Rui Paula: “Muitos diziam que não ia conseguir conquistar a estrela Michelin”

Chef português conversou com o i sobre o seu percurso, a sua carreira e os objetivos alcançados

Pode ser um dos chefes de cozinha portugueses mais requintados, mas simplicidade no trato é o que não lhe falta. Numa conversa descontraída no Bar A Paródia, em Lisboa, Rui Paula falou sobre a sua infância, os vários restaurantes que abriu, a experiência no programa Masterchef e a conquista da estrela Michelin.

Qual a primeira imagem que tem da sua infância?

Nasci no Porto mas a minha vida foi passada em Trás-os-Montes. A minha mãe era professora do ensino básico e lembro-me de passar muito tempo em casa da minha avó. Era uma criança normal, brincava como todas as outras. O que me lembro melhor era da escola, dos jogos de futebol, das meninas no recreio, as traquinices…

Era bom aluno?

Mediano. Nessa altura ainda não sabia o que queria ser, nessas alturas ainda queremos ser tudo: bombeiros, doutores, engenheiros, pilotos, mas a cozinha não me passava pela cabeça.

Mas já cozinhava.

Mais ou menos aos 7 anos comecei a ajudar a minha avó na cozinha. Passava muito tempo com ela, em Favaios. Lembro-me de estar na cozinha grande, com os fogões a lenha… Quando ela recebia visitas, íamos preparar as torradas com ela, tinham de ser todas do mesmo tamanho. Só mais tarde é que comecei a cozinhar.

Foi a sua primeira influência?

Sem dúvida. E o meu avô também.

Como era ele?

Era como um pai. Mostrou-me que a vida não pode ser uma brincadeira. Transmitiu-me os valores mais importantes, obrigava-me a ser disciplinado mas ao mesmo tempo dava-me liberdade. Ensinou-me o valor do dinheiro, que é preciso trabalhar muito, que não se deve gastar mais do que se tem, que não se pode desperdiçar. Era uma pessoa forte, dura, mas ao mesmo a mais afável do mundo. Ainda hoje incuto esse espírito nas minhas equipas: exijo, mas também dou imenso carinho.

Fala dos seus avós como se fossem os seus pais…

Estes avós, da parte da minha mãe, tiveram uma grande influência em mim. Claro que os meus pais também. Mas dos 10 aos 15 anos fui para um seminário e perdi um pouco a relação que tinha com eles.

Como foi essa experiência?

Fui para este seminário em Beja porque na altura a minha mãe era professora e o meu pai presidente da câmara de Alijó. Tínhamos um primo que era padre e que sugeriu a minha ida para o seminário. E assim foi. Na altura senti uma grande tristeza, mas percebi que era a vontade deles. Se calhar não fui forte o suficiente para dizer que não.

Foi um período difícil?

Sim. Só vinha a casa nas férias grandes, praticamente. Só podia sair duas horas ao sábado e duas ao domingo. Deixei de brincar aos carrinhos. Podia jogar futebol e fazer ginástica, mas não eram as brincadeiras a que estava acostumado, eram mais adultas.

Mas retirou coisas boas desta experiência?

Sim, há sempre coisas boas e más. A educação e os ensinamentos que tive foram muito importantes. O seminário tornou-me uma pessoa adulta mais depressa.

Hoje em dia é uma pessoa crente?

Não… Quer dizer, acredito e falo com alguém que pode existir. Mas ir à igreja e praticar não, fiquei vacinado. Eu todos os dias tinha de escolher ou missa ou terço. Eu tenho fé, mas não tenho de ir à igreja, tenho é de praticar o bem no dia-a-dia e falar com Deus se me apetecer.

E quando sai do seminário, o que faz?

O que acha que acontece quando estamos presos e nos abrem as portas?

Temos vontade de fazer tudo. Foi isso que aconteceu?

Foi exatamente o que aconteceu. Tive logo um domínio sobre os meus pais – se estive ‘preso’ durante cinco anos, eles tinham de perceber que agora precisava de liberdade. Vim com uma grande desenvoltura de caráter e era quase independente sem o ser. Eu regressei muito adulto. Comecei a sair à noite e a fazer tudo o que isso implica. Dos 15 para a frente não tinham ‘mão em mim’. Passei do 8 para o 80, não vale a pena abordar muito esse assunto, deixo em aberto para as pessoas pensarem… 

Mas arrepende-se de algo que fez nessa altura?

