Augusto Cid: ‘Evitei muitas mortes na guerra e por isso voltei sem problemas na cabeça’

Em África, viu homens a serem regados com gasolina e outros prestes a serem executados. Hoje, nos almoços do batalhão, há quem lhe agradeça tê-lo impedido de cometer um disparate. Na segunda parte de uma longa e saborosa entrevista, Augusto Cid conta as memórias da guerra e recorda como Soares lhe pedia para ser cruel…

Fez a tropa em Tavira, não foi? O meu avô era republicano e tinha uma filha que dava as notícias na Rádio Argel, que era da oposição. Segundo eles, as nossas baixas [na Guerra Colonial] eram uma coisa horrível… Morria por noite um batalhão inteiro, a gente perdia homens naquela rádio que nunca mais acabava. E o meu avô acreditava naqueles números. Por isso, quando eu sou mobilizado ele fica apavorado. Então pagou antecipadamente a um velejador de Portimão para eu me escapar num barco e desembarcar no Sul de França. Depois metia-me num comboio e ia ter com a resistência portuguesa que vivia em Paris, que tratava de mim e me arranjava um emprego. E também jogou com uma coisa que me dizia muito.

O quê?

Disse que me pagava os estudos nas Belas-Artes em Paris. ‘Vais para uma escola a sério. Daqui a dois três anos isto está resolvido e podes voltar’. Eu estava quase a cair nessa, confesso.

Era tentador…

Mas em Tavira adoeci com uma gripe e fui parar à enfermaria do quartel, onde estava um tipo ao meu lado que lia revistas, ouvia música, estava ali para durar. Um dia perguntei-lhe: ‘Ouve lá, estás aqui a fazer o quê? Tu estás ótimo’. E ele apontou para a cabeça. ‘Ah, és maluquinho!’ ‘Não, vê bem o que se passa aqui’. Então vi que ele não tinha este osso [da testa], era só pele, e até se via as pulsações a bater. ‘E foste mobilizado?!’ ‘Fui mobilizado porque quando mostrei os papéis das operações disseram-me: ‘O senhor não sabe que distribuímos capacetes?’’.

Isso levou-o a mudar de ideias?

Então eu ia para Paris quando havia gajos destes que eram mobilizados e iam ocupar o meu lugar? Não tinha coragem. E disse: ‘Avô, esqueça Paris, eu vou para lá, até porque tenho interesse do ponto de vista jornalístico’.

Como foi a viagem para África no Vera Cruz?

O Vera Cruz era um dos nossos melhores barcos, creio que era mesmo o nosso maior paquete. Levava três batalhões, cada batalhão são mil homens. Só em passageiros levava três mil homens.

Como eram as condições?

Abaixo de cão. Os graduados tinham os seus camarotes, mas o porão, onde iam os soldados, era um verdadeiro inferno. Ainda fui lá duas vezes e não consegui ir mais, por causa do cheiro a vomitado. Se não acha graça a três beliches, imagine seis beliches uns em cima dos outros.

Seis andares?!

Seis andares de beliches. Houve homens que não podiam quase andar dos enjoos, e eram puxados por cordas, não conseguiam sair de outra maneira. O tempo esteve bom, não apanhámos grandes ondulações, mas aquilo mexe-se tudo na mesma.

E o Cid?

Eu tomei umas pastilhas para o enjoo, se calhar por isso é que não enjoei.

Vi fotografias do Vera Cruz e tinha tudo bom aspeto, com salas bonitas…

Essas partes estavam interditas aos soldados. Os graduados viajavam bem. Tínhamos um camarote para dois ou três e a comida era boa. A dos soldados, péssima.

Como foi a despedida em Lisboa?

A saída eram coisas difíceis de imaginar porque o cais enchia-se de gente, milhares de pessoas. As pessoas despediam-se como se os filhos não voltassem. Havia cenas de histerismo, havia de tudo. Um alferes meu amigo, estava muito triste quando o barco começou a fazer a manobra para sair de Lisboa. E eu disse-lhe: ‘Não te preocupes, estás com esse ar, vais ver que os dois anos passam depressa’. E ele responde: ‘Não é isso, é que lá em baixo vi passar uma miúda que conheço, e pedi a um polícia: ‘Sr. guarda, pode olhar-me pelas malas, que eu vou falar a uma pessoa amiga?’. Quando voltou, nem malas, nem polícia, nem nada. Ele era de Viana do Castelo e levava aqueles enchidos e outras coisas boas.

