Viver para contar: A última palavra

O piloto exclamou «Jesus» quando percebeu que a falta de gasolina impedi-lo-ia de sobrevoar o morro onde o avião veio a cair

Apesar de gostar de futebol, nunca tinha ouvido falar em tal clube: Associação Chapecoense de Futebol. Nem sequer da cidade onde nasceu: Chapecó. E, como eu, haverá muita gente que ouviu pela primeira vez o nome do clube depois do acidente terrível onde a equipa sucumbiu.

Confesso que nunca me senti à vontade dentro de um avião. Suspendo instintivamente a respiração na altura da descolagem e só volto a respirar quando o aparelho ganhou uma boa altura.

Disse-me um dia o presidente da TAP, Fernando Pinto, que se eu fizesse uma experiência num simulador de voo perderia definitivamente o medo, pois veria que é praticamente impossível um avião cair. Numa aeronave, todos os mecanismos são em duplicado: se falhar um, há outro para o substituir. E, de facto, o número de desastres aéreos é reduzidíssimo. Com milhões de aviões no ar, a quantidade de acidentes é surpreendentemente baixa. Mas basta um avião cair, com toda a carga emocional e dramática que isso envolve, para as pessoas terem medo. 

O meu receio de andar de avião coexiste com um enorme fascínio por aviões. Passo todos os dias na Segunda Circular, em Lisboa, e fico encantado sempre que vejo à minha frente um daqueles monstros com asas a sobrevoar baixinho a avenida, prestes a aterrar. É um momento soberbo. 

E sempre que um avião cai quero saber o que se passou, o que correu mal. Ora, nunca me tinha deparado com um caso parecido com este que atingiu o Chapecoense.

Em primeiro lugar, o dono da companhia (a Lamia, que julgo dever ler-se La Mia – A Minha – e não Lâmia) era simultaneamente o presidente da administração… e o piloto do avião! Ora, os dois cargos nunca deveriam coincidir numa mesma pessoa. Porquê? Porque o presidente de uma companhia quer maximizar o lucro, quer reduzir as despesas ao mínimo – e quando a situação financeira é difícil, como seria o caso, é capaz de fazer todas as loucuras para salvar a empresa. Já vivi de perto situações dessas e sei do que falo. 

Essa circunstância foi decisiva para a tragédia. Na verdade, a que se deveu a falta de combustível que levou à queda do aparelho? A uma distração? A uma falha técnica? A um derrame? Não: deveu-se a uma decisão do piloto, que resolveu arriscar pensando que aquele combustível lhe permitiria chegar ao destino – embora à tangente. 

Só que teve azar: à sua frente atravessou-se outro avião com problemas. E o que fez o piloto? Alertou a torre de controlo para a gravidade da sua situação? Não: decidiu arriscar segunda vez e atrasar a comunicação. Porquê? Porque o reconhecimento da falta de combustível acarretaria uma multa pesada e possivelmente uma suspensão da companhia. O próprio piloto poderia ser punido pelas autoridades. E a empresa não estava em situação de aguentar sanções. 

Por isso só em desespero o piloto comunicou a falta de combustível. Ainda assim, poderia ter tido sorte: lembro-me da história de um avião que aterrou nos Açores depois de ter andado 200 ou 300 km sem gasolina, a planar.

Talvez este piloto pensasse que também poderia fazê-lo. Na conversa com a «señorita» do controle de tráfego aéreo, o piloto arrasta a conversa sem dar mostras de pânico. Só a certa altura exclama: «Jesus!». E cala-se para sempre. 

Na gravação não se ouve qualquer impacto. Por isso, esta exclamação não se terá devido ao embate na montanha – mas, possivelmente, ao facto de piloto se ter apercebido da existência de uma barreira intransponível à sua frente. 

Tanto quanto sabemos, a aeronave bateu com uma asa no cimo de um morro, deu uma cambalhota e acabou por se despenhar na outra vertente, onde se imobilizou. Ora, o piloto pode ter exclamado «Jesus» quando viu que não poderia sobrevoar o morro; a falta de gasolina impedi-lo-ia de tentar voltar a subir. 

Ou o avião conseguia ir a planar até ao aeroporto, ou encontrava um obstáculo na trajetória descendente e estava perdido. Terá sido o que aconteceu. 

Quando eu era jovem, também metia pouca gasolina de cada vez que abastecia o depósito do carro, porque tinha pouco dinheiro. Fiquei duas vezes parado e tive de ir de jerrycan na mão até à bomba mais próxima. Mas os carros andam com as rodas no chão – e o avião anda no ar, onde não há estações de serviço. 

Há tragédias inevitáveis. Mas esta só poderia mesmo acontecer numa companhia de vão de escada, onde o piloto era ao mesmo tempo presidente e dono da empresa.