Não me arrependo de nada. Nunca nos devemos arrepender de nada na vida, a não ser que matemos alguém ou façamos alguma coisa muito grave. Devemos tirar proveito do que fizemos errado. Mesmo esses momentos trazem muitos ensinamentos. 

E onde eram passados esses momentos?

Passava as férias e fins de semana em Trás-os-Montes e no Douro, mas estudava no Porto, no liceu Alexandre Herculano.

Mas pouco tempo depois de sair do seminário vai trabalhar para Paris, certo?

Fui para Paris com 17 ou 18 anos trabalhar para uma quinta para gente necessitada. As empresas davam coisas fora de prazo ou cuja validade estava quase a acabar e nós tínhamos de aproveitar e fazer a pratos com o que nos era dado.

E por que decidiu ir para Paris?

Foi um momento de irreverência, quis sair daqui. Mas depois de lá chegar tive de me fazer à vida. Dizia que ia passar umas férias e estas prolongavam-se. Perguntava se podiam enviar dinheiro e a resposta era não, por isso tinha de trabalhar. Foi nessa altura que fiz duas temporadas de dois meses num navio de exploração de petróleo. Comecei por lavar a loiça grossa, depois loiça fina e por fim o pequeno-almoço. 

Como tinha conhecimento dessas oportunidades de trabalho?

Andava com italianos, espanhóis… Na altura não podia dizer que era português. 

Porquê?

Lembro-me perfeitamente que as miúdas não gostavam que fossemos portugueses. Falava pouco e só dizia que era português depois de dar o primeiro beijo (risos). Era algo que me deixava muito triste. E assim fui conhecendo pessoas que não eram portuguesas e que iam falando sobre as oportunidades de trabalho que surgiam.

Houve alturas menos boas?

Como em tudo na vida, houve coisas boas e coisas más. Foi duro passar 14 horas seguidas a trabalhar. Mas trabalhar fora abriu-me horizontes: tive de estar sozinho, tive de saber desenvencilhar-me.

E nessa altura já sabia que queria ser chef de cozinha?

Continuava tudo muito confuso. Ia estudando, mas sem um futuro definido. O organismo e a mente demoraram a afinar (risos). Mas a verdade é que depois de decidir, concretizei as coisas muito rapidamente: aos 26 anos, abri o meu primeiro restaurante.

Como surgiu essa decisão?

Depois de fazer essas temporadas de meses em Paris, fui estudar marketing para o IPAM, no Porto, mas logo no primeiro ano percebi que não queria estudar mais. Senti que era bom a falar com as pessoas, conseguia incutir a minha ideia nelas, por isso ainda fui vendedor de máquinas de tabaco e carros. Mas percebi que também não era aquilo que queria. Pensei: “és um bom comunicador, gostas de cozinhar, a tua avó ensinou-te os princípios para saber fazer comida que todos gostam” e, com 23 anos, decidi trabalhar nesta área.

Foi trabalhar para vários restaurantes?

Não. O meu pai arranjou-me apenas três estágios no Porto em diferentes restaurantes. Estive num chinês, numa pizzaria e num tradicional. Queria ver como funcionavam, como eram geridos os pedidos, como eram feitas as compras.

E não ficou assustado com a quantidade de trabalho?

Não, até achei que era muito fácil gerir um restaurante. Vi como os outros faziam e quis abrir o meu próprio espaço. Não tive dificuldade em lidar com as coisas do dia-a-dia, a não ser no restaurante chinês, onde vi que se faziam algumas coisas diferentes daquilo a que estamos habituados.

Ficou chocado com o que se passava? 

Com algumas coisas. Mas é a cultura deles, não condeno.

E depois desta experiência, abre o seu primeiro restaurante. Teve medo do que poderia acontecer?