E o Cid, o que levou na bagagem?

Na altura lia muito pocket books, coisas inglesas ou americanas. O fardamento tinha um bolso lateral em cada perna, e eu levava sempre um pocket book em cada bolso. Eram as minhas munições literárias.

E comida?

Levei chocolates da Belleville, que era uma coisa que eu adorava – estragou-me os dentes todos, mas pronto… Alimentei-me durante dois anos a Beleville. Ia para uma missão qualquer, levava duas tabletes no bolso. A minha família estava aqui quase falida de comprar Belleville – mas chegavam lá impecáveis. Nem sequer derretidas com o calor. Depois tentei fazer mousse de chocolate lá, pedi uma receita à minha avó, fui ter com o cozinheiro e disse: ‘Tu vais fazer uma mousse de chocolate’. ‘Não me meta a fazer isso’. ‘É só leres este papel que a minha avó me mandou’. Fez uma coisa intragável, ficou proibido de fazer mousses, para isso eu preferia o chocolate direto.

O regresso também foi no Vera Cruz?

Não. Para cá vim no Niassa, que era metade do outro, mas as condições eram idênticas: os soldados no porão, sem ventilação nenhuma nem nada, e os graduados cá em cima nos camarotes. A viagem para Lisboa durava onze dias. A meio do caminho, veio uma ordem do comandante do navio para os soldados atirarem fora todos os animais que não estivessem regularizados em termos de vacinas. Isso apanhou muita gente que não teve tempo em Luanda de legalizar os animais, porque cada bicho tinha de apanhar não sei quantas vacinas. Resultado: mais de metade dos animais foram atirados ao mar.

Que animais eram?

Basicamente cães e macaquinhos, saguins. A imagem que eu guardo do Niassa para Lisboa é de uma fila de animaizinhos a nadar atrás do barco, porque eles, coitados, vinham atrás do barco enquanto conseguiam. Eles podiam ter decidido que os animais ficavam em quarentena quando chegassem, e resolvia-se assim. Mas não. Quiserem ferir as pessoas. Vi soldados a chorar, que se calhar não choraram tanto quando perderam amigos… Aquilo magoou-os tremendamente. Nós tivemos de entregar as armas em Luanda, mas se as armas fossem entregues em Lisboa eles não faziam isto. Os soldados revoltavam-se. Faziam era saltar os oficiais para a água.

Quanto tempo esteve na guerra?

Dois anos. Mas achei que não foi tempo perdido.

Foi importante para a sua formação?

A guerra é uma boa escola da vida. Só tem um pormenor: é que se pode morrer com facilidade durante o ensinamento. Tirando isso, é uma belíssima escola.

Mas há quem venha de lá com problemas.

A guerra faz cair uma máscara que a gente usa. As pessoas surpreendiam-se com as reações deles próprios. Evitei muitas mortes de gajos que estavam a preparar-se para fazer isto e aquilo. Dizia-lhes: ‘Agora estão chateados comigo. Mais tarde vão-me agradecer’.

Pode descrever uma dessas situações?

Uma vez a coluna foi atacada e teve de voltar para trás. Voltam para trás e o que é que eles veem? Um preto com lenha à cabeça no meio da picada. Saltaram dois ou três tipos, foram buscar um jerrican, regaram-no a gasolina e prepararam-se para pô-lo a arder. Eu não tinha nada a ver com aquilo mas disse: ‘Na minha frente vocês não fazem isso’. ‘Este gajo deve ser turra. Tem que marchar. Você não se meta, vá lá para o seu cantinho’. Tive de puxar da minha G3. Ficaram parvos e acabaram por desisitir. Um deles, num almoço aqui há três anos, veio ter comigo. ‘Eu sou fulano tal…’ ‘Não me lembro nada de ti’. ‘Mas eu lembro-me de ti. Impediste-me de matar um gajo na picada e isso hoje tenho-te a agradecer a ti’. Estas coisas é que dão prazer. Sinto que fiz alguma coisa que valeu a pena. Portanto acho que cumpri a minha missão. E em vez de voltar com problemas na cabeça voltei sem eles.

