Daniel Serrão. “O tempo da morte é de uma riqueza formidável”

O médico e bioeticista diz que os médicos têm de olhar para os doentes terminais como doentes privilegiados para tratar, não para evitar que morram.

Daniel Serrão passou os primeiros 75 anos entre o consultório e o laboratório. Agora, com 82, gosta de aparecer, de conversar, de juntar as pontas soltas da vida num novelo a que talvez se possa chamar sabedoria. O exercício tem muito pouco de esotérico, mas vive de autoconsciência e alguma meditação – estado que, garante, até consegue atingir a conduzir. Namanhã desta conversa, junto ao Tejo, tem a energia que se exige a quem quer viver o crescimento de dez netos como se fossem filhos. Fala da morte, de que fez o luto ainda antes dos 20 anos, e do país, que há muito deixou de ser uma nação.

Tem um novo livro com as suas reflexões, com destaque para a sabedoria. Hoje essa partilha de reflexão dá-lhe mais prazer?

Até aos 75 anos procurei passar o mais despercebido possível. Por vários motivos, até por feitio. Sempre tive pudor em aparecer, impor-me. Tinha o laborató- rio privado de anatomia patológica e parecia que andava a fazer propaganda. Quando fechei o laboratório fiquei livre. Mas se calhar a velhice também muda as pessoas e eu hoje tenho algum gosto em ter alguma presença pública, e até quem sabe menos autocrítica.

Tem até um site pessoal, coisa rara em Portugal.

Foram os meus filhos que mo ofereceram. Disseram-me: “O pai agora vai pôr a sua vida num site.” Tem muitos dos meus textos sobre bioética, antropologia, medicina e saúde, as áreas que tenho cultivado.

Falando de saúde, como vê o sistema actual?

Concordo com a existência do Serviço Nacional de Saúde, mas não este. Uma coisa é dizer que o país tem de ter um serviço nacional de saúde para que as pessoas tenham acesso a cuidados de saúde independente da capacidade para os pagarem, outra é ser prestado todo pelo Estado. Tendo alguma relação estatal, têm de ser livres. É um pouco o que está a acontecer: os hospitais já não são repartições públicas, são empresas, são sociedades anónimas, são parcerias público-privadas. Percebeu-se que as regras do funcionalismo público aplicadas à medicina não funcionam, a começar pelos horários. O doente não tem horá- rios e à medida que médicos e enfermeiros se começaram a ver como funcioná- rios acabou. Pagam horas extraordiná- rias? Não pagam? Então não trabalham. Eu há muitos anos disse que a medicina não era uma actividade burocratizável. Tem de haver controlo, mas o controlo faz-se pelos resultados.

Afastou-se desse lado da saúde há seis anos. Foi premeditado?

Comecei com dez anos de antecedência a preparar o meu afastamento para me dedicar à bioética. Nunca mais entrei no serviço de anatomia patológica do Hospital de São João que dirigi durante mais de 30 anos.

Porquê?

Entendi que, no momento em que tinha terminado a minha função, as pessoas tinham de se sentir livres para fazer o que quisessem. Gostei muito de ver a forma como o Sobrinho Simões desenvolveu até à última potência o trabalho. E outros como a Fátima Carneiro, que convidei para assistente. Ela chegou e disse: “Aceito, mas tenho condições.” Já está- vamos depois do 25 de Abril, porque antes agradeciam e não punham condições. Hoje é uma das grandes especialistas em cancro do estômago e é directora do serviço hospitalar. O crescimento das pessoas todas deu-me uma alegria formidá- vel, eu é que já não tinha de lá estar.

Nestes anos de reflexão sobre bioética, qual foi a questão mais difícil?

O estatuto ético do embrião humano. É o que suscita maior emotividade, talvez porque acabamos por nos lembrar que já todos tivemos naquele estado durante umas horas. Será que um embrião merece um respeito absoluto? Eu penso que tem direito absoluto à vida, como todas as outras formas de vida.

A eutanásia não é igualmente problemática?

Não. É uma questão que só se deve levantar no interior dos cuidados de saúde. Uma pessoa não pode pedir a outra para a matar. Só há eutanásia quando uma pessoa pede a outra, de uma forma clara e responsável, que a mate. Não se aplica, por exemplo, quando se recusa um tratamento e o médico diz que se não o fizer vai morrer. Há uma diferença no juízo ético entre a recusa do tratamento e a eutanásia.

