Bernardo Pires de Lima: “A aproximação entre Rússia e EUA não é ideológica, é dos círculos de interesses”

É coautor, com Raquel Vaz-Pinto, do livro “Administração Hillary”. É um dos mais argutos analistas da situação internacional em Portugal. Tem a rara capacidade de ver para além do horizonte das suas ideias e convicções.

As suas intervenções espelham essa capacidade de diálogo e de ter curiosidade sobre aquilo que se passa. A conversa versou 2017 e um ponto nodal: as relações Trump e Putin e as suas consequências para a Europa.

No livro que escreveu, “A Administração Hillary”, nunca colocou a hipótese de Donald Trump ganhar?

Tomámos partido por um lado, mas o conteúdo do livro não se esgota na vitória e na derrota da Hillary Clinton. Há ali um conjunto de questões que perduram e que se colocam a qualquer presidente dos Estados Unidos da América.

O mundo está potencialmente mais perigoso em 2017 do que foi em 2016?

Sim, por várias razões. Primeiro porque há um conjunto de ciclos eleitorais com um grau de incerteza enorme. A começar na Holanda, passando pela França e a acabar na Alemanha, com a hipótese de Itália também pelo meio. São incertezas que adensam a sensação de instabilidade política e económica e que têm consequências a nível da estabilidade europeia. Depois há três ou quatro níveis que não estão relacionados com as eleições e que também adensam esta sensação de incerteza e insegurança. O primeiro deles é esta mudança provável do quadro das relações entre Washington e Moscovo que deixa a Europa isolada…

Mas essa aproximação entre Trump e Putin traduzir-se-á mesmo num entendimento real entre Rússia e EUA? Não haverá tendência, como aconteceu na evolução política entre a URSS e a Rússia, para que haja determinados interesses nacionais que são ditados para além das mudanças políticas?

É uma questão importante. Vou responder por partes. Essa situação em que a Europa se vê numa relação nova entre EUA e Rússia, e que a deixa mesmo desprotegida, cria incerteza política em vários Estados, aumenta a paranoia anti-Moscovo e aumenta a falta de coesão entre os Estados da UE. Esta coesão era dada pelo chapéu de segurança americano; à medida que ele vai caindo, isso causa erosão na confiança entre os Estados europeus. A outra é a forma abrupta e pouco sensata como as negociações entre Londres e Bruxelas se vão dar. E isso vai para além de 2017, e essa dimensão de atrito novo que resulta, pela primeira vez, da saída de um Estado-membro. É um cenário inovador para o qual ninguém tem um cenário B, nem Londres nem os outros países. Esse acordo vai criar, sobretudo no plano financeiro, uma maior incerteza e indefinição. E depois há o fator chinês: como é que a China olha para esta nova situação europeia de maior abandono, fruto da aproximação entre Washington e Moscovo.

Deixe-me recolocar a questão: afirma que a eleição de Trump significará mesmo aproximação entre EUA e Rússia, que essa situação deixa a Europa abandonada. Mas não há, para além do cenário europeu, outros sítios onde a dinâmica dos dois países com Trump poderá levar a uma rutura? A nova administração dos EUA apoia firmemente Israel e a sua política de colonatos e é firmemente contra o acordo com o Irão. Se Trump der sinal verde a Israel para ocupar os territórios palestinianos e bombardear o principal aliado de Moscovo na região, isso não vai indispor os russos? Trump escolheu como principal inimigo a China, o maior aliado económico da Rússia, que hoje é, sobretudo, uma potência militar com uma economia marginal. Isso não vai levar Putin a reconsiderar, mesmo que Washington aceite em troca a anexação da Crimeia?

Estas dúvidas e inquietações são legítimas. São dúvidas que se colocam à nova administração. É muito difícil perceber que haja um rationale com uma linha de coerência nas matérias de política internacional da administração proposta por este presidente. Isso aumenta a incerteza e agudiza a insegurança europeia. O meu ponto é este: aquilo que nós temos visto não é uma aproximação ideológica, é uma conjugação de interesses entre os círculos privados de Putin e Trump. Eles estão a fazer tudo para acautelar os seus interesses privados. O potencial de conflito de interesses entre exercício de cargos políticos e interesses privados, nesta administração Trump, é enorme. Nunca se viu uma coisa destas.

É o executivo dos multimilionários.

É isso e uma total falta de separação entre o que é o passado empresarial do presidente e o futuro político do milionário. Continua a não fazer qualquer tipo de separação. Quando digo que há uma simbiose entre os círculos de poder entre Washington e Moscovo, parto do princípio dessa primazia e conjugação dos interesses empresariais. E isso é gerador de atrito político nos EUA, a começar pelas audiências no Senado das nomeações de alto nível. Outra dimensão é a das políticas públicas: numas matérias vão colidir com o interesse russo e noutras não vão. O que me parece é que, com esta dinâmica de aproximação, a Ucrânia pode ser o primeiro dano colateral.

Com o reconhecimento da anexação da Crimeia?

Não creio que esse seja o primeiro passo, tenho quase a certeza de que o primeiro vai ser a tentativa de congelar as sanções económicas à Rússia que, aliás, tem aliados em alguns países europeus. Esta decisão vai causar atrito em muitas sensibilidades norte-americanas. O que quer dizer é que, qualquer que seja o grau de compromisso novo entre Washington e Moscovo, ele vai trazer danos colaterais na Europa, nos países bálticos e na Ucrânia, e no quadro interno dos EUA causa um enorme atrito com uma maioria republicana.