José Inácio Faria. “Se houvesse um referendo sobre a República, podia haver uma surpresa”

O eurodeputado português não perdoa aos britânicos terem optado pelo Brexit. E não poupa críticas a Cameron

É sábado e a entrevista está marcada para uma esplanada em Belém. Faz frio, mas menos que em Bruxelas. José Inácio Faria mudou-se há dias para o grande grupo político da direita europeia. Mas o centrismo é para manter. Foi eleito nas europeias de 2014 com Marinho Pinto, que entretanto saiu do MPT e fundou a sua força política. O ex-bastonário mal é referido em toda a conversa.

Mudou recentemente do ALDE, o grupo dos liberais e democratas no Parlamento Europeu, para o Partido Popular Europeu, a maior família política da União Europeia. Descreve essa mudança como “tranquila”. Porquê?

Falei com Pedro Passos Coelho e com Assunção Cristas, que me deram o seu apoio e foi um processo bastante rápido, cerca de um mês. 

Normalmente não é tão rápido. Até já participou no processo de escolha do candidato do PPE ao Parlamento Europeu…

É verdade. No dia seguinte, já estava como membro de pleno direito e pude participar. 

Mas a mudança foi uma questão de dimensão, tendo o PPE a maioria no Parlamento Europeu?

Não. Houve vários factores. Houve um evidente afastamento entre o Partido da Terra e o grupo onde eu estava antes. Não só do Partido da Terra como também em relação a mim. O facto de ter passado para o PPE teve muito em conta uma gota de água: a falta de apoio à posição portuguesa acerca da suspensão de fundos comunitários. Nem eu nem o meu partido poderíamos permanecer.

A partir do momento em que havia um consenso interno entre a direita e a esquerda sobre as sanções a Portugal em processo de défice excessivo, não tinham condições para ficar no ALDE?

Não tem a ver com uma posição maioritária ou minoritária que pudesse haver em Portugal; tem a ver com a posição do Partido da Terra e com a posição que nós defendemos e que no Parlamento Europeu defendi: o interesse dos portugueses e de Portugal.

E não houve abertura por parte do ALDE, grupo liberal, para discutir a vossa posição?

Não, de todo. Sentimo-nos isolados no grupo. Foi, no fundo, ficar a bradar para o deserto. Isso sentia-se. Pedi que houvesse um debate interno para o próprio grupo retificar a sua posição e acabou por não haver debate. Para mim, a partir desse momento, foi fraturante. Fiz contactos com o PSD e o CDS para saber se apoiariam uma candidatura para entrar no PPE e foi assim. Tanto Passos Coelho como Assunção Cristas deram o apoio e ajudaram.

Mas não foi essa a primeira desavença. Também se zangou com o ALDE quando apoiaram outras plataformas em Portugal.

Quando o MPT está filiado e é membro do ALDE e o presidente do ALDE vem a Portugal promover uma iniciativa em que se pronuncia a favor da suspensão dos fundos europeus a Portugal… Não fez sentido. Foi estranho é que nenhum dos membros dessa iniciativa tenha questionado essa posição. Teria que ser a primeira pergunta e claro que me deixou perplexo. Como é que alguém vem de fora de Portugal, presidente de um partido europeu, pronunciando-se aqui a favor da suspensão quando já se tinha pronunciado em Bruxelas? Fez-nos concluir que não podíamos ficar no grupo. 

Com o fim do acordo entre os dois maiores partidos europeus – os Socialistas Democratas e o Partido Popular – que os fazia tacitamente dividir o mandato da presidência do Parlamento Europeu, não acha que essa cisão pode beneficiar uma candidatura do ALDE, do qual saiu? 

Eu nunca fui muito favorável a esse acordo. Para mim, a eleição tem que ser o mais democrática possível. Cada uma das forças com um candidato que vai a votos. Não é isso que tem acontecido, mas existindo um acordo devia ter sido levado até ao fim. 

E foi rasgado…

Certo. E nesse caso concreto poderá dar azo a outras forças, mas não sei se poderá beneficiar diretamente. Há uma indicação de que Guy Verhoftsadt será o candidato, mas ele ainda não formalizou essa intenção. Há muita gente crítica do seu desempenho no Parlamento. Não sei se a não manutenção do acordo irá beneficiar em concreto o senhor Verhofstadt.

Ele foi protagonista da referida não abertura à posição do MPT quanto às sanções?

Repare que o grupo liberal é um grupo “neo-liberal”. As regras são para cumprir cegamente e essa orientação é assim para os deputados. Houve raríssimas exceções. O MPT foi uma delas. Mas para eles era uma questão que nem se levantava. Foi o único grupo em que a posição foi quase unânime.

Escreveu que “já chega de neoliberalismos de trazer por casa” quando trocou o ALDE pelo PPE. 