Sou uma pessoa com a autoestima muito elevada. Se tenho a certeza que sou bom a fazer uma determinada coisa, ela tem de dar certo. Se sabemos o que somos, não temos de ter medo, temos de ser positivos. 

Mas sentiu algumas dificuldades no início.

Sim, sabia que ia ser difícil. Eu não era conhecido, mas abri um restaurante muito diferente daqueles que existiam na altura naquela zona. Nós não podemos ser mais um, isso é que pode fazer com que tudo dê errado. O restaurante estava muito acima dos outros na limpeza, na toalha de pano, no guardanapo, na loiça escolhida. Era uma comida clássica, mais tradicional, mas servida com requinte.

De onde veio a ideia de servir os pratos assim?

Veio da educação que tive em casa: a minha avó apresentava um cozido à portuguesa em serviços lindos. Porque haveria de servir comida em travessas de inox, tudo atarracado? A minha avó não fazia isso em casa, porque é que vou fazer num restaurante? Se o cliente vai pagar, porque é que não pode ter exatamente a mesma comida, mas apresentada de outra maneira? E porque é que vou a um restaurante e só encontro uma garrafa de vinho? Porque não existe um copo adequado para beber vinho e este é servido num copo grosso, horrível? São pormenores aos quais se deve dar atenção, mesmo se for para servir costeletas de cordeiro com arroz de feijão.

Abriu o Cêpa Torta com a sua mulher. Como a conheceu?

Conheci-a numa festa em Alijó. Começámos a namorar quando eu tinha 19 ou 20 anos, naquela altura do reboliço.

E não houve problemas quando abriram o restaurante juntos?

Não. É preciso respeitar a liberdade do outro. Ela é uma pessoa muito forte e eu também, se não soubéssemos separar as coisas, hoje já não estaríamos casados. Em casa só se discutia algo muito grave, de resto não se falava sobre o trabalho. Hoje em dia ela está num restaurante e eu estou noutro. Eu sou chef dos três mas ela é responsável por um deles. Ela é um bom pilar, tanto familiar como profissionalmente.

A comida que fazia no Cêpa Torta era inspirada naquela que a sua avó fazia?

Era igual à que elas faziam em casa, era deliciosa. Dentro do registo clássico, fui fazendo alguns pratos diferentes, mas sempre inspirado na comida tradicional. As pessoas adoravam, mas eu comecei a sentir-me inferior?

Porquê?

Comecei a questionar aquilo que era. Um chef de cozinha? Mas para o ser tenho de saber fazer uma terrina de fois gras e eu não sei. Na parte técnica, estava muito aquém do esperado: não conhecia as técnicas todas para fazer um bom molho, um fois grãs… O que são trufas? O que é a comida italiana? Francesa? “Afinal és bom apenas a fazer este tipo de comida e há outros que sabem fazer este e outros” pensei. O que sentimos nessa altura? Inferioridade. Impotência. Não conseguia definir-me. Decidi aprender mais e, a partir do quarto ano do Cêpa Torta, comecei a fazer estágios: saía do meu restaurante e ia para outros aprender. Depois regressava ao meu e treinava. É esta resiliência que nos faz crescer. Quando consegui dominar a técnica, 13 anos depois de ter começado a estudar, achei que estava preparado para abrir o DOC. 

O Cêpa Torta abriu há mais de 20 anos. Que balanço faz?

Hoje em dia sou dono apenas do edifício. É um ciclo que fechou bem. Não sou saudoso, esta é a última entrevista em que vou falar nesse restaurante, porque é injusto para tudo o que veio depois do Cepa Torta continuar a bater na mesma tecla. Já saí de lá há 10 anos, foi muito importante para o início da minha carreira, mas o DOC foi muito mais importante. Esse sim é o [restaurante] completo, foi aí que expus tudo o que aprendi. Foi nesse espaço que pratiquei desde início [as técnicas] que se praticam ainda hoje.

Considera-se um visionário?

Completamente. Ao ponto de na altura, em 2007, ninguém acreditar neste projeto.

Disseram-lhe que não devia arriscar?

Toda a gente. Todos os meus amigos me disseram que me ia enterrar, a minha família também…

Como lidou com isso?

