O repouso do guerreiro

A morte de Mário Soares terá um importante significado para o regime saído do 25 de Abril. 

Soares foi, como se disse e redisse, um dos ‘pais da democracia’. Lutou por ela, antes e depois da revolução. E nesse aspeto é diferente dos líderes dos outros três maiores partidos que nasceram com a democracia. 

É diferente de Francisco Sá Carneiro – que era um democrata mas verdadeiramente nunca combateu a ditadura -, de Álvaro Cunhal – que combateu a ditadura mas nunca foi um democrata – e de Freitas do Amaral – que só apareceu na política depois de 1974.

Mário Soares lutou contra Salazar, lutou contra Marcello Caetano, mas também lutou contra Álvaro Cunhal, quando este sonhou fazer de Portugal uma Cuba da Europa.

Aliás, julgo mesmo que foi este o grande momento da sua vida política e aquele em que ele mais se empenhou: a luta contra a hegemonia do PCP no novo regime. Uma hegemonia civil e militar, visto que o PCP – em alianças espúrias com a extrema-esquerda – dominava muitos quartéis.

Depois do derrube do Estado Novo, Mário Soares viu-se confrontado com a tentativa de imposição de uma ditadura de sinal contrário – e isso levou-o ao desespero e à revolta. 

Terminada uma ditadura de décadas, quando se pensava ter chegado a hora da liberdade, o país via-se perante o fantasma de uma ditadura comunista! 

Aí, Soares foi irredutível – e lutou com quantas forças pôde. Esta luta atingiria o clímax no célebre comício da Fonte Luminosa, que abriu caminho à vitória dos democratas em 25 de Novembro.

Por isso, Soares sempre foi contra um acordo com o PCP. As feridas abertas nesse combate foram demasiado profundas.

Após a revolução dos capitães, e aproveitando a sua experiência internacional, Mário Soares foi ministro dos Negócios Estrangeiros, conseguindo em tempo recorde o reconhecimento do novo regime português. E nessa qualidade teve um importante papel na resolução do problema colonial, que seria muito criticado pelos setores mais conservadores e pelos antigos colonos – que lhe votaram um ódio que perdurou até hoje.

Soares viria depois a ser o primeiro primeiro-ministro do Portugal democrático saído de eleições, mas nessa função nunca esteve tão bem como no papel de lutador.

Soares era estruturalmente um homem do contra, um homem de luta, um homem de combate, não era um homem do poder.

Também não era um homem para construir, um fazedor. Era um tribuno, na linha dos políticos da 1.ª República. 

Soares comprazia-se nos discursos, nas lutas políticas, e não nas obras. 

Não gostava de números nem de dossiês. 

E, neste aspeto, era o oposto de Cavaco Silva – que tinha o perfil de um tecnocrata e gostava de fazer contas e realizar obra.

Por isso, a coabitação de ambos, com um em Belém e outro em S. Bento, acabaria por ser curiosa. 

E foi na Presidência da República que Soares voltou a sentir-se como peixe na água. 

Aí pôde tornar a ser o lutador. 

Embora fosse a primeira figura do Estado, assumiu quase o papel de guerrilheiro. Fez uma constante guerra de desgaste ao Governo de Cavaco. Reivindicou o «direito à indignação». Imagine-se o que seria hoje Marcelo Rebelo de Sousa falar do ‘direito à indignação’ contra a ‘geringonça’!

Assim, mesmo no poder, Mário Soares foi sempre um político anti-poder. E na fase final da vida regressou aos seus tempos de juventude, apelando à revolta contra a troika e contra o Governo de Passos Coelho. Tendo várias vezes referido a sua simpatia por Passos, assumiu nesse período crítico atitudes quase subversivas. 

Mário Soares sempre foi um ‘revolucionário democrata’. 

Foi ele próprio antes do 25 de Abril, em batalhas verbais constantes contra o Estado Novo – altura em que escreveu o Portugal Bailloné (Portugal Amordaçado). Foi ele próprio depois do 25 de Abril, quando combateu contra o PCP. Foi ele próprio em Belém, combatendo a ‘ditadura de maioria’ cavaquista. Foi ele próprio na reforma, combatendo a troika e a austeridade. Mas nunca foi bem ele próprio como primeiro-ministro, cargo em que nunca se sentiu muito à vontade.

Soares sempre disse que eu não gostava dele, e que preferia os ‘caras de pau’ como Eanes ou Cavaco. 

Não era bem verdade:  ouvi-o divertidíssimo em longas conversas, foi sempre gentil comigo. Coordenei o Álbum de Memórias de sua mulher, Maria Barroso, publicadas aqui no SOL. Estive na sua trincheira antes e depois do 25 de Abril: do lado da liberdade.

Mas – e isso é verdade – sempre defendi mais os políticos-fazedores do que os políticos-tribunos. Talvez por causa das abundantes leituras que fiz da 1.ª República, levada à ruína por políticos que preferiam o palavreado à ação.