Como “ecologistas, humanistas e liberais” – de “bom senso” – houve algumas questões no grupo que nem sequer seguiram porque o ALDE raiava o neoliberalismo. Como é que era possível serem tão cegos a uma medida que não fazia qualquer sentido para Portugal e encaravam que a posição da França fosse diferente? Como disse o presidente Juncker: “A França é a França”, mas poderá ser assim?… 

Mas o presidente Juncker é membro do PPE para o qual o MPT foi agora…

Sim, com certeza. E na altura ele foi uma grande voz contra a suspensão dos fundos a Portugal. Fez pressão junto de todos os deputados do Parlamento Europeu, incluindo o ALDE, que foi contra a posição da Comissão. 

E como deputado europeísta e vindo de um grupo que defende o federalismo, onde é que se situa?

O ALDE é, como se sabe, acentuadamente federalista. Eu sou, como disse, europeísta – acredito na Europa. Não em mais Europa mas em melhor Europa. 

E o que é isso? 

Políticas sociais, estratégias apontadas a problemas atuais. Mais do que a necessidade que um Estado federal ou que uns Estados Unidos da Europa é importante criar condições para que a Europa seja um melhor espaço, em que um povo europeu – não um governo europeu – consiga um teor comunitário. 

Quando ouvimos as pessoas do MPT a falar em políticas sociais como o José Inácio Faria falou agora, não vê também uma Europa demasiado burocratizada – por vezes acusada de tecnocracia – como um entrave a essas políticas sociais?

Repare que uma das grandes críticas que se faz a Europa é ter-se tornado numa plataforma tecnocrata e não numa instituição política, que é aquilo que devia ser de facto. O presidente Juncker disse que iria reformar a Europa nesse sentido mais político e menos burocrático. Essas mudanças levam o seu tempo. O Partido da Terra é um partido de causas, do ambiente, do humanismo, por isso também vê isso que apontou com preocupação. Isso não faz de nós eurocépticos; faz de nós ainda mais europeístas para fazer essas reformas. Não tanto pela questão quantitativa mas pela questão qualitativa.

Não vê o ALDE como um espelho desses defeitos, mais concentradamente? 

Não gostaria de ir por aí. O espaço que o ALDE ocupa no Parlamento Europeu é importante. Não é só o senhor Verhofstadt.

Mas às vezes parece…

Mas há mais. Foi notório recentemente. Uma colega nossa avançou com uma candidatura por entender que não podia ser tudo personificado na pessoa de Guy Verhofstadt. É um grupo mais reduzido e há sempre essa tendência de figura condutora, de unidade em relação a um determinado líder. Eu entendo que o ALDE tem deputados muito bons, Verhofstadt é um excelente político e um excelente orador.

E como líder?

Talvez do ponto de vista da interligação entre os vários deputados não corra da melhor forma, mas tem exercido as suas funções reconhecidamente. Talvez muitas vezes o protagonismo seja exacerbado; é um grupo com características próprias. E talvez também por isso estejamos melhor no PPE.

Que é assumidamente de centro-direita. Coisa que o MPT nunca foi…

Não é bem assim. Nós sempre fomos um partido centrista.

Mas o PPE é descrito por José Manuel Durão Barroso como o “establishment”.

Como os Socialistas Democráticas também são… Veja o atual presidente do Parlamento Europeu… É socialista. Certo, mas o PPE tem o Conselho Europeu, a Comissão Europeia. 

A pergunta era se devíamos passar a olhar para o MPT como parte desse “establishment”.

Não é desse nem de nenhum de “establishment”. Acima de tudo somos ecologistas e haveria vários grupos onde poderíamos estar, tendo o nosso espectro político ao centro. Escolhemos o PPE porque há valores que partilhamos com ele. Costumo dizer que o Partido da Terra é um partido transversal, com sensibilidades de direita, de esquerda, com republicanos, com monárquicos… As nossas causas não são exclusivas da esquerda.

E acha que essa transversalidade encaixa no PPE? 

Penso que sim.

Quando o li escrever contra o neoliberalismo, lembrei-me que é o adjetivo mais usado pelo nosso Partido Socialista para descrever o PPE…

Eu não vou utilizar referências ou trocas de palavras entre socialistas e sociais-democratas. Quando se fala de social-democracia, a doutrina divide-se… Percebo quando perguntam como é que somos ecologistas e não fazemos parte do grupo d’Os Verdes, mas a verdade é que estes Verdes são muito à esquerda… E nós não somos à esquerda. Somos ao centro.

E não vê esse centro em vias de extinção no contexto europeu contemporâneo? França, Holanda, Alemanha, Grécia…

É por isso mesmo que precisamos da tal melhor Europa. Para esbater e derrubar esses extremismos. Não são só os populistas que vemos por aí, como na Polónia, na França e na Holanda. Para o ano, vamos ter eleições muito importantes. Talvez seja apenas possível pronunciarmo-nos em relação ao futuro da Europa depois das eleições francesas do próximo ano.

