasil, como em quase toda a parte onde se vivia a mesma experiência, nem a ameaça de prisão, tortura e morte violenta conseguiram calar e muito menos destruir os que, por natureza e formação, são capazes de olhar para além de si próprios em irreprimíveis gestos de solidariedade e entendimento, dando voz “aos que voz não têm”.

“Poema Sujo” tem a sua génese, uma vez mais, nesse frenesim intelectual tão longe e próximo do seu país natal, nasce durante os dias e horas em que Ferreira Gullar, diria ele depois, achou por bem deixar o seu “testemunho” final, íntimo, e numa voz tão profunda e abrangente que se tornaria na “fala” da própria comunidade, no grito de um povo que não se queixava de nada mas apenas transmitia a sua “sorte”, ou como havia chegado a um tempo seu e a lugares precisos.

A composição de “Poema Sujo” é feita de palavras que se encandeiam, se repetem e interligam numa musicalidade sinfónica juntando os elementos contraditórios desta e de qualquer vida em labiríntico limbo e à procura de uma saída sem esquecimento. Na tarde argentina em que o poeta se senta ante uma folha em branco ressuscita todo um mundo e vidas (São Luís, capital do Maranhão, onde nasceu, durante os anos da Segunda Guerra Mundial) até então perdidas no tempo, perdidas na implacável passagem dos dias mas agora eternamente resgatadas na literatura, no poema redentor que passa a existir para sempre. Instantes que se prolongam ou repetem, tal como as palavras em “Poema Sujo”: toda a humanidade se funde na memória do autor, e depois na dos seus leitores. A descrição e nomeação real de cada rua, de cada casa, de cada fatia-de-vida vivida ou presenciada, de acontecimentos locais e mundiais, de amores e ódios, de trabalhadores, abastança e fome, de formas e cores na natureza e nas invenções humanas criam uma narrativa de fôlego que, repita-se, confunde o público e o privado no poeta e, por extensão, em todos aqui observados, reinventados ou reditos. Na literatura moderna de “exílios” ou de “emigração” não são as partidas que nos obcecam, são os regressos, que na verdade nunca mais acontecem, nada e ninguém se queda na permanência que imaginávamos. O poeta, nessa sua outra subversão, parte do mundo, da universalidade sem identidade, para as raízes, carregando em si todos os povos que viu, todas as condições que viveu.

A “subversão” mais temida, como outros regimes políticos acusavam e acusam a literatura em toda a parte, não está em clamar por qualquer utopia, mas simplesmente pela descrição da “realidade” em palavras que cantam e celebram o coração humano em contradição permanente. Que o poeta, mesmo nas suas palavras de humor e ironia, poderia ser morto num campo de “brincadeira” europeia e de nacionalidade específica, não será de modo nenhum um verso inocente. A literatura, em vozes contraditórias de raiva e beleza, também terá esta virtude suprema em que muitos já não acreditam: liberta, devolve a todo um povo a sua alma e dignidade depois da prisão e da maldição.