Teolinda Gersão. A arte do riso e a realidade da arte

“Prantos, Amores e Outros Desvarios” é a mais recente obra publicada pela escritora que foi ontem distinguida com o Prémio Vergílio Ferreira pelo seu percurso nas letras

Já sabemos que um conto tem de surpreender o seu leitor de imediato, e o seu fim ser caracterizado por uma radical viragem na narrativa. Tudo o que esperávamos não acontece, e o que nos parece ou nos disseram ser a “realidade” distorce-se numa subversão textual que, assim mesmo, não pode perder a plausibilidade. Dir-se-ia que isto é verdade sobre qualquer peça de ficção, mas o conto, por regra, constitui uma fatia-de-vida que só vale a pena ser relatada como que numa parábola, não necessariamente para ensinamento seja de quem for, mas para nos colocar do outro lado do espelho.

Por outras palavras, o conto deverá retratar e devolver a nossa própria humanidade guiada, sempre, pela complexidade da consciência humana, que nos leva e traz imparavelmente em viagens imaginárias de dentro para fora e de fora para dentro. Somos nós que reinventamos a realidade, e é, simultaneamente, essa mesma realidade que nos forma e deforma. Exemplo extremo de uma outra literatura, do fantástico aterrorizador de um mestre como Edgar Allan Poe ao hiper-realismo dito “sujo” de um Raymond Carver, cabem todas as nossas fantasias e medos, todos os nossos prazeres e desgostos da mais afastada modernidade até aos nossos dias.

“Prantos, Amores e Outros Desvarios”, livro de contos de Teolinda Gersão lançado em outubro, pela Porto Editora, coloca-se num outro contexto, que não o habitual realismo. A autora não só parte quase sempre do quotidiano para o reinventar na sua arte, como nesse processo cria os mais inesperados universos paralelos, desconstruindo não só esses seus dias presumivelmente vividos e lembrados, como desconstrói implacavelmente outros mundos contidos em literaturas que a influenciaram, ou pelo menos entraram nos seus múltiplos imaginários literários. “Alice in Thunderland”, o último conto deste livro, é uma revisitação nada inocente do famoso romance “Alice in Wonderland” (“Alice no País das Maravilhas”), publicado em 1885 sob o pseudónimo de Lewis Carrol, e que contém em si toda a temática que tende ser recorrente em muita da sua obra – a génese da própria literatura, e depois a realidade que a provocou ou inspirou nos seus diversos contextos, e vice-versa.

Todos estes contos são um “sorriso por dentro da noite”. Aliás, desde a primeira à última linha desta escrita, é o humor que mais sobressai em cada personagem ou situação, nunca retirando a seriedade da sua temática, desde o amor e desamor à injustiça das e nas nossas vidas, como em “O Meu Semelhante” e “Décimo Mandamento”, até à natureza da mentira como verdade, que é naturalmente a essência de toda a grande literatura, a vida escondida no sonho, ou o pesadelo do dia-a-dia disfarçado no sentido de missão, como em “Vizinhas”.

A escrita de Teolinda Gersão traz luz à nossa escuridão, mesmo que a loucura espreite a cada momento. O primeiro conto desta coletânea, “Pranto e Riso da Noiva Assassina” é uma magnífica tirada a uma condição universal que é o amor entre dois seres humanos, seguida pela humilhação da rejeição, a raiva íntima sentida num momento de uma vida tornada para sempre numa comédia posterior, o que mais nos move e comove enterrado inevitavelmente na sucessão de relacionamentos abertos ou escondidos, ou na aceitação da solidão e saudade. A morte de que aqui se fala “acontece” com um realismo quase assustador, mas apenas num estado onírico.

Cabe à literatura dar sentido e reorganizar as verdades e falsidades das nossas vidas, desfazer o mistério das coisas perante coincidências sem qualquer sentido ou origem deliberada – os “desvarios” que todos vivemos uma vez ou outra, com ou sem consequências maiores. Por mais individualistas, ou mesmo narcisistas que sejam estes personagens masculinos ou femininos (a autora dá voz a narradoras e a narradores), a grande sociedade que os rodeia está sempre presente, sem nunca se pronunciar certas palavras-chavões que julgam ou sentenciam a nossa condição coletiva, está refletida irremediavelmente nos valores que cada um segue, profere ou justifica o que faz ou deixa de fazer.

