Noite de Reis. Esta verdade nua que nos engana mais do que a mentira

No Teatro do Bairro, uma encenação peculiar da comédia de Shakespeare revela-se um exercício astucioso que devolve o teatro às suas bases

Qualquer punhado de palavras, se puxadas numa certa ordem, ditas com um cuidado de quem trança os cabelos feridos numa cabeça, fazem sentidos bestiais. Mais vivas que os dias, nas palavras há reinos que se furtam a este mundo. “A nossa terra treme [ainda] à passagem de tantos colossos”. Só é preciso algum silêncio atento para escutar como dele levam os sentidos, das leis observam em acção a sombra de crimes, e enfeitiçam horas mortas, prevaricam com as peças dispostas sobre uma secretária burocrática. Uma só frase representa quantas peças no teatro da cabeça? Celebram as suas missas degeneradas, fazem cair maçãs aos pés de quem as ouve, dão-se a saborosos devaneios, e, num tempo a que faltam públicos empenhados, quem melhor que o bardo para conduzir ao excesso os espíritos extasiando-nos “o bicho do ouvido”?

Shakespeare tinha a compreensão desses estados entre as emoções, sabia virar a alma sobre si, usar de um encantamento barroco, fixar-nos às suas personagens e situações, e produzir desastres espectaculares, como se arrastasse às costas um saco de ventos e pudesse, de um instante a outro, organizar tempestades no mesmo copo onde outros deixam de molho a dentadura. Também nos diz o segredo de que sofrimento ou alegria, o humor e outros estados de gozo, falam a mesma língua inesperada.

“Noite de Reis ou como lhe queiram chamar”, a encenação de Luís Moreira a partir de Twelft Night, or What You Will, que está até dia 22 de Janeiro no Teatro do Bairro, despe bastante a cena como se quisesse apagar a luz, tornar as formas, os corpos dos actores, apontamentos mínimos, não há cores senão o preto e o branco, raros adereços, tudo como se desenhos gizados levemente numa penumbra de sonho. Esta peça que tem tido uma faustosa tradição, aproveitando a um género mais festivo e carnavalesco, aqui parece surgir com um pé atrás, como se da austeridade tivesse ficado uma técnica, um osso imaginando o peso e a força do músculo e da carne à sua volta. Cabe às palavras iluminar a cena, como a música que logo de início nos avisa para buscarmos a sumptuosidade e o excesso noutro lado.

Há assim uma segunda mensagem que se entretece de forma discreta, mas firme, entre as astúcias com que Shakespeare dirige esta comédia. Deixando o palco como se fosse um mero quadro de ardósia onde com a composição animadora dos seus gestos os actores escrevem a peça, esta encenação devolve-nos ao próprio espaço de leitura, de ensaio, onde encontramos as mesas em redor das quais se terão sentado aqueles que daí a pouco hão-de trocar os seus nomes, a pele, os modos pelos de Violeta, Cesário, Olívia, Orsino, Malvolio, Festa… 

Assim a peça vai num crescendo, adaptando o ar na sala, as tão humanas referências que se acenam entre o início do século XVII e do XXI. Esta redução estratégica diz-nos muito sobre as necessidades do teatro, ou antes, sobre tudo aquilo de que pode abdicar. Da página para a voz, do verso, com a sua ciência de equílibrios, à aprendizagem que o actor faz ao confrontar-se com cada personagem, começando por falar ao espelho, até passar além dele. Neste sentido, tanto o teatro, como a poesia, são artes tão rudimentares quanto poderosas. Violam constantemente a fronteira do que ali não está, conseguindo apontar para coisas que, mesmo não estando, se vêem, ganham forma através da luz que tomamos emprestada a partir da imaginação.

Esta produção vai, deste modo, além da revisitação do “extático oceano antigo” que são as peças de Shakespeare, ela consegue pô-lo na nossa mão, feito moeda do tempo, os dois lados dessa moeda: o do trabalho na página, solitário, e aquele que nasce em volta da mesa, quando uma comunidade se dispõe a povoar alguma visão.

Noite de Reis é um divertimento que se leva a sério, que nos seduz pela forma como da dispersão inicial, algo caótica, das suas peças consegue montar o seu puzzle, e isto enquanto cada personagem guarda a sua distância, os seus ensejos próprios, tendo direito à sua hora de revelação. Desta vez Shakespeare põe a sua matemática de subtilezas em campo a favor de prazeres que não exigem a cabeça de ninguém, pelo menos não nesse sentido último, que enforca. Agora é preciso prestar atenção, ver como os pequenos dramas são urdidos, perceber a natureza ansiosa que é a humana, como a sombra de um vislumbre pode despertar um arrebatamento insano como a paixão.

O que acontece não é o mais determinante, não é de todo isso o que importa. Não é o acidente, mas a predisposição a ele. Se as personagens se enredam, se se apaixonam e se rasgam e à compostura, se sofrem de ciúme, se vêem menos ou mais do que está à vista, é preciso aceitar esse outro plano inquieto em que cada um é prisioneiro de certos limites, debatendo-se perigosamente com eles. A ampla rede que o bardo estende e aos sacões vai puxando, traz à superfície esse mundo ocluso, esse jogo de bastidores, que aguarda frustrante ou ferozmente a sua deixa para mudar a inclinação da história.

No momento em que o machado atinge o gelo, a mulher que usa um vestido branco, em contraste com as tonalidades escuras de quase todas as outras personagens, a mulher que passa por rapaz apenas porque diz que o é, este personagem que nesta encenação não chega sequer a usar o disfarce, mas se basta com o disfarce daquilo que diz de si, ou esconde, sublinhando como basta agir sobre a tal disposição dos outros para ver menos ou mais do que lá está. E isto é especialmente curioso hoje, num tempo em que as máscaras caem e a ficção prossegue sem nem um tropeço, ganham nesta peça um novo relevo as palavras de Shakespeare: “Disguise, I see thou art a wickedness,/ Wherein the pregnant enemy does much./ How easy is it for the proper false/ In women’s waxen hearts to set their forms!/ Alas, our frailty is the cause, not we,/ For such as we are made of, such we be.” 

Esta encenação vinca, por tudo isto, a margem negociável entre a realidade e o desejo, e como tantas vezes este último se impõe, cabendo ao que faz rir, ao que, sob essa fachada, trafica por vezes a verdade mais nua. Esse é o Bobo, Festa, o personagem mais vezes interrompido, e que mesmo assim consegue dizer-nos: “Foolery, sir, does walk about the orb like the sun, / it shines every where. I would be sorry, sir, but…”

E se a encenação tudo despe, cabe aos actores uma mais petulante ousadia de fazer como fazem as crianças quando brincam, no modo como de restos erguem reinos, e com as palavras ditas do modo mais autoritário, com um fingimento que em si mesmo acredita, rapidamente criam a sua constelação, legislam arbitrária ou malevolamente, são senhores cruéis e, no momento seguinte, obtêm a redenção. Os actores nesta produção parece que brincam. Dão-nos esse gosto. Tornam-se belos do jeito quase alheado como o fazem. Vendo as coisas desenrolar-se dentro de si mesmos. Como todos um dia fizemos.