Donald Trump não é um populismo, mais distante, mas igualmente preocupante?

Donald Trump foi eleito pelos cidadãos norte-americanos. 

Mas viu Bruxelas recear a eleição dele?

Houve um excesso de alarmismo… Confesso que, como ecologista, cria-me alguma perplexidade. As nomeações que tem feito ultimamente, a incapacidade de aceitar o óbvio: que o ser humano está no centro da alterações climáticas.
Por que acha que ainda há congressistas norte-americanos a levarem bolas de neve para o congresso em jeito de prova que não há aquecimento global? É a maior democracia do mundo, mas leva bolas de neve para o Congresso…
Podia ser só caricato, mas é mesmo preocupante. É a grande potência mundial neste momento e deixa-me apreensivo. Mas o facto de o senhor Trump ser eleito Presidente dos Estados Unidos não quer dizer que as instituições americanas deixem que a sua presidência resvale para situações de risco. Ele vem a moderar o seu discurso… Já disse que, afinal, o aquecimento global podia não ser uma invenção dos chineses… (risos)

Sobre o escândalo das emissões de carbono nos automóveis, presumo que como ecologista tenha também ficado apreensivo. O candidato do PPE à presidência do Parlamento Europeu era o comissário responsável por essa pasta durante o escândalo. Não será um entrave ao sucesso da sua candidatura? 

Há um inquérito que está a correr sobre o cuidado que o senhor Tajani teve. Como advogado, acredito na presunção de inocência e enquanto o inquérito estiver a decorrer não me vou pronunciar. O senhor Tajani é um homem de compromissos, de convicções fortes, de pontes entre as várias forças políticas e instituições. Seria uma mais-valia como presidente do Parlamento Europeu. 

E como humanista, como é que viu Bruxelas ser tão célere a decidir sobre a crise financeira e tão lenta a decidir sobre a crise dos refugiados?

Preocupo-me com a crise dos migrantes por que é uma das maiores com que a Europa já foi confrontada. Preocupo-me porque há pessoas que procuram escapar de cenários de guerra em busca de um espaço em segurança. Houve muita gente na Europa que não viu isso assim. Encarou-os como terroristas e hordas de pessoas que “vinham tirar empregos e casas”. Recordo-me de um relatório de um instituto alemão que defendia que a sustentabilidade do sistema de segurança social alemão necessitaria de 11 milhões de trabalhadores. E onde é que eles os iriam buscar? 

Mas não vê um duplo padrão na resposta à crise humanitária dos refugiados e à crise grega? Perder o direito à saúde pública por se estar desempregado não é lá muito humanitário…

É evidente que não, mas creio que se deve encarar as situações como distintas. A Grécia tem tido um importante papel no acolhimento de refugiados, mas estamos a falar de aplicação de regras do Eurogrupo e de uma situação anómala que são pessoas que se atiram ao mar para chegar à Europa. São mesmo situações diferentes, em patamares diferentes. Não foi só a Grécia que passou por essas dificuldades. Também aconteceu em Portugal.

E aí quem é que se responsabiliza? Bruxelas, quem governou durante, quem governou antes? 

Eu aí, sem querer ser facilitista, diria que não tem apenas que ver com um governo ou dois governo, mas com os governos das últimas décadas que não conseguiram acompanhar as mudanças globais e europeias com as políticas mais corretas.

Por exemplo?

Em 2010 e 2011 tínhamos uma défice de 11% e fomos baixando a muito custo para os portugueses. Quando passamos os últimos anos a apertar o cinto para sair de uma crise desta dimensão também é isso. Quando é para falar bem, aponta-se sempre para as medidas nacionais; quando é para falar mal, aponta-se sempre para Bruxelas. Não é correto. A Europa é um clube muito específico que Portugal tem aproveitado, garantindo um desenvolvimento que não ocorreria de outro modo. Claro que há regras que têm que ser cumpridas. O meu ponto é que não podem ser cegas. Têm que ser adaptadas e revistas caso a caso. Talvez isso não tenha acontecido neste tempo.

Quando elogiou a reforma proposta pelo presidente Juncker tem a ver com isso? 

Se durante alguns tempos a Comissão decidiu com base em critérios estritamente fechados; o senhor Juncker entendeu que estas crises impunham outro tipo de política. A Europa esteve debaixo de fogo. Veja a crise de proximidade também, o nível de abstenção das eleições europeias, a ascensão dos partidos xenófobos e eurocéticos… 

É portanto uma abordagem diferente da Comissão de Durão Barroso…

Sim, bastante diferente. Os tempos também são outros… A crise de 2008 teve repercussões nos anos seguintes. A nova estrutura teve que adaptar-se. Dois anos e meio depois, há medidas que estão a ser tomadas e muito a fazer. Para bem da Europa, é bom que o senhor Juncker cumpra o seu mandato e o seu projeto de reformas. É o que a Europa precisa.

