Mário Viegas. Ai que tão cedo se finou, ai que falta faz!

Intenso, feroz, indomável, irreverente – da estirpe dos provocadores, cómico e trágico, absoluto, desconcertante, único. Gostava de se definir como “apenas um actor de teatro”, mas foi muito mais do que isso. Foi um provocador talentoso, um agitador de vontades adormecidas, um extraordinário (re)criador diante do qual o país fica sempre aquém. Duas décadas passadas…

O cartão de visita apresentava-o como "Mário Viegas. Actor. Especialista em todos os géneros". Ao talento versátil juntou aquela força imparável que nele habitava, misto tenso de comédia e de tragédia, a transformá-lo numa das mais carismáticas figuras do teatro português do século XX.

Viveu com furiosa velocidade. Actuou, encenou, amou Samuel Beckett mais que todos, traduziu peças, fez sessões públicas com Zeca Afonso ao lado e a Pide em cima, destruiu discos (do nacional-cançonetismo), gravou discos de costas para João Villaret, escreveu crónicas, teve programas de rádio e séries televisivas dedicadas à poesia nas quais deu a conhecer também o grande humorista que sempre foi. Fez mais deste país. O programa “Palavras Ditas”, exibido na RTP entre 1978 e 1982, projectou a sua popularidade para lá do círculo restrito dos palcos teatrais. Nos anos 90, vieram as “Palavras Vivas”, pedradas no charco dos dias entorpecidos da produção televisiva portuguesa da época. E ainda houve tempo para fundar companhias de teatro, a última das quais a Companhia Teatral do Chiado a que dedicou os últimos anos de vida.

É pouco? Falta um posto: o da Presidência da República de Portugal, ao qual se pseudo-candidatou em 1995, não sem motivo: “encetar a carreira mais fácil, menos efémera e com reforma assegurada”. Era a doer: “Não sabe o que quer para o País, mas o País sabe o que quer dele! Não quer ser o Presidente de Todos os Portugueses!” Tinha como lema “o sonho ao poder”. O actor-candidato apostava então numa política sem máscaras a que só a doença conseguiu pôr travão.

No cinema foi o “Rei das Berlengas” (1978), o memorável “Kilas” (1981) e houve outras fitas boas como “A Divina Comédia” de Manoel de Oliveira (1991). Na vida, e chegada a hora das ilusões perdidas, esperou por um 26 de Abril como quem fica no filme até à última palavra da ficha técnica: “Por mim, estou pronto para o receber”.

Anti-Dantas e anti-tantos mais, anti-tudo o que ameaçasse o princípio inegociável da liberdade, Mário Viegas era a imagem mesma da desmesura e da irreverência. Convivia mal com a tirania das convenções e com a hipocrisia das ditaduras morais. E também não morria de amores por seres pequeninos, mentes acanhadas, esquemas rígidos, qualquer que fosse a sua origem, e, claro, pelos poderes instituídos. Homem de paixões, tinha os seus ódios de estimação e passeava-os pela praça pública. Mandamentos, apenas aqueles que destinou ao espectador de teatro: “Não levarás relógios com pipis electrónicos, telemóveis e sacos de plástico” ou, entre outros, “Não pedirás borlas ou insistirás em descontos, a que não tens direito”. E tinha outras embirrações: a palavra ‘carreira’ e o que ela evocava e convocava: o carreirismo, indissociável de Mário-Henrique Leiria.

“Nesta pátria onde a terra acaba e o Mário começa[va]”, viveu sempre à beira-riso e à beira-risco. Quando a morte o procurou, a 1 de Abril de 1996, já ele a esperava na unidade de infecto-contagiosas do Hospital de Santa Maria, onde foi internado em finais de Agosto do ano anterior. Não pediu adiamento ou prorrogação do prazo. Não estava na sua natureza, avessa a expedientes manhosos e às engrenagens da burocracia, essa arte de converter o possível em impossível. Aceitou a ironia e foi só. E depois, sabia que a SIDA, essa verdade cruel, não era para brincar.