Mas é uma fronteira estreita.

Na profissão médica, onde o assunto deve ser debatido, é completamente diferente. Aceitar a opinião da pessoa é um dever do médico, punido com pena de prisão até três anos. A eutanásia não. O médico delibera que vai matar a pessoa, na sua consciência e nos meios que vai usar, e isso, para mim, é inaceitável. Agora, se eu disser que é proibido pela lei, não posso matá-lo, estou a ser hipócrita. Porque é que a pessoa quer morrer, tem dores insuportáveis? Vamos tratar as dores.

Teve pedidos desses?

Nunca nenhum doente me pediu a eutanásia e tenho acompanhado muitas pessoas amorrer. O tempo damorte é de uma riqueza formidável, mas é preciso ter disponibilidade e já se ter feito o luto da pró- pria morte, senão projecta-se a ansiedade em cima daquele que está a morrer.

Com que idade fez esse luto?

Muito cedo. Comecei a fazer autópsias de cadáveres ainda antes dos 20 anos. Pegava num bisturi, abria um cadáver, tirava-lhe as vísceras. Como poderia ter problemas com a minha morte? O convívio do patologista com o corpo morto dá-lhe noção de que a morte é um acontecimento natural e até está geneticamente condicionado.

Os médicos estão preparados para isso?

Vai-se falando, mas devia haver mais debate. Mas aquilo que se devia repensar são os tratamentos excessivos, fúteis e inúteis. O médio resiste muito a fazer a avaliação da situação terminal e tem de aprender a fazê-lo. Estar a fazer quimioterapia num doente que daí a um ou dois dias morre é inaceitável, não há nenhuma possibilidade de aquela quimioterapia fazer seja o que for a não ser causar sofrimento. Isto deve ser ensinado nas faculdades.

Viu muitos casos desses?

Uma vez uma senhora tinha um melanoma maligno num pé e fez metástases no intestino. Entrou em oclusão, o cirurgião abriu e tirou 80 centímetros do intestino. Passado um mês faz segunda oclusão e o cirurgião volta a operar. Pensou que fossem aderências da operação anterior e tirou mais um metro de intestino. Preparou-se depois para operar uma terceira vez. O médico dizia: não vou deixar a doente morrer em oclusão. Ela não estava a morrer em oclusão, estava a morrer de metástases do melanoma. E morreu na sala de operações. É um caso, não faz regra, mas é um exemplo de como a ponderação das situações terminais devia quase passar a ser uma especialidade médica.

Como os cuidados paliativos?

Sim, hoje são uma nova área de especialidade. No momento em que se percebeu que havia forma de dar conforto às pessoas que estão a morrer, criaram-se essas condições. O médico tem de olhar para o doente terminal como um doente privilegiado para tratar, não para evitar que morra. Admite-se que um doente de oncologia faça uma escara porque ninguém vê que ele está deitado dia e noite? Não é uma questão de atrasar nem apressar a morte, mas de morrer rodeado de cuidados. Era um pouco o que se fazia antigamente. Quando as pessoas iam para casa, como se dizia, desenganadas dos médicos. O doente assumia o estatuto privilegiado de moribundo e manifestava as suas últimas vontades.

Tem falado de uma crise na bioética…

Há alguma crise porque há uma apetência da política, da religião, da economia para absorver a palavra. Quando a palavra começou a ser comida pelas diferentes actividades humanas perdeu a sua importância e sobretudo a sua independência. A bioética é uma reflexão livre dos seres humanos, a partir da sua inteligência, a partir da sua capacidade de apreciação do mundo e transformação da percepção em significados a que chamamos valores. O valor é o sentido que se atribui, pode ser estético, ético, pode ser bom ou mau, ou pode ser estúpido ou inteligente a um nível racional. Não pode ser um poder porque, no momento em que se transforma num poder, perde a possibilidade de se exercer reflexão livre dos cidadãos, cede a condicionantes. A ética ou a bioética devem ser prescritivas, não executivas.

Um exemplo?

Ficou famosa a frase do presidente da GM: “O que é bom para a General Motors é bom para o país.” É ético pesando o interesse da empresa, fazer determinada publicidade passa de indecente a ético consoante o benefício para empresa. Mentir se for uma coisa muito má não é bom, mas se for uma mentira que dê beneficio até pode ser incluída na ética da vida social ou política. A Assembleia da República tem uma comissão de Ética para ver se há conflitos de interesses, não para ver se os deputados falam verdade ou se são homens e mulheres de carácter.