Também viveu outros momentos difíceis?

Tive um ataque ao meu destacamento que durou hora e meia, julguei que era a última vez que estava à superfície da Terra.

Estavam debaixo de fogo?

Um fogo intensíssimo. Tinha 30 homens e os tipos eram para cima de 200. E eu pensei ‘acabou aqui’. Nisto agarra-se um soldado a mim, a chorar. ‘Vamos morrer aqui, meu furriel. Eu quero a minha mãezinha’. E eu disse assim: ‘Ouve lá, não achas que a tua mãezinha aqui só dava mais confusão?’. Ele ficou a olhar para mim. ‘Então volta para a trincheira, está quieto e faz o teu trabalho’. Eles pararam duas vezes de disparar e nesses intervalos gritavam palavras de ordem: ‘Fascistas, vão para donde vieram!’, ‘Isto não é a vossa terra’. E há um tipo que grita: ‘Morte a Salazar’.

Um dos guerrilheiros…

Do MPLA. Ficou tudo calado. E levanta-se um soldadinho da trincheira com pronúncia do Norte: ‘Salazar não está cá’. Partiu-se tudo a rir na trincheira. Os tipos devem ter pensado ‘Estes gajos são malucos. Estão numa situação destas e começa tudo à gargalhada’…

Mas sobreviveu. O que aconteceu a seguir?

Havia um grupo de indivíduos treinados pela PIDE, antigos guerrilheiros convertidos, que se denominavam Flechas. Esses homens eram usados para cruzar a fronteira e fazer distúrbios do lado de lá. Mas uma coisa é fazer distúrbios, outra coisa é limpar seis aldeias completamente e matar cerca de 60 pessoas, que foi o que eles fizeram em retaliação ao ataque que nos fizeram durante hora e meia. Isso obrigou a que a tropa da Zâmbia movimentasse um batalhão para a fronteira, para entrar por ali adentro. ‘Está um batalhão ali na Zâmbia, na fronteira, a preparar-se para entrar. O melhor é a gente pôr-se a andar daqui para fora, eles estão com cara de poucos amigos’.

E fugiram dali?

Eu conhecia bem os ingleses que estavam a comandar aquela tropa, porque era o único que falava inglês. Encontrávamo-nos muitas vezes na fronteira ou eles vinham almoçar connosco e criou-se ali uma grande amizade. Naquele dia, parei na fronteira à espera que viessem ter comigo e eles não vieram. Pedi ao cabo para guardar a minha G3, aproximei-me e fiz a continência, respeitosamente, e eles não responderam. Estavam pior que estragados. ‘Depois do que vocês fizeram aqui em três aldeias, têm o descaramento de aparecer aqui?’. ‘Estou tão chocado quanto vocês, pior do que isso, estou envergonhado. Esses tipos que vieram aqui são aproveitados pela Polícia política portuguesa. Nós não temos nada a ver com isso’.

Eles aceitaram a sua explicação?

Disseram-me para ir lá no dia seguinte à mesma hora. Nessa noite escrevi umas cartas para casa a despedir-me. No dia seguinte lá estava eu com a malinha feita no mesmo sítio, dessa vez vieram receber-me.

O que lhe disseram?

‘Se a gente entrar, você de que lado é que fica?’ ‘Se entrarem estou do lado dos portugueses. Sei que vou morrer, mas não estou cá para outra coisa’. ‘E se não entramos?’. ‘Se não entrarem ofereço-me como prisioneiro de guerra e e digo aos vossos órgãos quem fez e como fez o massacre, só não sei quem deu a ordem’. ‘Então vamos fazer o seguinte: todos os dias às 11h em ponto passa um avião por cima das vossas instalações durante o tempo que a gente quiser. O mínimo gesto que a gente tome como provocativo, a gente larga os rockets e vocês desaparecem do mapa. Aceita?’. ‘Claro que aceito’.