Não o responsabiliza pelo Brexit, como alguns, portanto.

Mais uma vez, não há um único culpado. Nós não soubemos acompanhar nem orientar os britânicos para que soubessem o que representaria para eles sair da União Europeia. Eles não entenderam. Li vários artigos de opinião em que não faziam a mínima ideia do que representava o espaço europeu.

O senhor Farage não ajudou…

Tem muitas culpas. Esteve dezassete anos a pregar contra a Europa e nunca imaginou que o Reino Unido saísse mesmo. Ninguém acreditava. A verdade é que quando aconteceu, o senhor Farage ficou esvaziado de discurso. Morreu politicamente. 

Acha que se a Europa tivesse dado mais nas negociações a Cameron, o resultado da sua campanha pelo ‘STAY’ teria sido diferente?

Acho que o senhor Cameron esteve muito mal. Para conseguir ganhar o partido, hipotecou um país e um continente. Posteriormente apercebeu-se que tinha cometido um grande erro. Custou-lhe o lugar e o espaço que o Reino Unido ocupava na Europa. São milhões de consumidores perdidos. 

Quando referiu a boa relação com o PSD e o CDS para o apoiarem na entrada do PPE, vê essa relação com potencial para as autárquicas? 

Sim. Estamos coligados continentalmente com PSD, CDS e PPM (Partido Popular Monárquico). São nossos parceiros e temos estado em conversações para as eleições autárquicas do próximo ano.

Haverá candidato a Lisboa?

Nós temos candidatos para Lisboa. Há listas a serem feitas e ainda há tempo. Não temos preocupação e o processo ainda não está fechado. A capital não é uma autarquia diferente das outras.

Mas apoiaria Assunção Cristas?Não é uma questão neste momento para nós. Temos um mapa autárquico, conversamos pontualmente e Lisboa é mesmo só mais uma autarquia. Cada coisa a seu tempo.

O vosso mandatário para as legislativas foi o eng. Carmona Rodrigues. Foi uma cara que não se manteve para o próximo ano…

Nós temos uma muito boa relação com ele. Como sabe, ele acredita nos nossos valores por também ser um ecologista.

Apoiou a presidente do CDS…

É um independente e não lhe conheço nenhuma ligação partidária… Como livre pensador que é, decide como entender. Não entendo que as eleições autárquicas sejam encaradas como um novo ciclo político; ainda nem lá chegámos…

Sem Carmona e sem Marinho Pinto, qual vai ser a cara que o partido convida para o ano?

O Partido da Terra tem vinte e três anos. Foi de movimento a partido político; de ecologista a também humanista. Estamos a crescer, a criar concelhias e vamos onde os portugueses nos quiserem levar. Tivemos a participação e a colaboração dessas personalidades, mas gostava de dizer-lhe uma coisa: Gonçalo Ribeiro Telles foi o responsável por eu ter entrado na vida política activa partidária. Foi e é o meu ídolo na política. Desde que o conheci, fiquei preso às suas palavras e nunca mais larguei o único partido ao qual aderi, o Partido da Terra. Essa é a minha referência. 

Quando falava sobre o pluralismo do MPT e das boas relações com o Partido Monárquico, lembrei-me de perguntar: é monárquico?

Sou tendencialmente monárquico. Na minha família sempre tivemos monárquicos e republicanos e era muito interessante quando se juntavam à mesa (risos).

Há muita gente que olha a monarquia como menos democrática… 
Aí vou dizer-lhe uma coisa: sou tendencialmente monárquico porque as sociedades ocidentais mais desenvolvidas são, na sua maioria, monarquias constitucionais, e é isso que defendo. Em relação a Portugal, veja a recepção aos Reis de Espanha. Os portugueses gostam. Nas monarquias constitucionais quando é quem não deveria ser é substituído, e é nisso que eu acredito. Não em dinastias eternas. Não pode ser algo arbitrário. 

E por que é que a monarquia é quase tabu em Portugal?
Foi mal entendida. No final do século passado não foi bem entendida no seu sentido reformista. É preciso olhar para o contexto da época. Hoje, o português é bombardeado com rótulos e a monarquia ser algo negativo é um deles. 

Se não ultrapassasse os limites constitucionais, defenderia um referendo sobre a chefia de Estado?
Sim. Por que não? Nunca perguntaram aos portugueses, pois não? Ainda tinha alguma surpresa… Independentemente de ser monárquico ou republicano, acredito que cada um tem o direito de pronunciar-se sobre o seu destino. Isso é que é ser democrata.