Falando de política, surpreendeu-o a promulgação do casamento homossexual?

Para mim foi uma questão de técnica política. Aquilo que o Presidente da Repú- blica fez foi evitar que se continuasse a discutir, mas podia não o ter feito pois faz parte dos poderes naturais vetar leis. No meu ponto de vista não iria influenciar os debates sobre a situação econó- mica, aquilo que foi em parte invocado pelo PR.

Mas partilha da desilusão já expressada pela ala mais conservadora do país?

Acho exagerado. Tem um saldo muito superior a este pequeno incómodo que foi produzido em alguns dos seus apoiantes, ainda que os motivos evocados não me pareçam razoáveis ou de peso. Mas o que sobrevive à questão é ainda mais complexo. Há um lastro pesado e indecente sobre a homossexualidade. Até Oscar Wilde foi preso no Reino Unido, que sempre teve uma grande propensão para aceitar as liberdades individuais.

Vai procurar um candidato presidencial alternativo?

Não. Pessoalmente gostaria que ele não tivesse promulgado, mas é a minha opinião. É um bom candidato, com toda a experiência que tem e com as decisões que tomou desde que é Presidente da República.

Continua ligado ao Vaticano?

Sou membro da Academia Pontifícia para a Vida, criada por João Paulo II. Era uma academia com poucas pessoas, funcionou bem durante um primeiro tempo e depois deixaram de ser reuniões fechadas onde as pessoas estavam à vontade para discutir o seu próprio pensamento e o Papa pedia para que nos pronunciássemos sobre determinados assuntos. Com o Papa Bento XVI já estive duas vezes mas ele não tem o mesmo estilo, não sei se quererá manter a academia. Os textos dele são mais rigorosos do ponto de vista teológico e até mesmo quando introduz noções científicas. João Paulo II gostava mais de tratar os temas de uma forma mais afectiva. É uma perspectiva diferente.

Antevê outras mudanças na Igreja Católica?

Vai sempre acabar por haver mudanças, mas acaba por ser cíclico. Se vir a sequência dos últimos Papas, João XXIII era gordo, bem-disposto e ao convocar o Concílio Vaticano II achou que seria possí- vel conversar e arranjar soluções concretas para os problemas da igreja. Morreu e entrou Paulo VI, que era um intelectual mais firme, mais seco, bastante mais fechado. Morreu e veio João Paulo II, uma encarnação de João XXIII. Era, como se diz, um actor no sentido em que queria ter uma posição pessoal, ia aos sítios, beijava o chão, punha o chapéu do mexicano, aguentou o discurso de Fidel Castro durante quatro horas – e a igreja viveu um longo período neste clima de afecto. E agora voltou outra vez a cabeça. João XXIII era coração, Paulo XVI era cabe- ça, João Paulo II era coração e Bento XVI é cabeça. O próximo que vier aí vai ser outra vez coração.

O sacerdócio das mulheres é uma das mudanças em vista? Acho que sim. Penso que vai ser progressivo. Os diáconos já podem ser homens ou mulheres, e o diácono no cristianismo primitivo já tinha muitas funções. Há mulheres santificadas, o maior posto. Santa Joana d’Arc, Santa Catarina de Sena. Com a sua ligação forte à Igreja, nunca quis ser padre? Sim, quis. Estava a caminho do 4º ano de Medicina e pensei: Queres ser médico ou padre? Ser médico venceu e até

O sacerdócio das mulheres é uma das mudanças em vista?

Acho que sim. Penso que vai ser progressivo. Os diáconos já podem ser homens ou mulheres, e o diácono no cristianismo primitivo já tinha muitas funções. Há mulheres santificadas, o maior posto. Santa Joana d’Arc, Santa Catarina de Sena.

Com a sua ligação forte à Igreja, nunca quis ser padre?

Sim, quis. Estava a caminho do 4º ano de Medicina e pensei: Queres ser médico ou padre? Ser médico venceu e até hoje não me arrependi, com a convicção de que eu poderia como médico realizar algumas das aspirações que eu achava que ia ter como monge beneditino, que era o serviço para os outros, e estive sempre ligado à Igreja.

Hoje é mais rara essa manifestação da fé na vida pública.

