Lisboa. Quando os turistas pedem para visitar cemitérios e secas de bacalhau

Chama-se City Guru, foi lançada há ano e meio e é mais uma empresa do setor do turismo. Mas tem duas coisas diferentes: roteiros fora-da-caixa e uma app que é uma espécie de Uber dos guias turísticos

Começar no Castelo, dar uma perninha no Chiado, reservar uma manhã para Belém e, quiçá, rumar outro par de horas a Sintra. Boring. Longe vai o tempo em que os roteiros históricos-padrão serviam, com mais ou menos entusiasmo, a todos. Mas a proliferação do turismo – e interesse dos próprios lisboetas – na cidade tem aberto portas e há cada vez mais opções fora-da-caixa, desde roteiros baseados em relatos de espiões, passeios a cemitérios ou pelos locais com um passado negro e visitas à Cerca Fernandina ou pela Lisboa literária.

A lista termina onde acaba a imaginação: tudo porque as empresas da área abrem, cada vez mais, a hipótese de os clientes sugerirem que tipo de visita procuram.

E os guias destas histórias mais e menos encantadas estão à distância de um clique. Uma pesquisa rápida pela internet devolve-nos mais resultados do que esperávamos – há roteiros por Lisboa, efetivamente, à vontade do freguês.

Para as pessoas que ainda não se renderam às tecnologias – sim, falamos de vocês que nos leem em papel (obrigada!) –, saibam que há outras possibilidades que nem implicam mexer no telemóvel. Basta passar de manhã na zona do Largo de Camões ou em frente à Brasileira e procurar os senhores com placas que dizem “Take Lisboa – Tours grátis” e acordar uma visita com os guias disponíveis.

É no Camões, aliás, que se reúnem grande parte dos grupos que percorrem os sítios mais famosos da cidade. Nesta quarta-feira, antes das 10h00, contámos pelo menos seis grupos distintos de turistas que ouviam a história do poeta português que dá nome ao largo. “It was a Portuguese writer…”, ouvimos dizer um guia. Poeta, gritamos internamente.

Nacionalismo ferido à parte, a nossa viagem começa um pouco mais acima, na sede da City Guru – uma das empresas no mercado que oferece roteiros alternativos, nascida há um ano e meio –, com a promessa de uma visita de street art fora-da-caixa.

Os Gurus da cidade

E se esperávamos algo diferente, foi algo diferente que tivemos, principalmente pelos lugares escolhidos pela nossa interlocutora. “A street art pode ser tudo. A calçada, por exemplo, pode ser um exemplo de arte de rua em que as pessoas não pensam”, resume a nossa guia de serviço, Marisa Quiñones, afastando a ideia de que apenas iríamos ver graffiti.

A visita – que estava programada para três horas, mas que se estendeu até às quatro – não foi feita a pensar em nós, mas sim na cliente que a “encomendou”. Christal Glispie, norte-americana, passou o ano em Paris e aterrou pela primeira vez em Portugal na segunda-feira. Por esta altura, deverá estar a voltar à cidade onde mora, Chicago.

Foi, no entanto, a cidade em que nasceu que lhe traçou o gosto por este tipo de roteiros. “Nasci e cresci em Detroit. Há uns anos, quando Detroit estava mesmo a bater no fundo, houve um artista franco-tunisino que resolveu ir para lá para tornar a cidade mais bonita [Bilal Berreni, que assinava os trabalhos como Zoo Project]. Foi morto na minha cidade em 2013 e, por alguma razão, senti–me profundamente mal com isso, marcou a forma como sentia a comunidade. Saí de lá e fui viajar durante sete meses e meio. Depois mudei-me para Chicago”.

Desde então, em todas as viagens que faz, Christal habituou-se a fazer roteiros de street art. Primeiro, porque quer encontrar mais trabalhos do Zoo Project, embora admita que já se tornou mais uma mania do que propriamente uma busca. “Sinto que consigo conhecer melhor as cidades. Aos sítios turísticos vou sozinha, com estas visitas acabo por conhecer um outro lado que mistura a história da própria cidade com os problemas contemporâneos.”

Declaração de intenções feita, o nosso roteiro começou ali mesmo, pelas ruas do Bairro Alto – mais concretamente à porta do Teatro do Bairro, onde uma sardinha carcomida repousa no pão ao lado de uma faca made in China [Regg Salgado].

Seguimos para a Travessa dos Fiéis de Deus, onde um mural sobre o 25 de abril criado em 2009 por António Alves e RIGO surge como a desculpa perfeita para contar a história da revolução.

Saltemos uns quilómetros à frente, para as Escadinhas de São Cristóvão, na Mouraria, onde um mural encomendado pela coletividade retrata os principais nomes do fado vadio. “O que significa vadio?” pergunta Christal. “É sem regras”, resume Marisa. “Era um fado kinky”, atalhamos nós. “Pois, a senhora parece a Betty Boop”, diz a rir – era Maria Severa.

