Lembrar Vasco Graça Moura no dia em que faria 75 anos

Poeta, tradutor, ensaísta, cronista, ficcionista, dramaturgo e o mais que o talento versátil e o trabalho disciplinado consentiam: letras para fados, prefácios e textos críticos, antologias, batalhas por ideias.  

Autor de uma obra monumental, feita a golpes de trabalho e de talento, Vasco Graça Moura, muito embora consciente do valor dessa obra, não se via com a cabeça rodeada de louros. Não obstante os artigos e estudos de fôlego que essa obra suscitou, os prémios com que foi distinguida, vindos dos mais diversos quadrantes. Não obstante ainda a consagração dos últimos anos, a multiplicarem as homenagens de sabor póstumo.

A figuração do poeta à maneira antiga, cuidando tanto da obra como da imagem literária, não se ajusta, aliás, a um autor que se definiu como «poeta até ao umbigo, os baixos prosa». A célebre definição, aplicada por Diogo de Sousa a Sá de Miranda, comparece nesse poema fundamental que é «nota sobre um autor». Ela convoca, não «o Grão Sá de Miranda», «o grave e docto Sá», na linha da tradição do mais rasgado enaltecimento do poeta Quinhentista, mas um perfil menos altissonante, menos composto, porventura despido da ambição de uma posteridade canónica, mais descontraído, mais ajustável, enfim, ao perfil de um escritor em que coexistem a capacidade lírica e o espírito prático.

Escritor moderno, para mais da era da incerteza e da «Grande Amnésia», VGM sabia que os ventos da modernidade não iam de feição às formas da permanência, tão-pouco à imortalidade literária, esse cume do delírio do ego. À confiança horaciana da perenidade da poesia («ergui um monumento mais perene / que o bronze»), preferia o poeta a modéstia expectante de que tantas vezes tirou o melhor partido e que encontramos, por ex., nas linhas finais do prefácio que escreveu para acompanhar os poemas da Antologia dos Sessenta Anos. Ali se insinua que o esquecimento tudo pode transformar em «dúvidas, incertezas, cinzas dispersas, pó».

Ao contrário de Jorge de Sena, um autor com quem mantem inegáveis afinidades e cuja incontida fome de reconhecimento o levou a traçar um cuidado programa de posteridade que o zelo e o empenho de Mécia de Sena haveriam de continuar após a sua morte, VGM, sem apostas deliberadas no futuro ou gestos de organização calculada, não parece ter-se preocupado muito com a sua sobrevivência literária, tão-pouco com o lugar a ocupar na história da literatura. A posteridade não fazia parte da sua agenda de urgências, tanto assim que reconheceu ser «péssimo a arquivar-se». «Viver como escritor é viver o momento», afirmou também.

No testamento de vgm (2001), não se dirige aos seus contemporâneos para afirmar primazias ou reclamar uma memória perene, mas para manifestar um irónico descaso pela reputação póstuma, parodiando, ao avesso, o célebre poema de Sena: «citei autores, pois que me citem, / ou me distorçam, ou crocitem, / me esburguem todo em fim de festa, / mas acrescento mais um item / e nada deixo a quem não presta».

VGM, que terá lido o conto do escritor inglês Max Beerbohm, sabia que a posteridade não é um lugar seguro. Talvez por isso, em vez de escrever uma carta à posteridade, tivesse preferido escrever uma carta no inverno. Num dos 17 sonetos que a integram, «a passagem do tempo», justamente, fixava o poeta as suas aspirações, «ter o gozo do acaso, arrostar firme/ distinguir o que presta e o que não presta// escrever de sabores e dissabores,/ e ser mais um entre outros sabedores.»

Se o poeta de Metamorfoses, que não se coibiu de indicar em que secções da história literária portuguesa merecia ser citado, louvado e ensaiado, não manifestava dúvidas quanto ao seu valor literário (o mais alto, naturalmente), VGM não raras vezes dá de si uma imagem literária aparentemente pouco zelosa da sua reputação e da sua posteridade literária, quando não compromete o seu estatuto de respeitabilidade erudita.

 Veja-se, por ex., a qualificação coloquial que lhe merece um dos textos de o concerto campestre: «este poema ficou assim-assim». Registe-se igualmente o exercício de auto-crítica que é o extenso poema «sobre o mês de dezembro», a produzir a anti-poesia da sua poesia. E não são raros os momentos em que a sua escrita se auto-representa através de imagens que a desvalorizam – «garatuja», «borrões e gatafunhos», «rascunho restaurado» – ou sugerem o escasso poder dos versos, da própria escrita e do poema, um lugar onde descomplexadamente admite insuficiências e fragilidades e assume fraquezas como as que o admirável «píramo e tisbe» reitera com impagável humor: «e para que o sentido ao fim não mingue, / porque é bastante curto o meu latim, / passo o resto do dia que se extingue / aos tropeções no texto». E mesmo se o poema esbarra em baixios que o impedem de chegar a bom porto, não guarda o poeta segredo disso, como deixa entender «o poema encalhado. baudelaire», um texto que convoca o falhanço para o título.

No capítulo da auto-depreciação, a poesia de VGM, tantas vezes associada a uma frieza intelectual, parece estar em sintonia com a de A. O’Neill, que, não por acaso, numa clara reencenação paródica do poeta à maneira antiga, se fez fotografar coroado de louros minando a seriedade da imagem secular da glorificação.

Tal como o autor de «Um adeus português», VGM não parecia temer o juízo do futuro. Ainda assim, achou por bem deixar importantes recados testamentários que visam desmontar equívocos: «às editoras […] / deixo um bom saldo a fazer, mal / fiquem meus livros no armazém: / quem me chamava cerebral / faça o favor de me ler bem.» 

 

Três poemas de Vasco Graça Moura

RETRATO EM CAUSA PRÓPRIA

fez-me o retrato a namorada russa.
bebia grand marnier, fazia frases.
e como luso engenho que se aguça
a perceber do que é que são capazes

as eslavas rugindo, as trepidantes,
dei-me ares de autor em transe de altos partos,
despenteado mental de então e de antes,
friamente romântico, a três quartos.

assim me simulei, eu acredito
mas é na técnica, nunca a inspiração
me deu fosse o que fosse, nem um grito.

feito a sanguínea, prefiro-me artesão.
escrevo e rasuro, volto a escrever, repito,
coisas da foz do douro, tudo em vão?

SONETO DA POESIA NARRATIVA

foi assim que cheguei à poesia narrativa:
nos poemas moviam-se figuras
e a essas figuras aconteciam coisas
e essas coisas tinham um sentido deslizante,
era uma espécie de hipálage do mundo:

com precisão a seta era dirigida
à maça equilibrada na cabeça da criança,
mas devolvia-se ao arco, depois
de varar o coração dos circunstantes
e era a vibração do arco a derrubar o fruto,

num zunido do ar que a flecha deslocava
na sua trajectória. foi assim que cheguei
à poesia narrativa: havia flores nos alpes
e a corda em vibração levava à música.

RONDÓ DA ESCRITA

No que escrevi me traduzi
e traduzi outros também
e traduzindo me escrevi
e a escrever-me fui eu quem

das várias coisas que senti
fez sofrimento de ninguém,
depois risquei, depois reli
e publiquei: assim porém

havia sempre mais alguém
para o chamar então a si.
também vivendo o que menti,
mas como seu, mas como sem

ter sido meu o que escrevi
fosse por mal, fosse por bem,
é a sua vez, e que mal tem?
no que escrevi sobrevivi.