Se sou uma pessoa positiva e acredito no que faço, não tenho medo. Eu sabia que ia dar certo. 

Mas abriu o DOC com o seu irmão. Ele confiou em si…

Claro, teve de confiar. Ele é mais novo 10 anos. Era inspetor das águas, um emprego de ócio – a restauração é uma área muito trabalhosa. O meu irmão já era meu sócio numa empresa de barcos, mas ia conciliando esse negócio com o seu emprego. Quando abri o DOC, disse-lhe para deixar o emprego e vir trabalhar comigo.

E ele não hesitou?

Não, o meu irmão sabia que podia confiar em mim. De resto ninguém acreditava, todos me disseram para não sair do Cêpa Torta. Se assim fosse, ainda hoje lá estava.

Mas deve custar ouvir esses comentários…

Sentimos medo. Eu não digo que não tenho medos, mas não os transmito. Podemos achar que vai ser muito duro, mas logo a seguir surge um pensamento positivo.

Precisa de ter sempre alguém por perto para abrir um restaurante? Não consegue arrancar sozinho?

Hoje conseguia. Mas o meu irmão não cozinha nem faz sala, trata de contas. É preciso ter gente honesta, em quem possamos confiar. Tantos que abrem restaurantes e passado um tempo não têm nada. Eu criei a empresa numa base familiar, mas podia ser noutro sentido. Precisava era de ter alguém comigo, porque sozinho era muito mais difícil.

Mas esta dinâmica pode trazer problemas para a família.

Lá está, é preciso ser forte e dizer que quem manda sou eu.

E os outros não se importam?

Não, eles mandam no que têm de mandar, mas quem traça a linha sou eu. É isso que tem de ser respeitado. E sou sempre eu que decido que caminho tomar. Sou a luz. Tem de haver uma estratégia e a nossa foi delineada por mim. 

Neste momento é responsável por quantas pessoas?

Setenta. 

Não sente o peso da responsabilidade?

Sinto, cada vez mais. Já viu quantas famílias dependem de mim?

Isso não o preocupa?

Não, tenho conseguido fazer as coisas todas. Tenho os meus impostos em dia, bem como os ordenados, lido bem com essa parte. Com as outras…

Quais?

Com o cansaço, com o ter de ir agora para aqui e agora para ali e não ter vida própria. Não consigo parar, mas eu gosto disso. 

Mas pode começar a ressentir-se.

É o único medo que tenho: não ter força e capacidade para continuar assim. Para já, vai dando.

Três anos depois, em 2010, abre o DOP.

E mais uma vez volto a ouvir: isso vai dar mau resultado. O povo português é assim, não podemos ter mais do que um. Na minha cabeça, não havia problema. Eu via os outros chefes do mundo com mais restaurantes e tenho de me comparar com quem tem, não com quem não tem. Se não têm, porque é que falam? Também me diziam que não ia ter estrelas Michelin por ter restaurantes a mais. Chegou a prova de que estavam enganados… Todos os melhores chefes do mundo têm mais do que um restaurante. Porque é que não podemos ser iguais a eles? Porque vivemos em Portugal?

Acha que é isso?

Acho. O conceito tem de mudar. Temos de nos comparar com os que são muito melhores que nós para um dia sermos parecidos. 

Quem fazia estes comentários tinha a chamada ‘dor de cotovelo’?

Se calhar… Se calhar podia haver inveja… Mas não sei se era por isso que as pessoas me diziam aquelas coisas. 

Sente que tem de estar sempre a abrir novos espaços?

Sim, eu sou uma pessoa insatisfeita. Isso faz parte das pessoas empreendedoras.

Mas é um empreendedor ou um chef?

Vejo-me nas duas coisas. Eu não sou aquele tipo de chef que quer ter o seu restaurantezinho. Quero ter vários restaurantes, dá-me prazer lutar por objetivos. Gosto da adrenalina de abrir um restaurante, é um vício.

Mas esse vício pode a certa altura começar a ser perigoso?

Pode. Abri o Boa Nova, mas agora tenho noção que não posso abrir mais nenhum restaurante. É preciso ter os pés assentes na terra. 

Mas se calhar ainda vai abrir mais um…
Meu não.

