Soares. A última campanha

As ruas encheram-se no percurso entre a Assembleia da República e o Cemitério dos Prazeres. E as palavras de Mário Soares voltaram a ouvir-se. Não faltaram sequer bandeiras e gritos de campanha

Como numa última campanha, Mário Soares percorreu Lisboa. E muitos populares saíram à rua. Do Mosteiro dos Jerónimos ao Cemitério dos Prazeres, foram muitos os que se juntaram para uma despedida durante a qual as palavras de Soares continuaram a ecoar.

“Viva a liberdade, viva o socialismo”, ouvia-se na voz já rouca de Soares no Largo do Rato, que saía pelos altifalantes montados na sede socialista. E as pessoas respondiam com gritos de “PS” e “Soares é fixe”. E aplausos. Muitos aplausos.

Foi assim sobretudo nas paragens junto à Assembleia da República e à sede socialista. Entre os Jerónimos e Belém foram poucos os que seguiram o cortejo, mas a rua encheu-se em frente ao parlamento e a moldura humana manteve-se até Campo de Ourique.

Homens e mulheres, novos e velhos, muitos com crianças de colo, algumas apenas com meses, saíram à rua para assistir ao cortejo fúnebre que levou os restos mortais de Soares à última morada.

Nas janelas dos prédios da Rua de São Bento não faltou até quem hasteasse bandeiras do PS. Mas a maioria levou apenas cravos vermelhos, símbolo da liberdade, e rosas amarelas, a flor favorita de Maria Barroso, para homenagear o político que foi o “Presidente de todos os portugueses”, mas que foi também aquele que nunca virou a cara à luta e nem sempre venceu.

Mário Soares costumava dizer que entre 1975 e 2006 não devia haver um português que não tivesse votado pelo menos uma vez nele, da mesma maneira que poucos não terão votado alguma vez contra. Soares não esperava unanimidade, porque sabia que ela era a antítese da democracia que defendia. Mas, ontem, Soares conseguiu unir o país em torno da sua figura e a presença dos populares que, nas ruas de Lisboa, o acompanharam até à sua última morada foi uma prova disso mesmo.

Entre os anónimos, alguns dos quais com lágrimas nos olhos, era impossível não reparar nos inúmeros políticos – sobretudo do PS –, mas também nas figuras da cultura e da sociedade que ontem acompanharam o percurso até aos Prazeres.

Nomes como a artista plástica Joana Vasconcelos, a cantora Teresa Salgueiro, o jornalista Vicente Jorge Silva, a atleta Rosa Mota, entre tantos outros, tornando-se impossível a todos nomear, que quiseram estar presentes na derradeira homenagem a Mário Soares.

Os gritos políticos, entusiasmados, quase ao jeito de uma campanha, que se foram ouvindo até ao cemitério deram, contudo, lugar a um silêncio respeitoso quando se chegou aos Prazeres.

Foi o momento em que quem esteve presente se apercebeu de que era aquele o fim do caminho. Junto ao jazigo, já quase só rodeado dos mais próximos de Soares, voltou a ouvir-se uma última vez a voz do fundador do PS.

O discurso que soou para encerrar a cerimónia durou um minuto e meio e foi montado a partir de excertos tirados dos tempos de antena da primeira campanha presidencial protagonizada por Mário Soares. As palavras remontam a 1986, o momento histórico em que Soares partiu para uma campanha com sondagens que lhe davam uma derrota certa e, contra todas as expectativas, conseguiu forçar uma segunda volta e vencer. Para quem nunca se deu por vencido, a escolha não poderia ter sido melhor.