Jéssica Lopes. “As nossas leis fazem dos imigrantes fantasmas sem direitos”

Trabalha com paixão na defesa dos imigrantes. “Tenho a sorte de fazer uma coisa que gosto todos os dias e de sentir que o meu trabalho é importante”, diz a activista luxemburguesa que vive em Lisboa. Filha de pai português de Trás-os-Montes e de mãe italiana da Sicília, Jéssica Lopes tem 25 anos. Nasceu e…

Foi aprovada em 2009, creio, uma lei que permite legalizar os imigrantes que trabalham. Porque é que isso não acontece?

Não acontece porque a lei dá um poder discricionário ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Existe um mecanismo que permite às pessoas que trabalham e fazem os seus descontos manifestarem interesse de se legalizarem. Só que isso não é um processo ordinário, é um processo extraordinário. A polícia – no meu entender o SEF acaba por ser a polícia dos imigrantes – tem ali um poder extraordinário que lhes permite tratar todos os casos de uma forma diferente. Enquanto ativista da Solidariedade Imigrante vejo que temos casos idênticos com resultados completamente diferentes dependendo de quem foi o inspector, qual SEF é que tratou o caso. Acho que isso é muito perigoso quando existe por parte de um serviço um poder tão grande sobre a vida dos imigrantes.

Dada essa discricionariedade esse processo pode-se tornar potencialmente corrupto?

Completamente. Como cabe ao inspetor que tem o processo na mão de decidir se sim ou não se vai admitir essa manifestação de interesse de legalizar daquele imigrante. Depende apenas da decisão do inspector a sua legalização. Muitas vezes as pessoas quando vêm à associação estão nervosas, mostram-nos o processo e perguntam-nos: “acha que vai dar?”. Eu muitas vezes olho para o processo e vejo que estas pessoas têm todas as condições de serem legalizadas a partir do artigo 88, alínea 2. Mas eu não sei se o inspetor vai julgar da mesma forma. O sistema é injusto porque não define cabalmente quais são as regras. Aquilo apenas garante que a pessoa pode manifestar interesse, deixa essa decisão nas mãos de um inspector.

A cor da pele conta nos processos de legalização. Há racismo?

A conta bancária conta mais que a cor da pele. O estatuto social e a profissão contam mais do que ser negro ou branco. Os mais discriminados são sempre os pobres, os trabalhadores, os agricultores, as domésticas. Estes são os mais vulneráveis. Têm mais dificuldades em entender e defender os seus direitos.

Esta nova maioria governamental e este governo melhoraram a situação dos imigrantes e regularizar a situação dos que não têm papéis?

Não. A situação complica-se cada vez mais. Há diferentes leituras da legislação sobre os imigrantes. Um exemplo concreto: a lei diz que os filhos dos imigrantes que estão na escola podem-se legalizar. Agora a leitura das escolas mudaram. Antigamente uma família que tinha uma criança na creche podia legalizar-se. Agora estão a dizer às pessoas que a criança tem de ter três anos e ir para o ensino pré-escolar. A creche já não é considerada escola. De um momento para o outro, a leitura da lei mudou e estão a obrigar as crianças e pais a ficarem ilegais durante três anos e a ficarem privados de direitos mais básicos.

Para além da questão da legalização há o problema do acesso à nacionalidade. A lei dificulta cada vez mais o acesso à nacionalidade dos filhos de imigrantes que nasceram em Portugal. Está de acordo?

Há todo um grupo de jovens que nasceram em Portugal que não só não têm acesso à nacionalidade – já há muito tempo que não existe a lei de Jus soli [direito de solo, o que permitia a quem nasceu num país ser nacional deste] – como também não têm acesso à residência, porque os seus pais não estão regulares. Estas leis fazem destas pessoas gente privada de cidadania, são uma espécie de fantasmas: existem mas não existem realmente do ponto de vista da lei. É muito difícil falar de integração e participação dos imigrantes, quando a estes são negados todos os direitos políticos e direitos de cidadania mais básicos.

E que podem fazer os imigrantes?

Muitos imigrantes têm-se mobilizado, como se viu na grande manifestação de novembro. As pessoas percebem que é preciso mobilizarem-se e conseguirem os seus direitos. Mas há um problema de fundo: há um grande contraste entre as cores das pessoas que se vêm nas ruas e as cores que se vêm nos partidos políticos e no parlamento. E isso limita o debate e a decisão em sede de parlamento.

Mas isso não vai piorar com a crise e os populismos? O Partido Trabalhista de Corbyn parece ter aceite o princípio que as condições sociais são primeiro para os britânicos.

Isto é o grande medo de todas as associações de imigrantes e das pessoas que defendem esta causa. Estamos a ver em toda a Europa uma tendência de separar os cidadãos nacionais das pessoas. Portugal precisa muito dos seus imigrantes. Antes de sermos um país de imigração somos um país de emigração. Temos muitos jovens em Portugal à procura de uma vida melhor fora de Portugal. Precisamos dos imigrantes. É um grande erro pensar que dar condições de integração e participação política aos imigrantes não é um interesse para todos os portugueses. Dar mais direitos, dar os direitos básicos, valoriza-os e melhora a nossa sociedade.

Há em Portugal muitas situações em que quase são escravizados os imigrantes.

Muitos trabalhadores agrícolas em Portugal são imigrantes e trabalham em condições miseráveis. Vivem em contentores. Trabalham muitas horas. Não folgam. Não têm quaisquer feriados. Laboram muito mais que oito horas por dia. Recebem o salário mínimo e sobre esse dinheiro é-lhes descontado o alojamento, em contentores onde vivem mais de seis pessoas, e a alimentação ficando com muito pouco dinheiro na mão. Muitas das vezes as empresas não fazem quaisquer descontos. As autoridades sabem da situação. Mas nem a inspeção do trabalho, nem a polícia, nem o SEF fazem nada. Recebem 200 euros por mês para trabalharem como escravos. É uma situação que toda a gente conhece, mas que toda a gente finge que não sabe que acontece.