“Sabemos que o dinheiro para a saúde é insuficiente. São precisas opções sociais”

Henrique Luz Rodrigues, presidente do Infarmed há um ano, faz o balanço e fala dos desafios. Rede alargada de farmacovigilância reforçará monitorização dos tratamentos. 

Quais foram as grandes preocupações em 2016?

Agilizar o processo de avaliação de novos medicamentos. Com a Comissão de Avaliação de Medicamentos [ontem reforçada em mais 19 membros para 82 no total], foram dados passos nesse sentido.

Havia atrasos por razões financeiras?

Não falo pelo passado, mas hoje temos condições técnicas e vontade de aprovar, processo que exige primeiro a avaliação do valor terapêutico acrescentado pelos novos medicamentos e, depois, avaliação económica e a negociação com as farmacêuticas. Avaliámos mais de 50 medicamentos e aprovámos dez novos medicamentos para o cancro.

Qual é a parte mais difícil, perceber se o medicamento é uma mais-valia ou chegar a um preço justo?

Ambas são exigentes. O Estado português paga todos os medicamentos, o que exige uma grande negociação. 

Qual foi a proposta mais exorbitante?

Há medicamentos que custam mais de um milhão de euros por ano.

Para cancro?

Não, para doenças órfãs (raras).

O dilema resolve-se estabelecendo um valor por cada ano de vida ganho, como faz o NICE em Inglaterra?

Não me parece. Mesmo em Inglaterra, os valores são sempre indicativos. Quando se estabelece um patamar para pagamento, as firmas podem ir até esse patamar – inflacionam os preços. Daí Inglaterra estar a recuar nessa abordagem. Se disser que compra um carro se ele custar até 100 mil euros, é esse o preço que o vendedor vai propor, mesmo que, a outro, já tenha vendido por 50 mil euros. Precisamos de discussão a nível europeu e, nesse sentido, tivemos uma reunião de ministros em Portugal.

As autorizações de utilização especial (AUE), que permitem aos médicos prescrever medicamentos ainda em negociação, vão mesmo acabar?

Não. O que vai acabar são os atrasos no processo de avaliação, que geram a necessidade de recorrer a AUE. Queremos que sejam residuais. Em 2016, com 50 medicamentos avaliados, reduzimos as AUE em um terço.

No passado ouviam-se queixas de médicos e doentes que tinham esperar semanas por luz verde para iniciar esses tratamentos inovadores.

Isso nunca me aconteceu no meu hospital (Santa Maria) e o que tenho dito é que, perante dificuldades, qualquer colega nos pode ligar a expor a situação. 

Mas uma discussão recorrente era a desigualdade gerada: alguns hospitais avançam mais cedo com essas medicações, enquanto outros não as davam.

Isso é um disparate.

Não há desigualdade no acesso aos medicamentos? 

Eu não tenho conhecimento. São os médicos que prescrevem os medicamentos. E, depois, as comissões de farmácia e terapêutica não fazem uma triagem económica. E os conselhos de administração, se a fizerem, colocam-se numa posição muito difícil.

Mas o assunto tem sido várias vezes suscitado.

Falta prova. Também se diz que o Infarmed atrasa os processos, o que é falso. 

Se não geravam desigualdades, porque querem reduzir as AUE?

Por uma questão de racionalidade. Quando o hospital paga o medicamento antes de estar concluída a negociação, paga preços mais elevados.

Que outras novidades terá 2017?

Vamos reforçar a rede de farmacovigilância. Existiam quatro unidades regionais e a partir de 1 de janeiro passámos a ter oito. Precisamos de um melhor acompanhamento das reações adversas e dos modelos de utilização de medicamentos. Os medicamentos são lançados cada vez mais precocemente no mercado e temos, por isso, menos informação sobre eles e os efeitos secundários que podem causar. É o caso dos novos medicamentos para o cancro. Além disso, poderão promover estudos epidemiológicos para perceber a utilização, por exemplo nesta questão dos opioides. Queremos ter um papel mais ativo de auxílio aos médicos.

Vão também começar a analisar os resultados dos tratamentos.

Sim, vamos iniciar registos de patologias e terapêuticas. Há coisas que já estão em marcha, como o registo oncológico. O objetivo é perceber a incidência e se os tratamentos são eficazes ou não.

Qual sente ser o seu grande desafio?

Está tudo articulado. Temos também um novo site, em que queremos passar mais informação à população, ser complementares às pesquisas no Google.

Em relação ao SNS, está otimista? Ouvimos críticas de falta de financiamento, equipamentos obsoletos.

Acho que há muito para melhorarmos, mesmo na área do medicamento. Precisamos de ter uma formação médica menos dependente das farmacêuticas.

Há muita promiscuidade?

Promiscuidade, não digo. A indústria tem o seu papel, mas tem de haver outros players. Hoje temos uma plataforma de transparência onde são registados os apoios a médicos e associações. Antigamente era muito mais faustoso e agora é lunch box. 

Chegou a presenciar esses convites faustosos para congressos?

Era prática corrente ser tudo pago pela industria farmacêutica, ir para as Caraíbas, e penso que isso acabou.

Mas tendo sido médico num grande hospital, não vê as dificuldades de que falam colegas seus?

Vejo, mas isso terá de ser resolvido com tempo. Não basta querer mais orçamento. Sabemos que o dinheiro para a saúde é insuficiente quando comparamos com outros países. Precisamos de mais dinheiro. Onde se vai buscar, não sei. Deixamos de pôr dinheiro nos bancos? Vamos trabalhar mais? Se a economia crescer, teremos mais dinheiro… 

Como se sai deste impasse?

São opções sociais. Os partidos podem passar a fazer campanha por mais orçamento para a saúde, mas têm de dizer de onde vão tirar. E depois vamos ver quem ganha os votos. Acho que tem de ser assim. Isto não é um problema dos partidos, é um problema da sociedade. 

Ainda haverá muitas gorduras?

Pode haver melhoria da gestão.

E a fraude? Será significativa no setor?

É uma perceção, mas não creio. As receitas eletrónicas diminuíram o risco. Fazem falta boas práticas de gestão. Um sistema informático que abrangesse todos os hospitais e centros de saúde com registo de exames pouparia em meios de diagnóstico repetidos desnecessariamente. 

Não está pessimista, então.

Não estou. Acho que o que importa é eficiência, e estou cá para resolver problemas, não para me queixar. 

Sente o peso de lidar com uma área que movimenta 2 mil milhões de euros, a despesa pública com medicamentos?

Sinto. Claro que, quando somos médicos, temos o peso dos nossos doentes. Mas, aqui, qualquer decisão tem implicações para muitas pessoas.