O inimigo que era o amigo do meu avô

Eles encarnam uma época viva e contraditória, em que foi preciso ter coragem, mesmo a errar.

O meu avô, Manuel Tito de Morais, foi um dos grandes amigos de Mário Soares e companheiro de jornada na construção do Partido Socialista. Tenho muito pouco para contar de pessoal e irritam-me pessoas que falam delas a propósito de outras. Mas como todas a gente tenho opinião política sobre o papel dele na nossa história. Gosto de escrever este texto enquanto ele está vivo, e acho que a maior homenagem que se pode fazer a alguém é dizer claramente o que se pensa daquilo que fez. 

Vi pela primeira vez Mário Soares num Natal de família, antes do 25 de abril de 74, em casa de uma tia minha na Suíça. Quase todos os filhos e netos do meu avô estavam exilados. Muitos de nós tínhamos nascido em Argel, Praga, Paris e na Suíça – em muitos dos sítios em que se tinham exilado as pessoas que resistiam ao fascismo fora da clandestinidade. A minha tia Teresa foi presa por pertencer à pró-associação dos liceus. A Polícia política foi detê-la já dentro do avião que ia para a Suíça. O Pide que a interrogou disse-lhe o seguinte: «A senhora é neta de um republicano, o seu pai é socialista, portanto só pode ser comunista».

Esta teoria evolucionista policial estava parcialmente errada, o avô da minha tia (meu bisavô) , o homem que mandou disparar tiros de canhão contra o palácio do Rei no 5 de Outubro de 1910, no fim da sua vida já era socialista, e o meu avô (pai da minha tia) foi fundador do PS, homem da organização do partido, seu presidente, mas chegou a ser, quando estava exilado em Itália, simpatizante do PCI (Partido Comunista Italiano). Mas a teoria pidesca acertava na minha tia, era de facto militante comunista. No meio da família era natural conviverem comunistas e socialistas e portanto era natural que se passasse o Natal com a família Soares e o meu avô. A ideia que tenho desses tempos é enevoada, mas ficou-me que Soares era uma pessoa extrovertida e que ele e o meu avô tinham uma enorme cumplicidade. 

A família foi receber os exilados socialistas a Santa Apolónia – o meu avô e Soares – como fomos ao aeroporto receber Álvaro Cunhal e os nossos camaradas. Mas logo depois do 25 de Abril as coisas foram menos pacíficas. Se nos primeiros dias eu tanto vendia o Avante como o jornal do PS que dirigia o meu avô, não me lembro se o nome era, na altura, Acção Socialista ou o Portugal Socialista, rapidamente, para a parte comunista da família, o papel de Soares e do PS ficou menos simpático. Continuava, como neto, a ir ter com o meu avô à sede do PS do Largo do Rato, e até a visitar com ele Soares em Nafarros, no Campo Grande até depois na casa do Vau, no Algarve. Mas uma coisa era a família, que era vista como um clã, e outra era a política. Tinha a sensação que o meu avô era bastante mais à esquerda que Soares e que sempre sonhou com uma unidade na ação de socialistas e comunistas, mas via isso do ponto de vista de uma criança, em que separava o meu avô das suas responsabilidades políticas. Para quem gostava que em Portugal se tivesse erigido uma sociedade mais justa em que não houvesse exploração, que normalmente se chama de socialismo, Mário Soares foi o responsável por travar a revolução portuguesa. E fez essa opção unindo-se a setores de extrema-direita que estavam na rede bombista, responsável por muitas mortes no Verão Quente, como aceitando o apoio dos serviços secretos norte-americanos, dirigidos em Portugal por Frank Carlucci. Na altura, eu ouvi-o dos meus pais, contava-se que Mário Soares estava em reunião na sede do PCP, na António Serpa, nas alturas do 11 de março, discutia-se se se devia nacionalizar a banca. Soares opôs-se na reunião, dizendo que isso poria em causa a economia nacional. Durante o encontro chegou a notícia que o MFA tinha decidido nacionalizar a banca. Soares sai da reunião e vai para um ato público e a primeira coisa que diz é que o PS sempre tinha sido favorável às nacionalizações. 

Soares é um animal político no pior sentido e no melhor sentido. Usa a verdade como algo instrumental. Mas é um homem fisicamente corajoso, muito inteligente do ponto de vista tático, com a capacidade de distinguir sempre o acessório do fundamental. Isso só às vezes era prejudicado pela sua ira e mau feitio, escondido numa enorme bonomia aparente. Como quando fez tudo para que Eanes perdesse perante o candidato de extrema-direita Soares Carneiro. Nessas alturas, sem nunca colocar em causa a amizade, o meu avô tentava moderar-lhe o ímpeto. Na vez em que é eleito, pela primeira vez, Presidente, eu estava na campanha do Zenha, e o meu pai escreveu um livro que era o Dicionário Político de Mário Soares, em que se ilustravam com as palavras do próprio, os seus ziguezagues. Apesar de ter ganho a segunda volta com os votos dos comunistas, Soares nunca perdoou ao meu pai. O meu pai, Pedro Ramos de Almeida, contava que o Soares andava a dizer que ele era agente do KGB, para risota minha e do meu irmão.
Soares teve um papel importante no combate contra o fascismo, determinante no parar da revolução portuguesa, decisivo no aplicar dos planos do FMI ao país e na sua adesão à CEE e depois à União Europeia. Grande parte do modelo neoliberal que temos, como os recibos verdes, devemo-lo a Soares, mas ele não é resumível em poucas palavras. Depois de ter saído do Governo e dito que saía da vida política ativa, esteve nas manifestações e comícios contra a guerra do Iraque e na contestação à troika. O meu maior contacto com Soares é desta altura. Fui eu, como dirigente da ATTAC, que estava na organização das manifestações internacionais contra a guerra, que convenci Soares a participar nelas e a dar o seu contributo, numa altura que a direção do PS não apoiava as manifestações. 

Tenho dessa altura uma lição que aprendi com Soares e o seu mau feitio. Numa sessão em Setúbal, em que ele estava presente, eu referi como piada, para cortar o gelo, que estávamos contra a guerra todos, mesmo aqueles que tinham discordado em relação ao socialismo e a gaveta. Na sessão seguinte, no comício da Aula Magna, em que ambos fomos oradores, ele chamou-me à parte e disse-me irritado: «Disse uma coisa idiota. Ao ajudar a conseguir ter-me a mim, a Igreja e os comunistas na mesma causa, ajudou a fazer uma unidade importante. Ao dizer aquela piada, sem graça, dividiu». E eu pensei, «O raio do homem tem toda a razão». Viver é aprender.