E assim foi?

Durante 15 dias, quando faltava um minuto para as 11h, aparecia no horizonte um DC-3 pintado de branco, sem nenhuma indicação, com os rockets nas asas, a rasar os nossos telhados. E passados dez minutos, um quarto de hora, apareciam dois T6 mandados de Cazombe supostamente para impedir os ingleses de entrarem. Mas só vinham às 11h15, 11h20! Uma vez vai lá o comandante do batalhão e aterra o helicóptero no campo de futebol. Faz um discurso do estilo ‘A pátria contempla-vos, vocês são um exemplo para todos os que estão aqui a combater…’. O discurso ainda ia a meio quando eu vejo ao longe o avião branco dos ingleses. ‘Meu comandante, desculpe interromper, mas os ingleses estão aí outra vez’. Ele ficou branco. Perguntou ao piloto:’ Dá tempo de a gente fugir antes de eles chegarem aqui?’ O piloto fez umas contas de cabeça e disse que não. ‘Então, para as trincheiras!’ As trincheiras enchiam com água das chuvas e ele não hesitou. Mergulhou na trincheira e ficou só com a cabecinha de fora.

Costuma contar histórias da guerra às suas filhas?

Poucas vezes. O meu livro de memórias visa tudo isso, que elas fiquem a saber o que o pai andou a fazer por lá.

E elas gostam de ouvir?

Gostam, mas há coisas que não percebem. No Cazombe, por exemplo, era uma coisa horrível. Eles apanhavam uns tipos e faziam interrogatórios, e no final o tipo já estava num estado tal que não podia ser largado, porque aí é que passava a ser um inimigo de certeza. Não tinha dentes, tinha um olho furado, unhas arrancadas… Depois juntavam uma série deles. Numa semana reuniam aí 30 gajos. Não havia um único que fosse terrorista. Mas tinham de fazer alguma coisa. Então saíam numa camioneta Mercedes grande, coberta com lona, a um determinado dia da semana, carregada com 30 ou 40 homens para abater.

Como sabe isso?

Uma vez entro para a escala de serviço, e dizem-me: ‘Às quatro da manhã sais para uma missão’. Queriam experimentar o que é que eu faria numa situação dessas. Disse logo: ‘Se é para aquilo que me explicaram, não vou’. Acabou por ir outro sargento no meu lugar porque colecionava orelhas, tinha frascos de orelhas que nunca mais acabava… Mas eu podia dizer que não. Nem todos tinham essa sorte, por isso é que alguns também voltaram com problemas psicológicos. Só tenho pena de não ter podido salvar um gajo que ia na camioneta para ser morto, porque me avisaram a tempo que com os soldados na camionete ia a PIDE.

Quem era esse homem?

Ele recusou-se a empurrar um Mercedes que tinha atascado ao pé da palhota dele. Um soldado meu amigo encostou-lhe uma G3 à cabeça e disse: ‘Agora vou-te pôr os miolos todos cá para fora, se não empurrares a camioneta’. O tipo não mexia um músculo, era um tipo com 1,90m, um físico extraordinário, era caçador. Era casado com uma mulher linda e tinham dois filhos gémeos, cuja fotografia eu trago comigo quase sempre, não sei porquê. Levava-lhes roupas e sapatinhos, o meu dinheiro ia todo para os putos. É esse gajo que dentro de uma das camionetas no Cazombe, dos que iam ser eliminados, chama por mim. ‘Furriel Cid’. Eu aproximei-me: ‘Quem é que chamou por mim?’. Ele levantou-se e quando se levantou percebi quem era. Tinha um corpo completamente diferente dos outros, parecia um atleta olímpico. Mas estava com a cara desfeita. Eu disse: ‘Desculpa mas não posso fazer nada por ti. Sei o que vai acontecer, mas não posso fazer nada por ti’. ‘Mas eu não quero que faça nada por mim. Só quero dizer que o vi muitas vezes na picada’. Ou seja, o gajo salvou-me a vida várias vezes. Deixou-me passar.

Era por causa dessas camionetas que preferia estar com o seu destacamento a estar no comando?

