Autarcas em roda livre…

O Governo queria a lei aprovada com as autárquicas à vista, e as bancadas socialista e comunista não se fizeram rogadas. 

Menos de um ano dos eleitores voltarem às urnas, o PS e o PCP aprovaram uma proposta do Governo que, na prática – e contra o entendimento do Tribunal de Contas e da Procuradoria Geral da República –, isenta os autarcas de responsabilização financeira nas suas decisões (juntas de freguesia incluídas), desde que se tenham baseado em pareceres técnicos dos serviços.

Para quem anda num alvoroço, querendo mostrar obra feita e lançar mais obra, a notícia é música celestial pela qual há muito esperavam, depois de abrir (oficiosamente) a época da caça ao voto.

Bem pregou Joana Marques Vidal, numa invulgar carta entregue ao presidente da Assembleia da República, onde manifesta a sua preocupação «quanto à possibilidade de a alteração proposta vir a suscitar interpretações legais contraditórias, face aos princípios jurídicos de transparência e da responsabilidade financeira e criminal que enformam a coerência da arquitetura do sistema vigente».

A posição da PGR foi em tudo coincidente com a do presidente do Tribunal de Contas, para quem «as alterações propostas ao regime de responsabilidade financeira são suscetíveis de gerar incoerências relativamente ao regime vigente (…) e têm igualmente implicações no regime de prestação de contas e no próprio sistema de controlo financeiro».

Foi pregar no deserto. O Governo queria a lei aprovada com as autárquicas à vista, e as bancadas socialista e comunista não se fizeram rogadas. Percebe-se. Juntamente com o PSD, que se absteve, são os partidos mais representados nas autarquias.

O Bloco e o CDS votaram contra, mas não contam para este campeonato. O primeiro é um epifenómeno radical, sem enraizamento nas estruturas locais; e ao segundo falta-lhe a vocação, embora se afoite em Lisboa com a líder.

A Associação dos Municípios aplaudiu a medida legislativa. Foi a sua prenda de Natal.

Doravante, todos «os titulares dos órgãos das autarquias locais», apenas correm o risco de ser punidos se tomarem decisões contra os pareceres dos serviços. Resta saber quantos técnicos terão a coragem de afrontar a vontade política que, direta ou indiretamente, sabem ser a do presidente ou do vereador.

O secretário de Estado das Autarquias Locais, Carlos Miguel, ele próprio ex-autarca, não poderia estar mais feliz ao lembrar que, até aqui, «um autarca, por uma decisão técnica, pode ver o seu património afetado». Com os autarcas resguardados, pode dormir descansado.

Para uma cidade como Lisboa, transformada há meses em estaleiro, com obras lançadas a eito, os responsáveis por este calvário respiram fundo.

Fernando Medina decidiu, soberanamente, estragar a vida aos lisboetas, cheio de si e secundado por Manuel Salgado, o vereador todo-poderoso que reúne sob a sua alçada os pelouros que mais contam.

Ambos têm a paternidade do caos instalado na capital – que poderia ter atingido proporções imprevisíveis se tivesse avançado o projeto bizarro da 2.ª Circular. Recuaram contrafeitos, depois da trapalhada em que se meteram.

Tanta obra, orçamentada em valores redondos, dá que pensar. Os cofres municipais devem estar a abarrotar de dinheiro fresco.

O chamado poder local, a festejar 40 anos, tem servido para tudo. Pelo lado positivo, reforçou a proximidade entre eleitores e eleitos, e há casos de inquestionável sucesso, especialmente no interior do país.

Pelo lado negativo, as vaidades e as rivalidades locais, potenciadas pelos dinheiros europeus, deram asas a megalomanias improdutivas, em puro desperdício.

Floresceram os ‘centros culturais’, os auditórios e os pavilhões multiusos – todos com escasso uso –, endividando as câmaras, a mando dos pequenos ‘senhores da terra’.

As urgências e as aflições de Medina em Lisboa obedecem à lógica de alguém que padece, ainda, da síndrome da ‘legitimidade formal’, já que não foi eleito para o cargo. Quer agora ser entronizado – obediente aos ensinamentos do antecessor, a quem mimetiza, incluindo o palanque de ‘comentador político’ numa televisão (arte para que não está fadado).

A desistência de Santana Lopes veio, contudo, favorecê-lo. É uma renúncia-mistério, depois de o atual provedor da Santa Casa se ter afadigado, em sondagens promissoras, por conta própria.

Tanto desapego é estranho em Santana, que continua a precisar de palco como do pão para a boca. Medina terá de agradecer-lhe o bónus. O PSD nem tanto, onde o líder está debaixo de fogo cerrado.

Passos Coelho enfrenta uma das mais concertadas campanhas contra si – de dentro e de fora do partido. As capas dos jornais desta semana não enganam. Em flashback, lembram irresistivelmente a moldura estratégica que serviu para afastar António José Seguro do PS. A pretexto – recorde-se – de ganhar… por «poucochinho». A história, às vezes, repete-se.