Mesmo na clausura de um prédio citadino, aqueles que o “homem subterrâneo” de Dostoievski rejeitava como sendo parte de um outro inferno da modernidade, residem as múltiplas metáforas da condição humana que nos é dado viver e testemunhar, palavras e ações uma clara reprodução e fingimento do que vai e predomina no lado de fora da porta. Desde uma empregada de limpeza a um banqueiro demasiado reconhecível na nossa atualidade, estão lado a lado a consciência magoada de quem virou as costas ao sofrimento momentâneo de outro com a crueldade da hipocrisia beatificada da chamada sociedade aberta e compassiva.

Pode a autora extrair a mais bela poesia do buraco negro que também envolve e afoga a nossa existência, mas nunca o esconde? Poderá ser que só a ficção fala a verdade, como ainda há dias nos relembrava a escritora Anna Solomon em “Writer, Writer Pants on Fire”, num mini-ensaio no “The New York Times”: “As mentiras da ficção são mais verdadeiras do que a própria verdade”.

Não vejo melhor descrição desta e de outras obras de Teolinda Gersão, a escritora que recebeu recentemente o Prémio Fernando Namora pelo romance “Passagens” (Sextante Editora) e ontem foi distinguida com o Prémio Vergílio Ferreira 2017 pelo seu percurso, que o júri considerou de “alta qualidade da arte narrativa expressa nos vários géneros de ficção clássica, em particular o romance e o conto”, adquirindo “especial relevo pela independência relativamente a todas as modas ou tendências que, de alguma forma, condicionam os caminhos da literatura contemporânea”.

“Prantos, Amores e Outros Desvarios”  – a última obra publicada pela autora antes da distinção que recebeu ontem – é um diálogo com alguma da mais duradoura literatura satírica e modernista a partir de Jonathan Swift a talvez Aldous Huxley e George Orwell, consciente ou mesmo que apenas subconscientemente.

O último conto, já referido, “Alice in Thunderland”, significativamente o mais longo desta coletânea, é uma peça antológica, na sua forma e no seu tema, na sua perfeição contextual com que escava a possível génese não só de “Alice no País das Maravilhas”, mas da literatura em geral e pelos motivos mais diversos, quer pessoais, religiosos, ideológicos ou meramente artísticos.

A ficção toda inocente do livro que se tornou um clássico no mundo inteiro, imortalizado ainda mais pelos estúdios da Disney, poderá ter a sua génese no que hoje é considerado o mais sujo desejo, a pedofilia, o professor de nome Charles Lutwidge Dodgson escondendo numa história sem sentido ou nexo a voracidade com que fotografava e se passeava com raparigas e rapazes. O choque literário deste texto não deveria surpreender ninguém para além de ser uma astuta narrativa, só a capacidade interpretativa da sua narradora.

“Prantos, Amores e Outros Desvarios” dá continuidade a uma extensa obra literária da autora natural de Coimbra, que estudou Germanística e Anglística nas universidades de Coimbra, de Tuebingen e de Berlim, tendo-se dedicado a lecionar Literatura Alemã e Literatura Comparada até 1995, ano em que passou a dedicar-se exclusivamente à literatura. “O que a Teolinda faz é escrever a vida”, afirmou noutra parte e vem reproduzido na contracapa deste livro a professora e ensaísta Maria Alzira Seixo.

São os nossos irremediáveis estados de alma – com princípio, meio e fim, mesmo que das realidades textuais não o reconheçamos. Somos nós do outro lado do espelho a espreitar a nossa própria humanidade. Aliás, os três substantivos do título destes contos significam, talvez na totalidade, toda a condição humana, no imaginário destes personagens e na realidade das nossas próprias vidas.