Uma vez chamaram-me da parte do comandante do batalhão. ‘Onde você está é muito perigoso, está quase a haver guerra lá. Você vem para aqui porque é muito melhor com uma caneta e um pincel na mão do que com a G3. Fica aqui a desenhar mapas e papelinhos com desenhos para eles se entregarem’. Eles lá punham o teor da coisa, eu fazia só os bonecos.

Aceitou?

Eu disse: ‘Agradeço o vosso esforço mas não aceito’. ‘Não tem nada que aceitar. Eu é que sei para que é que você serve’. ‘Ai é? Então a partir de hoje estou em greve de fome’. Fiz dez dias de greve de fome. Fui o único gajo que fez greve de fome para ir para um sítio pior. Mas não aguentava aquele ambiente do quartel. Onde eu estava passava todo o dia de calções. Tinha amigos a sério, pessoas em quem confiava. Ali era um ambiente falso.

O que se sente quando se está tanto tempo sem comer?

Os três primeiros dias é que foram difíceis. Ao fim não sentia nada, já. Estava fraquíssimo, não conseguia pôr-me em pé, tremia dos braços e das pernas, e tinha de me amparar às paredes. Acabaram por me chamar. ‘Você ganhou esta guerra, vou mandá-lo embora mas sempre que precisar de si eu chamo-o’.

Precisar de si?

Para fazer desenhos. De maneira que aceitei, disse logo que sim. Mas passei a comissão toda a caminho de Cazombe, chamavam-me mesmo que não houvesse nada para eu fazer, só para chatear. Viajei em tudo o que mexia.

Na guerra continuou a desenhar?

Curiosamente eu fazia a minha guerra – não a guerra que eles queriam que eu fizesse. Cumpria a minha obrigação, julgo eu, mas depois quando chegava ao destacamento rapava dos meus lápis de cores e das minhas aguarelas e fazia um cartoon sobre aquilo. Quando vi que havia uma páginas de cartoons numa revista militar pensei: ‘Posso trabalhar com eles’. Curiosamente não era mal pago. Davam-me 150 paus por cartoon, que era dinheiro. E faziam concursos em que o prémio era 500 escudos e eu ganhava quase sempre, portanto ganhava mais nos desenhos que fazia do que como furriel.

Quando se está na guerra para que se precisa de dinheiro?

Pois, isso era uma pergunta que eu punha a mim próprio, mas resolvi-a rapidamente. Trouxe de lá coisas incríveis, porque as lojas abasteciam-se com o que mandavam vir de Luanda. Estando no mato isolado você quer o quê? Arranjar uma boa telefonia, que possa captar postos longe. Gastava dinheiro nisso. Uma boa máquina fotográfica. Canetas Parker e outras. Era absurdo, mas no mato comprava-se o mesmo que se comprava em Luanda.

A irreverência que revela nos seus cartoons é inata? Em miúdo já era assim?

Sempre fui uma pessoa muito pouco conformista. Junto ao Cinema Império, na Alameda, havia uma escolinha, do outro lado da rua. E eu passava a vida de orelhas de burro à janela.

Aquelas que se punham aos miúdos mal comportados?

Enormes. Pensava assim: ‘Porque é que eu estou aqui na aula a gramar estas professoras chatas quando posso estar à janela a ver o que se passa?’. De maneira que acabava sempre com orelhas de burro à janela. As pessoas passavam e diziam: ‘És burro!’. ‘Burros são os que estão lá dentro a trabalhar’. As pessoas riam-se, achavam piada. Eles tentaram tudo comigo. Fecharam-me primeiro na despensa. Eu adorava, porque ia aos doces, às bolachinhas das professoras, dava uma baixa naquilo. Tiraram-me rapidamente de lá. De maneira que ficavam poucas saídas.

Mas os seus pais deviam ter a noção de que o Cid não era um aluno exemplar…

O meu pai tinha alguma tristeza pelo meu comportamento. Mas no fim da vida teve a alegria de perceber que afinal eu fazia alguma coisa de jeito, porque quando ele morreu estava eu a fazer uma escultura para o aeroporto de Macau, de 27 toneladas, que é a maior escultura que fiz até hoje.