E é também na Mouraria que visitamos uma galeria urbana ao ar livre feita de retratos dos moradores – um tributo da artista Camilla Watson –, que se apaixonou por este cantinho lisboeta e que vive hoje em dia no local.

Mas há mais para ver no bairro onde nasceu o fado e a arte surge onde menos se espera. Por isso, foi com ar de interrogação que entrámos no parque de estacionamento do Chão do Loureiro, onde cada piso foi o quadro de um artista diferente. Nomen, Paulo Arraiano, Miguel Januário, Mar e Ram foram os artistas que deram a lata ao manifesto. Por detrás dos carros, os murais vão surgindo, o que torna um local comum – e feio por definição – na mais inusitada das galerias.

“Este é o meu tour preferido”, confessa a guia. “Gosto muito de fazer visitas de street art, já cheguei a levar grupos ao Bairro Padre Cruz.” “Temos um modelo, que é o Random Zen, em que as pessoas escolhem o roteiro que querem consoante os interesses. Por exemplo, já fiz uma visita apenas sobre a arquitetura do Estado Novo”, relata.

Por mais estranhe que soe, mais usuais do que estes programas feitos à medida são os tours pelos cemitérios. “Já fiz muitas visitas aos Prazeres, mas também aos cemitérios Inglês e Alemão”. Neste tipo de visita – que Marisa diz ser principalmente pedida por norte-americanos – há, no entanto, um lugar especial para a guia espanhola com um mestrado em História da Arte. “Gosto muito de levar pessoas ao Alto de São João, é o cemitério que tem mais referências maçónicas.”

Despedimo-nos da visita – e de Christal – à porta da Capela de Nossa Senhora da Saúde, no Martim Moniz (da próxima vez que lá passar, repare no chão), e rumamos de novo à sede da City Guru, onde João Moedas – o verdadeiro guru do projeto, que se define como um “emigrante em part-time” – coordena as operações.

O uber dos Guias turísticos

As visitas feitas com “prata da casa” estão a correr bem, mas este não é o único serviço da empresa que nasceu para “dar a conhecer Lisboa de uma forma diferente da tradicional”.

Durante a Web Summit lançaram uma app homónima. “Basicamente, funciona como um Uber para guias turísticos”, explica o CEO, que também trabalha em publicidade. “Queremos dar a todos a oportunidade de mostrarem a sua cidade aos outros.”

Resumindo, os guias inscrevem-se e os utilizadores podem ver, através do telemóvel, os perfis dos mesmos e quais estão mais próximos. Depois de se encontrarem e iniciarem a visita, o “taxímetro” começa a cobrar e os clientes pagam 15 euros por hora.

“Até agora, são os estudantes universitários que mais se têm inscrito como guias turísticos, mas também já temos pessoas reformadas ”, revela. “ O objetivo era chegar aos 50 guias ao fim do primeiro ano, e ao fim de duas semanas já tínhamos esse número.” Todos se podem candidatar a guias, mas há um escrutínio. “Estabelecemos uma parceria com a AIESEC [uma organização internacional de estudantes] e são eles que têm feito esse trabalho.”

Neste momento, a City Guru já pode ser usada em Lisboa, Amesterdão e Oakland (Nova Zelândia). “Também já temos uma pessoa em Londres e estamos a negociar com o governo do Dubai. Em breve também vamos abrir no Porto”, descreve.

Do bacalhau ao futebol

Essas visitas ficam a cargo dos guias e os pedidos mais estranhos dos clientes não chegam à sede, mas isso não quer dizer que João Moedas não tenha histórias de visitas diferentes para contar.

A de que mais gosta envolve bacalhau. “Um grupo de norte-americanos pediu–nos para irmos visitar uma salga de bacalhau. Falámos com a Riberalves, que tem fábrica no Montijo, e levámos lá as pessoas.”

Atentos às tendências, têm já outros roteiros menos tradicionais na manga para este ano. “Faz este ano 50 anos que o Celtic de Glasgow ganhou a Liga dos Campeões no Estádio do Jamor. E eles, como são passados por futebol, vêm cá celebrar nos dias 24, 25 e 26 de maio. Um amigo da Irlanda veio à Web Summit, pensámos nisso e criámos um tour para estes adeptos”, conta.

Assim, para além dos festejos, os fãs do Celtic que quiserem aderir vão contar com um roteiro que começa no Jamor – o local da vitória –, seguido de um almoço na Cidade do Futebol, uma visita ao Museu do Benfica e ao estádio do Sporting. “Obviamente, com história pelo meio”, termina João Moedas. E, provavelmente, muita cerveja para celebrar o meio século.