Sob a capa da boémia e do desleixo (foi o mais “desmazelado de quantos desmazelados” o seu pai conheceu) escondia-se o actor de rigorosa auto-disciplina, o trabalhador obsessivo que comia guiões à medida que os ia decorando. Mas também o homem de papelada em dia e vontade catalogadora, a introduzirem alguma ordem na loucura dos dias em corrupio. Dois meses antes da partida, tratou de dar instruções à família sobre o que fazer com o material que acumulou (notas, fotos, cartazes, recortes de arquivo, algumas peças de arte…). Por detrás dos quadros de que tanto gostava escreveu: "Este quadro custou tanto, se um dia venderem, não se deixem morder". Cantigas, apenas a dos “Ais” …

Incisivo, mordaz, Mário Viegas não deixou intacto nenhum tipo de autoridade. Nada lhe parecia suficientemente grave para escapar ao humor – toda uma paleta de nuances, do raro azul bebé ao negro. E deixava a marca da sua genialidade desinibida em tudo quanto fazia, a ponto de alguns pensarem que os poemas que dizia lhe pertenciam. E foram muitos, ditos em folhas soltas, arrancadas a Almada Negreiros, Pessoa, Alexandre O’Neill, Herberto Helder, Ruy Belo e tantos outros.

Filho varão de uma linhagem de farmacêuticos, do lado do pai, trocou a Faculdade de Letras pela Escola de Teatro do Conservatório Nacional, mais ajustada à vocação incurável e à exuberância que lhe fervia nas artérias. Foi o fascínio pelo teatro que o levou a abandonar Santarém, a sua cidade natal, com 17 anos, e a bater às portas de Lisboa, que entretanto tinha tomado no mapa dos seus sonhos o lugar de um palco amplo que haveria de encher de palavras

A história da sua estreia como actor profissional é conhecida: 16 de Fevereiro de 1968. Um rapaz com ar de quem acabou de saltar da cama, barba de dias, vestimenta nos antípodas do impecável, põe-se a caminho do Teatro Experimental de Cascais, sem mesmo ter terminado o curso superior de História. Tinha pressa – e talento às golfadas. Carlos Avilez já ensaiava “O Comissário de Polícia”, uma comédia do brasileiro Gervásio Lobato. Irrompeu pelo teatro e disse: “Quero ser actor.” O encenador: “Muito bem, vieste ao sítio certo.” Ele: “Então e quando é que começo?” Resposta pronta: “Agora mesmo!”.

Mário Viegas tinha a loucura dos homens sãos e nunca hesitou entre o serviço farmacêutico garantido e as incertas artes do palco. Deu vida a personagens das principais dramaturgias contemporâneas (Hamm, Baal, Krapp, Vladimir, Wang) e a uma multiplicidade de “ais”, não esquecendo os de um Portugal enfermo e adiado, sempre em busca da fórmula milagrosa. Na sua voz, o diagnóstico dos males do “Portugal” de Jorge Sousa Braga, poema que o actor tornou célebre, era uma coisa séria que fazia rir ao mesmo tempo que o coração se apertava. É possível que hoje, à vista de um corpo “cheio de pontos negros” e entretanto corrompido por maleitas para as quais parece não haver terapêutica imediata, Mário Viegas não mantivesse o desejo de beijar Portugal “muito apaixonadamente na boca”.

Aos instalados da vida (própria e alheia) reservou o actor as mais perturbantes injecções, os mais mortíferos preparados: a grande frontalidade, a crítica implacável, o non-sense avassalador, a ironia ferina, até ao limite da dor e da crueldade.

A um ano de distância da sua morte, o apelo da provocação era ainda irresistível: “Mário só há um! O Viegas e mais nenhum!” – eis um dos slogans que o candidato à Presidência da República Portuguesa apresentou no espectáculo surpreendente e sempre renovado que foi “Europa Não! Portugal Nunca!”. Foi um último exemplo de insubmissão.

Desconcertante até ao fim, partiu no dia das mentiras. É verdade, a cortina da morte corre sempre depressa demais.