Síria. Cessar-fogo para valer?

Pela primeira vez em quase seis anos de guerra civil, há condições para uma trégua prolongada na Síria

O novo equilíbrio de poder no tabuleiro sírio atirou os norte-americanos borda fora e pode em breve resultar na primeira trégua duradoura depois de quase seis anos de guerra civil e qualquer coisa como 400 mil mortos. Rússia e Turquia anunciaram ontem o primeiro acordo de cessar-fogo geral para o conflito sírio depois de o regime ter reconquistado por inteiro Alepo e forçado a oposição armada a um futuro de quase irrelevância política. Poucos detalhes foram para já dados a conhecer sobre a trégua, que, a correr como o planeado, terá começado na primeira hora do dia de hoje. Sabe-se, porém, que pela primeira vez será o governo turco a responder por milhares de grupos rebeldes que financiou nos últimos anos. Do outro lado está o governo russo a assegurar-se de que o regime cumpre a sua parte do entendimento. O Irão, por sua vez, garante que as dezenas de milícias que comanda silenciarão as suas armas.

Não há muitas condições diferentes entre o acordo anunciado ontem e as duas tréguas gerais negociadas ao longo deste ano entre norte-americanos e russos. Os grupos ditos terroristas continuam de fora do entendimento, o que exclui o Estado Islâmico e o satélite sírio da Al-Qaeda, antes Frente al-Nusra, agora Fatah al-Sham. Como noutras tentativas, o cessar-fogo aplica-se a todo o território sírio. Como no passado, há diferentes países a garantir que as várias partes do conflito cumprem com a sua parte. É verdade que as tréguas negociadas por Washington e Moscovo não duraram mais do que alguns dias e não conseguiram impedir que os combates se reacendessem em várias partes do país. Mas a situação no terreno alterou-se desde então, tal como as figuras que garantem a trégua. Pela primeira vez há razões para crer que o conflito sírio pode apaziguar-se de forma duradoura.

Influência turca

Primeiro porque a Turquia tem muito mais influência sobre mais grupos rebeldes do que os norte-americanos. Washington financiou modestamente um número restrito de movimentos comparando com Ancara, responsável por grande parte do armamento que circula a sul da sua fronteira. A nova trégua quer também alcançar um grande número de combatentes na oposição: 62 mil homens de sete grupos armados, segundo anunciou ontem o governo russo. Entre eles está a Ahrar al-Sham, uma organização radical financiada por norte-americanos e sauditas que o Kremlin atacou repetidamente à medida que avançava com a ideia – de que agora se distancia – de que não existem rebeldes moderados no conflito sírio.

Mais do que a influência turca, porém, o que mais grita aos ouvidos da oposição é a perspetiva de preservarem a pouca influência que lhes resta aceitando um acordo que pode atribuir-lhes zonas de influência regional num cenário de resolução política, como parece ser o plano-base de turcos, russos e iranianos. Sem Alepo, aliás, o melhor que os grupos armados podem esperar é agarrar-se aos campos rurais da província de Idlib e combater o regime numa nova encarnação de guerrilha, como a que era usada pela Al-Qaeda no Iraque contra os Estados Unidos. “Desta vez tenho confiança na seriedade [da trégua]. Existe um novo ímpeto internacional”, dizia ontem um comandante rebelde que a Reuters não identificava. Os Estados Unidos – o gritante ausente das negociações – afirmavam que a trégua era um “passo positivo”, em linha com o que dizia o enviado especial da ONU e a Coligação Nacional Síria, a organização-chapéu da oposição política no exílio.

Ambiguidades

A situação pode ter mudado e os atores podem não ser os mesmos, mas uma trégua duradoura num conflito complexo como a guerra síria continua difícil. O acordo deve retirar parte das forças russas no terreno e abre portas a negociações de paz dentro de um mês no Cazaquistão, mas também afirma que qualquer grupo ‘ligado’ a movimentos jihadistas ficará de fora do cessar-fogo. A distinção não será fácil. O satélite sírio da Al-Qaeda está muito presente nos territórios rebeldes de Idlib, onde opera em alianças com grupos mais moderados muitas vezes difíceis de distinguir e ainda mais complicadas de desmantelar. O princípio de que os aliados de grupos radicais podem ser alvo legítimo permitiu no passado ao regime sírio atacar posições de rebeldes moderados e conquistar território, como acabou por fazer em Alepo. Damasco tem agora que decidir se tem mais vontade de controlar o país inteiro ou dividi-lo (mesmo que informalmente) com os seus opositores.