Eduardo Lourenço: Uma maneira de ser mundo

Mais de 40 anos depois de ter sido publicada, a obra capital do ensaísmo de Eduardo Lourenço tem uma reedição que, apesar de ser quatro vezes mais volumosa que a original, quase passou despercebida. 

A leitura de Tempo e Poesia torna evidente esta afirmação de Eduardo Lourenço: «A cultura não tem outra realidade que a do diálogo que os atores dela – os poetas em sentido largo – travam entre si». Transposta para o nosso contexto, esta afirmação projeta-se sobre aquilo a que assistimos há umas décadas: um fenómeno de redução e harmonização das línguas, limando tanto quanto possível as arestas que a cada uma pertencem, como limites de um fôlego intraduzível. Assim, os imperativos de uma organização global, orientada para a técnica e a eficiência, buscam um transcurso o menos acidentado possível dos sentidos, e hoje todas as línguas estão sujeitas como que a uma lei da gravidade face ao inglês, não o de Shakespeare, mas o de uso técnico.

O que faz a clarividência e alarga os horizontes de uma língua é precisamente esse fenómeno em que a língua raia a loucura num estado de vociferação, mas clarividente, visionário arriscando a indecibilidade. Não se contentando com o que já foi dito, aquilo que já cultivou na sua luz interior, uma língua  cria as condições para um efeito de polinização quando força os seus limites. Nesse sentido cabe aos poetas – e não exclusivamente aos que se dedicam a arrumar a sua sensibilidade em versos – esse grau de entendimento que empurra a língua para a invenção.

Responsável pela organização do monumental novo volume Tempo e Poesia – que surge muito aumentado face àquele que foi originalmente publicado há quatro décadas, no ano da revolução –  Carlos Mendes de Sousa lembra no seu ensaio de introdução a recorrente afirmação por parte de Eduardo Lourenço da sua «pertença à família dos poetas e a reiterada referência a essa repercussão nos seus modos de ler: ‘Faço de tudo uma espécie de leitura poética, de puzzle da ficção. Unamuno pensava que Hegel era um grande filósofo porque era um grande poeta. E Heidegger entendia que os filósofos são, a seu modo, poetas’» Além de citar a entrevista dada por Lourenço à Visão, em 2003, Mendes de Sousa remete ainda para o prefácio à 3.ª edição de Mudança, de Vergílio Ferreira, em que o ensaísta esclarece também que «os autênticos poetas de uma época não são sempre aqueles que visivelmente o parecem, mas todos cuja obra é fonte de energia e impulso anímico, como queria Dilthey. Vergílio Ferreira, Bessa-Luís são neste sentido puros poetas ao lado dos que não precisam ser mencionados».

No ano que passou, e no contexto da cultura portuguesa, a nova edição de Tempo e Poesia – que, como já foi referido, compila um número muito assinalável de textos novos que estavam  dispersos ou permaneciam inéditos – é a obra mais relevante no terreno do ensaio, e é curioso como, apesar da imensa notoriedade de Lourenço, este acontecimento não mereceu especial destaque.

Como já foi apontado pelo crítico António Guerreiro, esta é a obra capital no ensaísmo de Eduardo Lourenço, e Mendes de Sousa vinca a sua centralidade na obra do autor caracterizando-a como «uma espécie de autobiografia intelectual», citando as declarações que aquele fez numa entrevista ao Jornal de Letras, em 1986: «A minha maneira de falar de mim é falar através de Fernando Pessoa, ou de outro autor com quem eu tenha afinidade». Este livro torna-se, assim, um objecto de estudo essencial para que se possa apreciar «o exercício do pensamento de sopro largo» daquele que é tido como o mais destacado e influente ensaísta português.

 

Objeto de beatice cultural

Com 93 anos, pode dizer-se que, de há umas largas décadas a esta parte, Lourenço sofre os perniciosos efeitos do consenso alargado e de uma fórmula de reconhecimento e consagração que tantas vezes conduz a uma neutralização, em resultado de uma tendência para torná-lo sujeito da beatice cultural. O que há de mais urgente, perante este fenómeno, é descê-lo de novo à terra, onde o largo espectro das suas considerações, o modo como estabelece um cosmos literário no qual os poetas são olhados detidamente e, ao mesmo tempo, participam numa exponencial abertura dos sentidos, esse testemunho vivificador da língua é hoje ainda mais urgente num momento em que a crítica recuou ao ponto de, na imprensa, ter-se adequado à fluência do marketing, como mais um discurso produtor de slogans, que tivesse como meta o ser destacada na contracapa dos livros ou nas cintas que as editoras destacam na sua promoção.

No ensaio que abre o volume, Carlos Mendes de Sousa dá uma série de passos que vão muito além de um rastreio do percurso intelectual de Lourenço e de uma informação sobre o contexto em que foram surgindo os textos. Desenha um firme contorno em volta de uma figura cujo traço distintivo é o ter sabido ocupar aquela posição nuclear capaz de produzir uma convergência de forças numa língua e realizá-la de facto enquanto cultura.

