Lojas de conveniência. “Fechar às 22h? Ainda vamos ter é de fechar de vez”

Estavam abertas quando já toda a Lisboa fechava portas e era, aliás, fora de horas que faziam grande parte do negócio. Agora, as lojas de conveniência têm de fechar às 22 horas. E quem precisa de compras tardias deixou de ter onde ir 

Apesar de não ser possível espreitar para o ecrã, sabemos que estamos a interromper uma partida de um jogo online. Ekraj levanta os olhos do ecrã e tenta parecer ocupado. “Desculpe, desculpe”, apressa-se a dizer, enquanto assume o posto por detrás do balcão da loja que há dois anos abriu na Calçada de Arroios. “Desculpe” é, aliás, uma das poucas palavras em português desta conversa. Assim que o tema foge dos itens que estão expostos nas bancadas do minimercado ouve-se logo um “in English, please”. 

É num inglês pouco percetível que este nepalês justifica os tempos mortos. “Só a partir das nove é que o negócio aumenta, até essa hora pouco vendo.”

O problema é que lojas de conveniência como esta, conhecidas por serem locais onde os lisboetas recorrem para compras fora de horas, têm agora pouca margem de manobra em termos de horários. Com a entrada em vigor das novas regras para os estabelecimentos de venda ao público, as horas de fecho passaram para as dez da noite quando, até aqui, podiam estar abertas até à meia-noite.

“Perco quase 50 euros por noite”, garante Ekraj, apontando para a prateleira atrás de si e que denuncia aquilo que tem mais saída. “Cerveja, vinho, tabaco”, enumera, “ah… e papel higiénico.” Com os supermercados das grandes cadeias a fechar entre as 21h e as 21h30, restam a este pequeno comércio 30 a 60 minutos para fazer o negócio que costumava durar até horas tardias. 

O novo regulamento, que entrou em vigor dia 8 de novembro, vem ao encontro do objetivo da Câmara de Lisboa de restringir a venda de álcool para a rua. 

Nas zonas mais problemáticas de consumo de álcool, como Cais do Sodré, Bica e Santos, a regra foi implementada em 2015. “Vinte e três de janeiro de 2015”, dispara Maninder, com precisão. Esta é uma data que sabe de cor, por ter sido o dia em que percebeu que o negócio que mantém aberto no Cais do Sodré não podia continuar nos mesmos moldes. “Despedi três empregados e diminuí a quantidade de coisas à venda”, explica. 

Agora, mais de metade da loja é ocupada com prateleiras de bebidas alcoólicas, até porque sempre foi esse o produto mais vendido. “Eram às 250 cervejas todas as noites. Agora, com sorte, vendo cinco durante um dia inteiro”, lamenta. 

Traduzido em números, o encerramento antecipado em algumas horas dá à “Loja de Conveniência Indiana” – nome que não deixa margem para dúvidas – perdas de quase 500 euros por dia. Maninder já tentou criar um regime de exceção junto da câmara, sem sucesso, mas não deixa de se comparar com o que encontra num raio de poucos metros. “O Pingo Doce da estação de comboios fecha às 23h, o Mercado da Ribeira à meia-noite, e eles também vendem álcool. Só eu é que não posso?”

Novas regras para todos Depois de um vaivém entre os pedidos dos moradores e as exigências dos comerciantes, a câmara decidiu dividir a cidade em duas partes. 

Naquela que é considerada a “zona B” – Doca Pesca, Avenidas Brasília e da Índia, Rua General Gomes Araújo, Cais da Pedra (Santa Apolónia) e o Passeio das Tágides – e independentemente da atividade de-senvolvida, os estabelecimentos e as esplanadas têm horário de funcionamento livre. 

No resto da cidade – considerada zona A -, os cafés, cervejarias e restaurantes poderão funcionar entre as 7h e as 2h todos os dias, enquanto os bares poderão estar de portas abertas entre as 12h e as 2h ou até às 3h às sextas-feiras, sábados e vésperas de feriado. 

Como, segundo a autarquia, não existem lojas de conveniência dentro da zona sem limite de horário, não há exceções, pelo menos para já. Isto porque a câmara se prepara para criar uma lista dos estabelecimentos que, pela zona onde se encontram, podem vir a ter um horário alargado. “Pedimos a todas as juntas de freguesia para enviar uma lista das lojas que faz sentido estarem abertas até mais tarde, para dar resposta à população”, explica ao i o vice-presidente da autarquia. Duarte Cordeiro acredita que essa lista estará pronta até fevereiro e que, até lá, o foco estará direcionado para as ações de sensibilização que a polícia municipal tem feito junto dos comerciantes. 

Apesar de a maioria já ter feito a troca de papéis que, à porta, indicam as horas de abertura e de fecho de cada estabelecimento, nas lojas que o i visitou, a informação chegou através dos contabilistas e não da câmara municipal. Há mesmo quem se recuse a mudar até que lhes seja comunicado pessoalmente por alguém responsável. “O meu patrão diz que só muda quando lhe vierem explicar porquê”, conta Rahman.