Nem a Igreja devia querer. Essa mistura é péssima, já chega os sítios onde os religiosos são os donos do país. Isso é a pior coisa que pode acontecer. A actividade política e a da inteligência é uma coisa, e a actividade da inteligência que conduz à fé é outra coisa.

Neste momento, quem é que gosta de ouvir falar no país?

É uma pergunta muito difícil. A maior parte das pessoas que ouço falar falam não para o país mas em defesa dos seus interesses. Não gosto, nunca gostei praticamente de nenhuma das pessoas que exerceram as funções de primeiro-ministro ou ministros. De todos, quem eu acho que tem um pensamento profundo da portugalidade ou do sentido da nação é o Adriano Moreira, que continua hoje completamente livre. Depois gosto muito de ouvir e ler o Eduardo Lourenço. Gostei muito e durante muito tempo, já morreu, daquilo que escreveu o Agostinho da Silva. Aquela vertente mais esotérica, o espírito santo e o sebastianismo não, mas ele tinha uma ideia para a pátria e isso é o mais importante.

Em falta?

A organização política é uma coisa, mas o essencial é a nação. E hoje eu não encontro esse sentido em muitas pessoas, sobretudo homens e mulheres de 30 e 40 anos, que sejam capazes de falar à nação como uma nação e não como Estado. O Estado é a nação politicamente organizada, mas a nação existe antes do Estado. Ninguém se preocupa, e isso é um problema da nação, que morram mais pessoas do que as que nascem. Era preciso que aparecesse alguém capaz de falar à nação.

Mas não vê ninguém?

Não vejo, mas posso ser eu que estou a ver mal. Não estou a falar de carismáticos, nem de líderes, estou a falar de quem seja capaz de ser entendido pela nação profunda, não apenas pelos intelectuais. Aquilo que foi o sucesso do Salazar nos primeiros dez anos da sua governação foi perceber que tinha de falar para a nação. O slogan era “Tudo pela nação, nada contra a nação”. Não era o governo e muito menos o Estado. Prometia transformar a nação em Estado, se fosse um novo Estado e não o dos anos da República. Dizem os historiadores mais independentes que, no fim daqueles dez anos, o Estado Novo era igual ao estado velho – tinha-se organizado em poderes parcelares, políticos, partidários, embora só houvesse um partido, o regime era partidário. A partir do momento em que havia partido, havia os tipos que eram do partido e os que não eram. Acabou a nação.

Com 82 anos, o que lhe falta fazer?

Tenho uma enorme vontade de viver e de fazer muitas coisas. Tenho o vício de viajar e há muitas coisas que nunca vi. É uma vergonha mas nunca pus os pés nos Estados Unidos da América. A minha maior alegria é ver os dez netos crescerem, cinco rapazes e cinco raparigas dos dois aos 18 anos. Tive seis filhos e a minha mulher é que tratou deles. Em relação aos netos eu tenho uma curiosidade profunda de saber como eles vão passando estas fases todas, a escolha da profissão, sem intrometer, mas é como se fosse uma experiência pedagógica. Vou muito falar a liceus e sinto-me jovem.

A única coisa que o faz sentir mais velho é a sabedoria?

É chegar a uma idade que permite olhar para trás e fazer uma perspectiva de absoluto, não de relativo, porque vivemos sempre a relativizar as coisas. É quando cada um, na sua intimidade mais íntima, se vê a si próprio, descobre o espí- rito. Depois, das duas uma, ou acha que é só esse espírito que existe, a autoconsciência, em que nos podemos ver como um outro, ou entendemos que esse espí- rito é parte do transcendental. Não tem discussão possível, é uma espécie de intui- ção. Os neurobiologistas começam a ver se haverá algum suporte neurobiológico para o conhecimento intuitivo. Se houver, pode ser essa a subtileza da fé.

Ter ou não a capacidade de intuição?

E também não é garantido que fique. A intuição fica sujeita ao domínio do cérebro racional e do emocional. É preciso ter tempo para olhar para o interior. Todas as religiões têm isso, as religiões orientais praticam-no ao máximo – o que mais valorizam é a pessoa olhar para si própria e viver o mais tempo possível na autoconsciência.

Faz meditação? Sim, em qualquer sítio. Não é uma coisa prolongada, não sou de estar ali uma hora de braços cruzados. É a passagem quase súbita de um estado de atenção ao exterior para uma atenção no interior. Posso ir a guiar o automóvel que não me esbarro.

Entrevista publicada a 7 de junho de 2010