 

Escritores pedem-lhe que escreva sobre eles

Um dos aspectos mais notados por Mendes de Sousa é o quanto Lourenço foi incitado por tantos poetas e escritores a que escrevesse sobre eles. Dos exemplos da sua correspondência com Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Miguel Torga, David Mourão-Ferreira e tantos tantos outros, sobressai essa dolorosa carência que ele veio suprir: a de um interlocutor capaz de falar a partir do destino da aventura poética. Chega quase a ser risível a insistência com que alguns escritores lhe pedem, quase lhe imploram que escreva sobre eles, sobre os seus livros, e depois de escrever e de os publicar em jornais, que os remeta ao futuro, reunindo-os em livro. Se não nos rimos é apenas porque neste tempo está bem claro quanto os poetas exercem o seu ofício numa clandestinidade atordoante. Não há um só poeta que, ao arriscar a expansão dos sentidos de uma língua, não arrisque também o exílio, o enxovalho dos loucos. O grande perigo nesta língua, repetia o editor Vitor Silva Tavares, é que apareça um Rimbaud e ninguém dê por ele. Lendo os textos de Eduardo Lourença, ficamos com a sensação de que pelo menos ele daria.

 

O que é a poesia?

Para concluir, detenhamo-nos  num dos vários textos fragmentários (ou inacabados) que surgem nesta nova reunião: «A poesia não tem a pré-evidência do sol, a quem nós não vemos senão porque por assim dizer ele nos vê a nós, pois é o sol que permite ver o sol. Ao contrário a poesia é não-natureza, é alguma coisa que literalmente falando não é precisa, não é necessária e todavia ela é na história do espírito humano ou na de um homem singular um sol interior tão inapagável como o sol da natureza, e como este nos deixa friorentos quando não se mostra, a ausência de poesia na vida humana a torna vazia.

«A poesia é na totalidade da nossa existência um sol fabricado mas a sua luz é a única que permite distinguir o que dura do que morre, o que é digno do homem e o que não o é. O que dura os poetas o fundam».

 

O trabalho moroso de Mendes de Sousa

A coordenação da nova edição de Tempo e Poesia, o terceiro volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço, ficou a cargo de Carlos Mendes de Sousa, professor universitário de Literatura. O coordenador descreve, em discurso direto, um trabalho moroso, entre a reunião e a ordenação dos textos:

«Tenho trabalhado em vários arquivos de escritores. Este caso foi muito diferente e muito gratificante pela oportunidade rara de trabalhar de perto com o próprio autor, num plano de Obras Completas. Houve um diálogo muito estimulante ao longo do tempo da preparação do volume. 

Neste diálogo queria destacar um ponto importante, ainda em relação a alguns inéditos. Alguns ensaios com relativa extensão por alguma razão tinham ficado incompletos. Foi fascinante ver Eduardo Lourenço (EL) a ler os textos e a completá-los, a fechá-los.

Uma das coisas mais impressionantes, após a leitura de todos os textos, foi a confirmação de uma intuição que me parecia ser uma evidência: a presença ofuscante de Pessoa e da obra pessoana nas leituras que EL faz da poesia portuguesa moderna e contemporânea. Por aproximação ou por afastamento, Pessoa comparece quase sempre quando EL lê os outros poetas.

EL, a partir do 25 de Abril, tornou-se um intelectual actuante e reconhecido no universo cultural português. Dentro da sua obra, talvez sejam as análises mitocríticas sobre Portugal, sobre a Europa, etc. que tenham mais impacto. Em meu entender, onde EL foi mais longe, onde é mais fulgurante, é justamente aqui, no seu ensaísmo literário e, em concreto, nos seus ensaios sobre poesia. Penso também nos essenciais textos sobre Fernando Pessoa (que reunidos conformarão um volume magnífico).

EL vem da filosofia, mas logo nesse início ele é diferente e logo aí estava profundamente ligado à literatura, à poesia. Os seus ensaios sobre poesia dificilmente se deixam arrumar em quaisquer categorias.

Muitas vezes refere que gostaria de ser romancista ou, mais do que tudo, poeta. E na verdade, quando se aproxima dos poetas para os ler, fá-lo de uma forma osmótica. Torna o seu texto o mais próximo possível dessa experiência do poético. Daí o fascínio que suscitam os seus ensaios aqui reunidos neste volume, procurando responder a uma questão colocada num dos textos breves aqui incluído, justamente intitulado Da poesia: ‘Neste momento, com a violência de novo no palco iluminado do mundo, para poder ser gozada ao vivo, que sentido tem ainda esse fazer obscuro, enigmático, ao mesmo tempo inútil e sublime, que nós continuamos a chamar poesia?’».