Fazendo festas no focinho da bola…

Havia um tempo em que as touradas eram desporto, ou qualquer coisa como isso. Tinham espaço nos jornais desportivos e nas páginas desportivas dos jornais. Não me custa admitir que para os toureiros o seja, embora tenha dificuldade em aceitá-lo em relação aos touros. 

Lembrei-me disto a propósito do Chibanga: Ricardo Chibanga! E, em seguida, veio-me à memória o Benje.

Não há aqui nenhuma confusão. Reparem: no tempo em que o Benje jogava, era tão comum existirem guarda-redes negros como toureiros negros. E o tempo do Benje e do Chibanga era o mesmo. Para os miúdos da minha infância, que agora correm no caminho dos avós, o Benje era uma figura. Pedro Benje Neto: nascido em Luanda no dia 21 de Agosto de 1942. O mesmo ano  em que nasceu Eusébio. Jogaram juntos no Benfica. Apenas uma época: 1964/65.

O Benje era elástico. Parecia feito de borracha. Tinha um estilo único, felino. Parecia um gato. Um gato negro. E dava azar aos adversários, pulando e agarrando bolas como ninguém.

Ora, para verem que as coisas até fazem mais sentido do que pareciam ao início, volto a falar do ano de 1942. Quem também nasceu nesse ano, mais precisamente no dia 8 de novembro, além do Eusébio e do Benje, foi outro negro tão magnífico como eles: Chibanga. Lembro-me de o ver certa vez rabiando um touro de 450 quilos à força de chicuelinas. Talvez fossem, como dizia Lorca, «las cinco en punto de la tarde», mas não sei.

O touro espumava pela boca num cansaço doloroso, a língua pendente, sangue escuro sobre o lombo  escuro. «Ay qué terribles cinco de la tarde! Eran las cinco en sombra de la tarde!». Os dois, impressionantemente negros, frente a frente. Fixando-se, percebendo-se, entendendo-se. «Las heridas quemaban como soles».

Em seguida, Ricardo Chibanga dirigiu-se ao touro com todo o respeito. Tinha a capa vermelha debaixo do braço. Dobrou um joelho até ao chão e fez uma festa no focinho húmido e vencido. Depois, o povo erguia-se numa totalidade admirativa, soltando olés e atirando chapéus. E Chibanga ficava ali na sua solenidade príncipe vestido de lantejoulas, brilhando como se estivesse coberto por milhares de minúsculos sóis coloridos. «Y el toro, sólo corazón arriba!».

Chibanga foi assim uma espécie de Eusébio das arenas, sol ou sombra. Como Benje era, também ele, o Eusébio das balizas, igualmente sol ou sombra quando os jogos de futebol tinham lugar às três em ponto da tarde. Eusébio Benje e Chibanga:  todos impecavelmente negros! 

Benje só jogou dois jogos oficiais pelo Benfica: ou melhor, nem isso. Defrontou o Seixal na 25.ª Jornada do campeonato dessa época acima registada, no Estádio da Luz, e acabou por sofrer três golos. Nada de especial – o Benfica foi campeão com 6 pontos de avanço e venceu o Seixal pela barbaridade de 11-3! E nem foram precisos Coluna e Eusébio, José Augusto, Torres e Simões. Ficaram todos de fora para que gente como Guerreiro, Domingos Fernandes, Neto, Arcanjo ou Serafim também pudessem ser campeões.

E Benje, claro!

Depois, na última jornada, Benje defrontou o Vitória de Guimarães, no velho Estádio Municipal de Guimarães, mas só pela metade. Isto é, saiu ao intervalo para entrar Melo. Mais um campeão. 

O Benfica tinha quatro guarda-redes: Costa Pereira, Nascimento, Melo e Benje. E Benje pouco jogava. Por isso, seguiu a sua vida. Felizmente para todos nós que, a partir daí, o pudemos ver fazer chicuelinas à bola afagando-lhe o focinho redondo de couro límpido.

Pedro Benje começou por ir para o Varzim. Na Póvoa  esteve cinco épocas com uma de intervalo para jogar na Sanjoanense. Dava nas vistas. Lá está! Era o estilo! Uma elegância negra no voo; um ar distinto de cavalheiro dos trópicos. Sempre correto, sempre profundamente educado.

Entretanto Chibanga  ia cansando touros com as suas chicuelinas perfeitas, um pouco por todo o mundo, também ele corretamente negro, ossos e flautas soando-lhe ao ouvido, às cinco horas da tarde que eram as horas em que Lorca mandava as pessoas quebrarem as janelas.

Recordei-me de Benje e de Chibanga ao mesmo tempo. O cromo do Benje era disputado pela meninada do meu tempo. Um cromo ímpar. Não havia outro guarda-redes negro. Tal como não havia outro Chibanga, embora tivesse vindo com ele, lá da Mafalala, Carlos Mabunga que se perdeu nas memórias de todos nós, um pouco ou por inteiro.

Farense, Leixões, Estrela de Portalegre e Portimonense: tantos clubes para Pedro Benje. Quando se erguia, na grande-área era sereno e luzidio, de uma escuridão intensa.

Toureiro da bola: e ela mansa, repousando nas suas mãos.