Mas vai estar por trás da abertura de algum?

Isso é outra coisa… Há ainda um restaurante que idealizei e que nunca consegui abrir. Não pela beleza, mas pela logística. É um restaurante muito caro, que eu não tenho capacidade para ter. Mas quem sabe um dia haja um investidor que acredite em mim.

Anda à procura?

Não. Esse é outro dos segredos: não temos de procurar nada, as coisas vêm até nós. Quando somos bons, as pessoas vêm ter connosco.

Em 2011 é convidado para ser consultor do Hotel Vidago Palace. Como funciona essa parte?

Essa é a parte em que vêm ter consigo. Enquanto tiver o Vidago Palace, não serei chef consultor de mais nenhum. A parte do hotel é muito interessante, aprende-se muito. Não estou tão presente e dá muito trabalho, mas posso ir lá nem que seja uma vez ou duas por mês. 

Até aqui, que imagem tem de si?

Uma pessoa lutadora, empreendedora, que gosta muito do que faz, que está satisfeito com a vida. A parte pior é o sentimento de culpa de não estar tanto tempo com os meus dois filhos, de 19 e 14 anos. Mas já resolvi isso.

Como?

Não posso ser culpado por isso. Foi a vida que escolhi, dou-lhes a melhor educação possível, não deixo faltar nada e eles têm de saber aproveitar a oportunidade. Não posso sentir-me culpado porque se não fizesse tudo isto também não chegava onde cheguei. E eles têm de entender isso. 

Mas eles dizem que sentem a falta?

Não, eu é que sinto. Eles até podem sentir, mas não dizem. De resto, estou de bem com a vida. Mas não estou satisfeito…

Em 2013, decide arriscar no Brasil. Foi o seu sentimento de insatisfação a falar mais alto?

Não. Aí foi uma pessoa que me procurou.

Como se gere uma coisa destas?

Com equipas nossas.

E é fácil controlar à distância?

Se tivermos as pessoas certas a trabalhar connosco, sim. Vou lá três vezes por ano. E para além disso, existem telefones e o Skype. 

Tem o controlo de tudo no Recife?

Monetariamente não, o restaurante não é meu, mas na parte gastronómica e no conceito do espaço sim. 

Quais as principais diferenças entre o Brasil e Portugal?

No Brasil, os serviços não são dos melhores, temos de nos adaptar. É preciso ter paciência e estar com um parceiro que permita implementar as nossas ideias.

E tem conseguido?

Com algumas dificuldades, mas sim.

Qual foi o maior choque gastronómico?

Os produtos. Não chegam, são difíceis de arranjar. É assim em todo o Brasil, menos em São Paulo. Os custos também são muito altos – há coisas que são produzidas no Recife, vão para São Paulo e eu tenho de encomendar de lá… É esquisito, mas é assim que funciona. O cliente também é muito diferente. Aliás, o brasileiro que atendo cá comporta-se praticamente como o europeu e lá não, quer as coisas à maneira dele. Mas, temos de percebê-lo.

Depois aparece a Casa de Chá da Boa Nova, em 2014. Mais um projeto…

Mas aí já ninguém diz que sou maluco!

Qual foi a diferença?

O trabalho que se foi fazendo. Se todos deram certo, porque é que este não dará? 

Em termos de logística, este é o espaço que lhe dá mais dores de cabeça?

Sim, ainda mais do que o do Brasil. É um restaurante muito trabalhoso e tem de estar tudo perfeito. Atende muito pouca gente, é onde me preocupo mais em ter gente porque é um restaurante que nunca vai dar muito lucro, se algum dia der.

Não é sustentável?

Nesta fase, ainda não. Mas agora, com a estrela Michellin, não sei se será.

Estava à espera deste galardão?

Estava. No ano passado já estava. 

Ficou aborrecido quando na altura percebeu que não ia receber?

Fiquei triste. Eu e a equipa toda que estava a trabalhar, tínhamos todos esse objetivo. 

E o que sentiu quando conquistou a estrela este ano?