Como foi a sua adolescência?

Aos 18 anos tive uma depressão. Nesses anos era moda as pessoas que tinham depressões fazerem uma cura de sono. Essas clínicas eram um negócio da China: punham as pessoas a dormir durante 15 dias e deem para cá não sei quanto dinheiro. Na altura em que foi morto o John Kennedy, durante essa semana, estive a fazer uma cura do sono. Saí muito pior do que quando fui para lá, de maneira que decidi que não havia mais curas de sono. Tive as minhas sessões de sofá, passei por essas coisas todas. O que é que uma pessoa faz? Fica deitada a olhar para o teto? Eu dizia disparates e o psiquiatra tomava imensas notas. Mas curou-me.

Como?

Eu ficava constantemente sem assunto. E ele dizia: ‘Diga aquilo que vier à cabeça’. ‘Não vem nada à cabeça’. ‘Mas esprema lá isso’. E ele sempre a tomar notas. Eu dizia disparates, de propósito às vezes, e ele impávido. Até que um dia tocam à porta, era um paciente que vinha um bocadinho adiantado. ‘Um momento, vou só ali à porta’. E saiu.

Aproveitou para espreitar as notas dele?

Eram projetos de uma casa de campo, com garagens enormes, piscinas interiores, piscinas exteriores. De maneira que cheguei a casa e disse: ‘Mãe, hoje não sei porquê sinto-me muito mais leve. Acho que pode dispensar o psiquiatra’. E expliquei-lhe a situação.

Houve algum acontecimento que estivesse na origem dessa depressão?

Eu tinha um ambiente muito mau em casa, o meu pai tinha um feitio muito chato. Era boa pessoa, mas impossível de aturar em casa. Na rua era diferente. Transformava-se. Ia para a Versailles todas as tardes, era uma espécie de atração para eles porque só tinha anedotas, só tinha coisas giras para dizer. Mas chegava a casa e transformava-se. Era administrador da Tabaqueira, mas levava a coisa contra o tabaco a sério. Não sei como é que nunca matou ninguém, porque saíam cinzeiros, daqueles pesados, de vidro, do terceiro andar, na Alameda D. Afonso Henriques, por sorte nunca apanharam a cabeça de ninguém. Cheirava a comida e mandava a comida embora, vinha a comida feita de outra maneira e não queria, nunca vi uma pessoa tão complicada. Mas no restaurante não fazia estas cenas. Eram cenas exclusivas da casa.

Para consumo doméstico.

Cá fora as pessoas tinham ideia de que era uma pessoa divertidíssima, encantadora. Ele não me escreveu uma linha quando eu estive dois anos fora em África. Mas depois, quando eu cheguei, no Niassa, estávamos nós no barco e vejo ele aparecer de gabardine – andava sempre com uma gabardine e chapéu. Como trabalhava com a Companhia Nacional de Navegação tinha acesso direto aos barcos todos. De maneira que subiu pela rampa do portaló, disse quem era, deixaram-no logo entrar. Depois chegou ao pé de mim e disse: ‘O menino está bom?’ – tratava-me sempre por menino. ‘Passa-se bem, tudo bem consigo? Então pronto’. Saiu aliviado e foi-se embora. Eu senti-me um bocado reconhecido, porque deu-me prova que estava aflito.

Disse-me que em 1958 foi estudar para os Estados Unidos. Quanto tempo passou lá?

Um ano e meio. Tenho boas recordações. A gente podia escolher as nossas disciplinas, de maneira que eu escolhi disciplina de Estudo, que era não fazer nada. Também escolhi logo Música, só não sabia que nos jogos de futebol tinha de me levantar às seis da manhã para ensaiar no campo. Os ensaios acabavam às oito e meia ou coisa assim, eu já estava pronto para voltar para a cama e tinha que ir para as aulas. E fazíamos guerras de balões de água. Havia sempre uma turma contra outra turma ou um ano contra outro ano, em que aquilo era a doer. As famílias das miúdas ficavam aflitas porque elas ficavam com as t-shirts molhadas e transparentes, e começava a parecer um bocado ousado de mais para a altura. Então chamavam a Polícia e a Polícia tentava pôr fim àquilo, a gente unia-se contra a Polícia. A Polícia não podia abrir a porta do carro que choviam balões de água.

