2016: Um ano negro para a música

George Michael foi apenas a última “vítima” de um ano negro para a música. O autor de “Last Christmas” partiu no dia de Natal de 2016, o ano que silenciou também David Bowie, Prince e Leonard Cohen.

2016: Um ano negro para a música

Dois mil e dezasseis foi um ano impiedoso para o mundo da música, um ano em que nos levou alguns daqueles que julgávamos imortais, que nunca nos passou pela cabeça que pudessem desaparecer, mesmo que saibamos que a eternidade ainda não está provada cientificamente. Teremos sempre os discos de David Bowie, de_Prince, Leonard Cohen ou de George Michael, autor do icónico tema “Last Christmas” e que faleceu no dia de Natal – até nisso a morte sabe ser irónica e requintada.

O cantor inglês foi a última vítima de um ano que muitos dizem ter sido negro como o manto que cobre a figura do ceifeiro. George Michael, um dos maiores nomes da história da pop, foi encontrado morto na cama de sua casa, em Oxfordshire, pelo namorado, Fadi Fawaz, a 25 de dezembro. “Era suposto irmos a um almoço de Natal. Fui acordá-lo e lá estava ele, deitado pacificamente na cama. Não sabemos o que aconteceu”, disse Fawaz ao jornal “The Telegraph”. Nas redes sociais, acrescentou: “É um Natal que nunca vou esquecer, encontrar o companheiro morto em paz na cama logo de manhã… Nunca vou deixar de sentir a tua falta.” As primeiras indicações da polícia diziam que não tinha sido encontrado nada de anormal junto ao corpo, mas o mesmo jornal escreveu que, no último ano, o músico inglês tinha batalhado contra um vício de heroína, tendo, inclusivamente, dado entrada num hospital por overdose. Ainda assim, a causa de morte anunciada em comunicado pelas autoridades foi “falha cardíaca”.

George Michael, que tinha 53 anos, escreveu um importante capítulo na história da cultura pop. Começou ainda no início da década de 1980, quando formou a dupla Wham! com Andrew Ridgeley, compondo temas como “Wake Me Up Before You Go-Go”, “Last Christmas” ou “Careless Whisper”. “O George tinha uma voz que nos transportava. Era o melhor cantor escritor de canções da sua geração”, sublinhou o antigo companheiro nos Wham! entre 1983 e 1986.

A carreira a solo de Michael começou em 1987 com a edição de “Faith”, disco que vendeu 25 milhões de cópias, mas desde “Paitience”, em 2004, que Georgios Kyriacos Panayiotou – nome de nascença – não editava discos novos. A sua discografia fica fechada com cinco álbuns de estúdio, que, no total, venderam mais de 100 milhões de exemplares.

O músico terá deixado uma herança de cerca de 100 milhões de euros, que agora deverá ser distribuída pelos seus afilhados. Só que George Michael tinha também uma faceta desconhecida de filantropo, tanto em ofertas individuais como doações institucionais, que tem vindo a ser revelada nos últimos dias. Como a história do casal que apareceu num programa de televisão por não conseguir ter filhos e a quem Michael deu cerca de 18 mil euros para recorrerem à vertilização in vitro; ou os lucros das vendas de “Last Christmas” que foram entregues a instituições para o combate à fome na Etiópia. Os lucros das vendas do single “Jesus To A_Child” foram entregues à instituição Childline; e já em 1991, as vendas do single “Don’t Let The Sun Go Down On Me”, lançado a meias com Elton John, reverteu para várias organizações de luta contra a sida.

Sexualidade e depressão

As paixões fogosas foram sempre temas recorrente nas suas composições. A ousadia, o charme, a irreverência, o corpo e a carne fizeram milhões de fãs desejarem-no. George Michael também foi um ícone sexual, tanto para mulheres como para homens. “Eu dormia com muitas mulheres nos tempos dos Wham!, mas nunca consegui desenvolver uma relação porque sabia que, emocionalmente, era homossexual”, confidenciou em 2004. Foi em 1998, depois de um episódio numa casa-de-banho pública em Beverly Hills que envolveu um polícia e olhares lascivos, que George Michael se assumiu publicamente e acabou condenado a trabalho comunitário, acusado de atentado ao pudor. “Ter revelado a minha homossexualidade não me ajudou em nada. A imprensa insistiu no facto de eu ter um ‘público hetero’ e começou a tentar destruir isso._E acho que alguns homens se sentiram frustrados porque as namoradas acreditavam que eu apenas ainda não tinha encontrado a rapariga certa”, disse numa entrevista.