De facto, no número 62 da Almirante Reis, o papel A4 colado na porta continua a indicar as “24 horas” como limite de fecho. “E é bom que continue, senão não sei como é que isto se aguenta”, admite, apesar do entra-e-sai que lhe deixa pouco tempo para conversas. “Mas agora é só mercearia, pouca coisa”, explica. “À noite é que se vende o mais caro: o álcool.” 

E os que já cá estavam? Em Lisboa, não é preciso dar mais do que alguns passos para encontrar um minimercado. Segundo contas da câmara da capital que, apesar de não ter registo próprio, tem acesso aos dados da Agência para a Modernização Administrativa (AMA), em 2016 foram comunicadas a instalação e modificação de 382 estabelecimentos comerciais com o CAE 47112, que inclui lojas de proximidade, lojas de conveniência, mercearias, supermercados e hipermercados (estes dois últimos com área igual ou inferior a 400 m2). 

Apesar de agora não ter de sair da soleira da porta para ver pelo menos duas, Jorge Santos ainda se lembra de ser o único num raio de várias ruas. 

Perto da Praça do Chile, a Loja do Japão – “nome que até engana, que isto é bem português”, garante – está aberta desde 1919 e desde 1984 sob a sua gerência. “O que nos distingue?”, responde Jorge, em tom de pergunta. “É a qualidade, não haja dúvida.” Até porque, em termos de preços, não há como concorrer com a vizinhança. “Eu costumo ir ver o que se passa nas outras lojas, sabe? É claro que eles vendem mais barato, de tal maneira que já me obrigaram a baixar os preços também”, explica.

Jorge passeia-se pela loja e é quase de olhos fechados que vai dando indicações sobre a localização dos produtos. 

“Olhe que estes chegaram hoje”, avisa, apontando para os dióspiros de tamanho XL que ocupam a parte de cima da prateleira das frutas. “É essa a diferença, ‘tá a ver?” 

Aqui, as framboesas são de Palmela, as laranjas vêm de Silves e as cerejas, claro, do Fundão. Jorge sabe o nome dos clientes de cor e é de graça que faz entregas a quem já não consegue deslocar-se até à loja. “Disto não encontra nessas lojas”, garante, até porque tem como lema não vender só por vender. “Para isso vou ao Continente, onde sou só mais um cliente na fila para pagar.”

É também de peito feito que Maria Antonieta fala da confiança que criou com os clientes de uma vida. Há mais de 30 anos que está à frente de uma mercearia que, noutros tempos, chegou a ser única. “E ainda é”, garante, apesar da rápida retificação, “quer dizer, sou a única portuguesa.” Em Arroios, onde o Centro Comercial António Rodrigues – nome original e que nunca foi alterado – está aberto, é difícil passar por uma rua, beco ou escadinha que não tenha pelo menos uma loja de conveniência aberta. “Às vezes, até nos confundem e pensam que vendo tabaco e álcool como eles”, conta. 

Esses são erros de principiante que não acontecem a quem trata Antonieta como família. De molho de chaves na mão, começa a separá-las, uma a uma. “Esta é duma senhora que está no hospital, esta é de um casal que foi de férias e esta aqui é da vizinha daqui da frente, que foi passar as festas com os filhos e me pediu ‘Ó D. Antonieta, deite um olhinho à casa’. Eu vou, que não me importo nada.”

E quando as compras são já pesadas para um bairro envelhecido, Antonieta faz por esquecer os tempos em que o negócio obrigava a ter três funcionários só para as entregas e chama quem sabe que não se importa de ajudar. “Há sempre um rapaz a precisar de umas gorjetas e que me faz esses favores.”

Apesar de, agora, as vendas não serem suficientes sequer para pagar as despesas, Antonieta não culpa os colegas de negócio. “Não me venham cá fazer comparações. Eles nem português falam.”

Umas portas ao lado, quase que a responder aos desabafos de Antonieta, surge o pedido de Samjhama. “English please. Is better.” Aos 30 anos deixou a carreira de professora de História e veio com o marido, antigo contabilista, para Lisboa, abrir este minimercado que, em vez de laranjas de Silves ou bacalhau seco pronto a ser cortado ao gosto do cliente, apresenta um vasto leque de bebidas, tabaco e snacks. “É o que mais vendemos”, garante, apesar do esforço para “aportuguesarem” o stock. 

Numa miscelânea de cores, cheiros e até nacionalidades, é possível encontrar coisas tão exóticas para a gastronomia portuguesa como tapioca, caril ou garan masala ao lado de chocolates Regina ou pasta de dentes Couto.

Samjhama não sabe o nome dos clientes nem se a vizinha da frente prefere laranjas ou clementinas – até porque à barreira da língua se junta a inexperiência de apenas um ano à frente do negócio. Mas ao fim do dia vemos entrar uma pessoa na loja que nem precisa de dizer mais nada a não ser “boa tarde”. “É um Marlboro Light, não é?”, arrisca. A passagem da nota de cinco euros para as mãos de Samjhama é a prova de que acertou.