E não vos prendiam?

Quando chegava à esquadra identificava-me e eles viam-se à rasca para escrever o meu nome. ‘Você diz que é português? O que é isso? Está a brincar comigo’. E o meu irmão americano dizia: ‘Ele é português, está em minha casa’. ‘Você esteja calado, se há aqui algum português é você’.

Faziam muitos disparates juntos?

Às vezes ele ia fazer mudanças, porque as pessoas queriam levar as mobílias para a garagem, ou assim, e eu ia ajudá-lo. Éramos pagos não à hora, mas pela mudança. Mas eram móveis enormes e tínhamos de descer escadas com aquilo. Então fazíamos assim: primeiro atirávamos um colchão cá para baixo. Depois atirávamos a mobília, que supostamente devia acertar no colchão. Resultado: o que a gente metia na garagem eram bocados de mobílias.

Tudo partido…

Mas as pessoas viam os móveis arrumados e não nos perguntavam mais nada.

Teve outros trabalhos enquanto esteve lá?

Eu lá vivia bem. Os estudantes tinham tempo livre e iam fazer jardinagem. Mas eu fazia um desenho de um cavalo vendia por 10 ou 20 dólares e na jardinagem estava um dia a trabalhar e davam-me dois dólares. De maneira que me fartei de vender desenhos a carvão. Aquilo era Laguna Beach, não sei se conhece.

Não.

Laguna Beach era uma espécie de Estoril, a Sul de Los Angeles. Era uma pequena cidade de artistas reformados, que aproveitavam para fazer coisas giras e davam aulas a pessoas que pintavam pela primeira vez. De maneira que também dava aulas de desenho, e isso era bem pago.

Dava aulas em Laguna Beach, mas na altura não tinha andado em Belas-Artes nem nada. Como é que aprendeu a desenhar?

Tenho de dizer, com alguma tristeza, que em Belas-Artes nunca aprendi nada. Eu desenhava naturalmente a partir do que via e de livros que comprava. Em arte sou um autodidata.

E donde lhe vem a paixão pelos cavalos?

O meu avô tinha propriedades no Algarve onde havia cavalos e de cada vez que eu ia ao Algarve andava a cavalo. Tenho essas recordações. Aquilo quase não tinha gente na altura, as praias eram quase desertas. Nos Estados Unidos também andei a cavalo. Eles utilizam muito os estudantes para eventos.

Trabalho temporário?

Sim. Fui parar a uma réplica de uma antiga cidade do Texas em que tinha que assaltar um banco, depois era baleado e caía do cavalo em andamento. Isso dava um espetáculo bestial: eu deixava-me cair para a parte de trás do cavalo e virara as pernas para cima. Não me custava nada, mas saía espetacular.

Quando regressou a Portugal não achou o país um bocado atrasado ou provinciano?

Eu fiz 19 anos lá, depois ainda estive em França, depois fui para Belas Artes, no Chiado… Parecia-me tudo um bocadinho atrasado, mas havia aqui um sabor típico de que eu tinha saudades. As tasquinhas, a comida de cá fazia-me muita falta.

Disse que nunca aprendeu nada em Belas-Artes. Porquê? Os professores não eram bons?

Apanhei os revolucionários do 25 de Abril. Tive miúdos que chegavam ao pé de mim e diziam: ‘Este desenho que fez aqui, não gosto nada. De que nota é que precisa?’. ‘Preciso de um 14’. ‘Dou-lhe um oito, veja lá se aprende a desenhar’. Eu já ajudava tipos do quarto ano a fazer as teses em Escultura, para que é que precisava de estar mais três anos ou quatro a arrastar-me numa escola mal dirigida? Hoje posso dizer que sou escultor porque produzi obra. Tenho amigos que tiraram Escultura e não fizeram nada porque não tinham jeito nem qualquer espécie de criatividade.

Vamos avançar no tempo. Como foi o convite para O Independente? Já conhecia Paulo Portas?