Senti-me reconhecido, faltava-nos esse galardão. A estrela deve-se a todos os restaurantes, porque há pessoas a trabalhar no Boa Nova que começaram no DOC. Agora temos de trabalhar para a segunda, essa é a forma mais segura de manter a primeira.

Isso é a sua ‘insatisfação crónica’ a falar?

Não, acredito mesmo nisto. Temos de fazer ainda melhor para garantir a primeira estrela. Nunca se pode dormir à sombra da bananeira. A primeira está garantida, mas se nos descuidarmos…

Então a segunda é um objetivo claro.

Sim, tal como a terceira. Se existissem cinco, a quinta também era um objetivo (risos).

Apercebeu-se da presença do observador do guia Michelin?

O primeiro que vai ao restaurante costuma apresentar-se. Se o restaurante tem potencial, eles começam a fazer visitas e não se apresentam. Nós desconfiámos da presença de um, mas nunca tivemos a certeza se era ou não um deles. Nem fui eu que desconfiei, foi o chefe de sala, achou que poderia ser alguém do guia Michelin e informou-me. 

Nem à sua mulher contou que ia receber a estrela. Porquê?

Porque recebi apenas um email a convidar-me para uma gala. Eu já recebi convites para galas, fui nomeado e não aconteceu nada, por isso, desta vez, também não quis dizer nada. Mas depois comecei a falar com algumas pessoas com mais experiência, que me disseram que se tinha recebido um convite era um bom sinal… Só aí decidi contar.

Acha que a estrela só por si já ’faz’ o restaurante?

Não. No Boa Nova temos uma média de 30 pessoas por dia. Dizem que a estrela faz com que a clientela cresça cerca de 20%. E realmente estou a ter mais gente, mas esta não é a altura do ano indicada para perceber isso.

Esta conquista obriga-o a ser ‘escravo’ de algum conceito?

Nada disso, obriga-me a fazer aquilo que sempre fiz na vida. Encaro a atribuição da estrela com responsabilidade: somos um restaurante reconhecido, não podemos falhar, e isso faz com que tenhamos de trabalhar cada vez mais e melhor.

 Mas há um distanciamento cada vez mais evidente em relação à comida que fazia com a sua avó.

Esse processo não começou no Boa Nova: a partir do momento que abri o DOC, comecei logo a distanciar-me dessas origens porque, por mais memórias boas que tenhamos, temos de apresentar a comida de outra maneira. O importante é fazer comida com sabor e isso faço em todos os restaurantes. Aquelas linhas vanguardista, em que se faz um prato de uma forma só porque tem de ser assim, não são o meu estilo. Queremos ser criativos, inovadores, mas acima de tudo fazer comida com sabor.

Qual é o seu prato mais criativo?

A nossa lula, servida no Boa Nova. Chamamos-lhe o arroz de lulas. É lindo! 

É difícil manter-se criativo?

É muito difícil ter sempre ideias novas. Sinceramente, da logística toda, a parte pior é essa.

Diga um ingrediente do qual não gosta.

Isso é difícil… Acho que gosto de tudo. Não sou fã de canja de galinha… Mas no outro dia fiz uma diferente, com foie gras e até estava boa. Não há nada que não consiga comer mesmo.

E o ingrediente que não costuma usar.

Não gosto de alecrim, não pode estar muito presente nos pratos. Adoro alho, mas a comida não pode saber só a alho. Não há nada a que diga um não redondo. Gosto muito de fígados.

Que sabor tão forte…

Não, se for bem confecionado é bom. Tudo é bom, se for bem feito. 

Entrou no Masterchef em 2014. Sente que se tornou mais conhecido?

Na minha área de trabalho, o Norte, já era, mas o Masterchef fez com que ainda fosse mais. Notei mais no resto do país.

Incomoda-o ser reconhecido na rua?

Nada. Podemos estar num restaurante e querer estar mais tranquilo, mas… é a vida. Eu gosto. Quando decidimos fazer um programa destes, já sabemos que vamos ter visibilidade. Se as pessoas vêm ter connosco é porque gostam de nós. E ainda bem que é assim.

Até hoje não sentiu uma invasão de privacidade?