A perda e a morte também foram marcas profundas na história de vida de George Michael. Em 1993, o seu namorado da altura, Anselmo Feleppa, morreu vítima de sida. Em 2007 foi a mãe, vítima de cancro. Os episódios ajudaram às dependências de droga, às várias detenções por posse de substâncias ilícitas e ao internamento para desintoxicações. Numa entrevista ao “The Guardian”, confessou que chegou a fumar 25 cigarros de canábis por dia.

Bowie, Prince e cohen

O ano de 2016 termina da mesma forma como começou: com a notícia do desaparecimento de um icónico nome da música. A 10 de janeiro, e poucos dias depois de editar o seu 25.º disco de originais, “Blackstar”, acordávamos com a notícia da morte de David Bowie – que até na hora da morte soube ser artista: manteve o seu cancro no fígado em segredo e gravou um último álbum que soa a despedida com um quarteto de jazz e com o seu amigo e produtor de longa data, Tony Visconti, onde o saxofone, o primeiro instrumento em que pegou, é uma figura central.

O músico inglês morreu em Nova Iorque, dois dias depois de celebrar 69 anos. Foi um artista completo: em primeira instância, músico que nos deixou uma herança musical que vai do rock ao pop, passando pelo jazz e pela eletrónica com álbuns que são autênticas obras-primas pela estrutura dos alinhamentos ou pelo lado mais conceptual; foi também pintor, com uma forte influência pós-modernista e inspiração em nomes como Frank Auerbach, David Bomberg ou Francis Bacon; mas também foi ator. Trabalhou em cinema, sobretudo na década de 1970 e 1980, em filmes como “O homem que veio do espaço”; “A História de um Gigolô”; “Feliz Natal, Mr. Lawrence”; e ainda em teatro, nomeadamente na produção da Broadway “The Elephant Man”.

O mundo voltou a chorar, em abril, com mais uma inesperada partida. Foi na tarde de 21 de abril que se soube da morte de Prince Rogers Nelson. O músico nasceu e morreu no Minnesota, nos EUA, aos 57 anos, e nem o brilhantismo que ostentava nem o génio que ele própria sabia que carregava consigo, evitaram uma dependência de medicamentos, como analgésicos, drogas e álcool. O músico foi vítima de uma overdose de fentanil, um opiáceo alegadamente cem vezes mais forte do que a morfina e da mesma família da heroína, mas deixou uma obra composta por 39 álbuns de estúdio: ele foi do rock, foi da soul, foi do funk, da disco e do hip hop. E deixou centenas de músicas feitas, diz-se que em número suficiente para lançar um álbum por ano até ao início do próximo século. Apesar do seu 1,58m, Prince Rogers Nelson foi um dos maiores génios da música a pisar este planeta.

Mas a crueldade de 2016 ainda não era suficiente: a adensar as nuvens negras sobre o luto que ainda perdurava desde abril, a 7 de novembro desapareceu Leonard Cohen. O poeta e músico canadiano, de 82 anos, também partiu a cantar quando pensávamos que o íamos ter para sempre. Quinze dias antes tinha lançado “You Want It Darker”, o seu 14.º disco de estúdio, mais uma vez pontuado por uma enorme intimidade que era também uma espécie de despedida. “I’m ready, my lord”, canta no tema que abre o disco. Cohen tinha perdido a sua musa, Marianne, em agosto, sabia que estava para morrer e foi deixando pistas para a notícia da sua morte. E nós a querer ignorá-las. A 17 de outubro, menos de um mês antes do seu desaparecimento, a revista “New Yorker” publicava uma reportagem-entrevista, com o canadiano, onde afirmava. “Estou preparado para morrer. Espero que não seja muito desconfortável.” Dias depois, num encontro com jornalistas a propósito do novo disco, Cohen voltou a abordar o tema. “Disse que estava pronto para morrer. Talvez tenha exagerado”, sorriu. “Tenciono viver para sempre.”

A morte ainda é algo com que ainda não sabemos lidar, mesmo quando se trata de pessoas que estão longe de nós fisicamente, mas que nos acompanharam tantos anos. Os artistas e a sua arte sempre nos compreenderam, quando mais ninguém o fazia. Aconselharam-nos e deram-nos novos mundos a descobrir – sejam eles Michael, Cohen, Prince ou Bowie. Outros se seguirão para preencher outros lugares de aconchego às nossas almas. Para ser menos trágico, mais vale encarar a morte como a partida para um outro lugar; ou como diz um “tweet” que se tornou popular nos últimos dias, da autoria de @MsTexas1967: “Tornou-se óbvio que David Bowie criou um universo alternativo melhor e está a preenchê-lo de forma seletiva, um a um”.