Já o conhecia do PSD. Quando ele tinha para aí 12, 13 anos já pontificava no PSD como um tipo que ia longe. Era um miúdo muito, muito esperto. Falava já bem inglês, francês, mostrava uma cultura fora de série para uma pessoa da idade dele. Eu achava-lhe graça e era amigo dele. Quando começaram com O Independente perguntou-me se eu queria dar uma ajuda e eu disse que sim.

Tem cartoons favoritos? Ou é como aqueles pais que gostam dos filhos todos por igual?

Acho graça a rever de vez em quando o que fiz. E quando faço isso descubro certas coisas interessantes a que não tinha dado importância suficiente. Porque aquilo que estava ali desenhado depois veio a concretizar-se. Acho que a importância do cartoon é o artista tentar ler o futuro, antecipar um pouco o que vai acontecer.

Se houvesse algum problema e só pudesse salvar dois ou três, quais seriam?

Isso seria muito difícil. Se houvesse um tema único e eu dissesse ‘estes dois são os que representam melhor este tema’, seria mais fácil. Mas tenho um de que gosto particularmente, mais pelo aspeto gráfico do que por outra coisa, que é do Sócrates, que está a tapar a cara com ambas as mãos, mas o nariz está enorme e tem por título: ‘Face Oculta’. Fez um grande sucesso, fizeram uma t-shirt com o Face Oculta. Coitado, o Sócrates sofreu imenso. Mas tem piada que estive num jantar de campanha do António Costa, de quem sou amigo, e na minha mesa ficou o advogado do Sócrates.

O João Araújo?

Sim. Ele esteve sempre bem-disposto e sabia quem eu era e não houve nenhum conflito por eu ter tratado mal o cliente dele.

Alguma vez chegou a ter pena daqueles que visava nos seus cartoons?

Fazia como se fosse eu que estava no lugar deles. Se eu fosse uma pessoa com responsabilidades e houvesse um cartoonista que me desse pancada, tenho a impressão de que achava graça. Isso também desarma o adversário. Quem fazia isso melhor que ninguém era o Mário Soares. Se saía um cartoon em que ele era muito mal tratado, dizia-me: ‘Tem de me dar esse cartoon’.

E chegou a dar?

Ofereci-lhe vários. Ele era um fã dos meus cartoons. Tinha a mania de me dizer sempre: ‘Cid, seja muito cruel, porque se não for cruel não tem graça nenhuma’. E eu dizia: ‘E esta? É cruel o suficiente?’. ‘Essa não é nada má’. Uma vez a Vera Lagoa ia a acompanhá-lo numa viagem de Estado e ele foi queixar-se de mim: ‘Dê ao Cid um recado meu. Ele que me faça as bochechas mais pequeninas’. Claro que a partir daí as bochechas do Soares sofreram uma dilatação enorme.

Teve reações mais desagradáveis?

Não, normalmente eram queixas de tipos pequeninos que eu fazia minúsculos. Uma vez, eu estava em Macau e o António Vitorino foi lá inaugurar a minha peça. Houve um beberete, eu estava a comer qualquer coisa e a certa altura ele perguntou-me: ‘Cid, isso é bom?’. ‘É bom, senhor ministro. Experimente, que faz crescer’.

A pedido de Augusto Cid, transcrevemos a seguinte declaração:

«Na passada semana, ficou algo de essencial por dizer sobre a investigação independente ao atentado de Camarate. Todo o grupo de trabalho que ajudei a formar emprestou graciosamente a sua dedicada colaboração em franco prejuízo dos seus compromissos profissionais e familiares. Nada, contudo, poderia vir a ser alcançado sem o permanente e a incondicional apoio dos familiares das vítimas e, em alguns casos, no seu envolvimento pessoal na investigação como aconteceu com Ricardo Sá Carneiro, Isabel Sá Carneiro, Manuela Vaz Pires (sogra de Amaro da Costa), Maria do Rosário Carneiro, Arminda Albuquerque, Afonso Patricio Gouveia e Alexandre Patricio Gouveia. Este esclarecimento impunha-se por todas as razões, além de que seria, da minha parte, um injusto e indesculpável gesto não o fazer neste momento».