Não. A não ser por parte de uma revista, na qual a mãe de um dos meninos [do Masterchef Júnior] disse que eu não paguei aos fornecedores. Não sei onde foi buscar isso, sou um livro aberto, tenho os meus impostos em dia, fornecedores pagos e os ordenados também. Em relação ao mediatismo, nunca tive nada a apontar. Podemos estar com mais ou menos vontade para tirar uma fotografia, mas a outra pessoa não tem que saber isso, não podemos dizer que não. E tenho que tratar todos da mesma maneira: não vou a correr tirar uma fotografia com a pessoa que tem uma carteira da Louis Vuitton e recuso-me a tirar com a que tem a carteira da feira.

Como foi trabalhar com o Manuel Luís Goucha?

Impecável. O Manuel Luís Goucha foi das maiores surpresas que tive nos últimos tempos. É uma pessoa humilde e boa. Sei até que ajuda bastantes pessoas e não quer que se saiba. É uma pessoa extremamente bem-disposta e espontânea, é a mesma coisa na televisão e em privado No primeiro dia de gravações disse-nos logo que não sabia nada, que estava ali para aprender e nós dissemos que também tínhamos de aprender com ele. 

E com o chef Miguel Rocha Vieira?

É um rapaz diferente, já aprendi muito com ele. Sei que tem muita estima por mim e eu também tenho por ele. Basicamente, somos um trio muito bom.

O Masterchef consegue mesmo lançar prodígios ou é apenas Reality TV?

Se fosse Reality TV, eu não queria fazer parte do programa. Sabia que os miúdos gravavam horas a fio, alguns vinham de longe, e todos conseguiram subir as notas na escola? É um programa que ajuda a crescer. Claro que alguns são mais fotogénicos do que outros e as pessoas identificam-se mais com determinados concorrentes, mas é um programa sério – para chegar lá, seja miúdo ou graúdo, tem de se fazer bem as coisas. E depois pode catapultar para uma carreira boa. O meu pasteleiro principal no DOC nem sequer chegou à parte dos programas, parte em que apenas alguns aparecem. A Rita, que ganhou o programa, esteve a trabalhar no Boa Nova. Agora já tem um projeto dela. O Manuel está a acabar o curso e de certeza que vai seguir [esta área]. É um programa muito bem feito, não é por acaso que é um dos que tem mais audiência.

Quais foram os concorrentes que mais o marcaram?

O Pedro Jorge é um miúdo maravilhoso. Não só pelos pratos que fez, mas também pela pessoa que é. A que ganhou, a Maria, também é uma miúda extraordinária. Nos adultos a Rita, o Manuel, a Margarida, a Sónia… tantas pessoas…

Aprendeu com eles?

Claro, aprendi muito. Desgraçado daquele que acha que já aprendeu tudo.

Não acha que as crianças são demasiado novas para serem expostas desta maneira?

Não. Está a referir-se ao problema que houve com a senhora que mencionei anteriormente, mãe de um dos concorrentes. Esse é um problema dessa senhora, não pode ser levada a sério. O filho dessa senhora [Gonçalo] foi atacado nas redes sociais, mas também, em parte, porque fazia por isso. Coitado do miúdo, ele lá não foi atacado nos estúdios, como também chegaram a dizer numa revista. O miúdo, em termos da teoria, era uma biblioteca, sabia muito. E só não continuou no programa porque outro fez um prato melhor do que o dele, não há nada a fazer. A rede social é o que é, existem pessoas que passam 24 horas agarradas ao computador. Mas o que é que o Masterchef tem a ver com isso? É um programa sério, feito por 100 pessoas. 

E acha que os chefs começam a ser encarados como ‘pop stars’?

Sim, mas, sinceramente, só são pop stars se o merecerem ser, como um bom artista musical, por exemplo. O meu medo é que se torne tão apetecível ser chef, que todos queiram ser sem fazer o percurso de que falei. 

Há cada vez mais casos desses?

Sim, muitos querem começar a casa pelo telhado e não pode ser, tem de se construir primeiro os alicerces.

Projetos para o futuro?

Não vou abrir mais restaurantes, a não ser que alguém queira investir em algo novo… Mas mais restaurantes meus, está fora de questão.