Afonso Cruz de A a Z

São as letras todas do alfabeto para um breve dicionário que serve de horizonte a partir do qual se pode conhecer um pouco melhor um dos escritores portugueses que mais se impôs neste início de século

A      de Alentejo. Afonso Cruz (n. Figueira da Foz, 1971), um dos nomes mais conceituados da nova literatura portuguesa, trocou a avenida Almirante Reis, em Lisboa, por um monte alentejano, inscrito na reserva agrícola nacional. Aqui produz, além da cerveja que bebe, ficções para Portugal e para o mundo. E aqui cultiva uma horta e um estilo de uma singularidade inequívoca. O Cultivo de Flores de Plástico (Alfaguara, 2013), a sua primeira incursão no domínio do teatro, tem lugar em meio urbano, na desolação de uma paisagem onde sopra o vento do abandono.

B      de banda. Além de escritor e ilustrador – com variadíssimos trabalhos em volumes para crianças (de José Jorge Letria, António Manuel Couto Viana, Alice Vieira), em revistas e em publicidade –, é membro de uma banda de blues, The Soaked Lamb, para a qual compõe. E onde canta, toca guitarra, harmónica e banjo.

C      de cinema. Trabalhou em cinema de animação, área que entretanto cedeu o passo à escrita literária. Entre filmes e séries, tanto de publicidade como de autor, destaque-se a realização da curta-metragem Dois Diários e um Azulejo, que ganhou duas menções honrosas (Cinanima e Famafest), e «O Desalmado», episódio da série Histórias de Molero, uma adaptação do livro de Dinis Machado, O Que Diz Molero. No domínio da publicidade assinale-se a campanha Intermarché, no âmbito da qual realizou mais de duzentos filmes durante os anos de 2006 e 2007.

    de Deus. A Carne de Deus foi o seu livro de estreia (Bertrand, 2008). «Thriller satírico e psicadélico» que convoca organizações secretas, tem como subtítulo Aventuras de Conrado Fortes e Lola Benites, personagens de uma louca e estonteante galeria que logo fez sobressair o gosto da metáfora (no caso, a do segredo), a capacidade efabulativa e o poder da imaginação de Afonso Cruz, mas também o virtuosismo do seu humor. Atente-se, por ex., na união entre Rigaut e a mulher, «umas verdadeiras bodas alquímicas, um casamento entre o espírito e a matéria: ela com espírito de sacrifício e ele com matéria gorda».

E      de enciclopédia. Enciclopédia da Estória Universal, a mais “afonsina” das obras que produziu, recolhe ideias, histórias, mitos, pensamentos, definições, curiosidades, citações, parábolas de autores reais ou imaginários, atravessando diferentes tempos históricos e amalgamando realidade e ficção. O tom oscila entre a solenidade e a ironia. Em pequenas entradas, de A a Z, vai o autor expandindo um universo literário devedor do projecto de Borges. A Enciclopédia conta já três volumes.

F      de filosofia, a essência da sua escrita. E de Facebook, claro. Afonso Cruz tem página no Facebook. Entre o seu grupo de amigos não figuram as verdades construídas pela lógica social, os dogmas e as crenças – ignorados –nem os maniqueísmos. Os seus leitores mais constantes decerto não se surpreenderiam se o escritor, por absurdo cronológico, enviasse um pedido da amizade a Nicolau de Cusa.  

G   de guarda-chuvas, objecto que toda a gente perde e não mais encontra. Para Onde Vão os Guarda-Chuvas (Alfaguara, 2013) é o título do seu mais recente romance, a rodar justamente em torno da figura da perda – e da pacificação, em equilíbrio instável. Uma oração à tolerância e ao poder redentor da literatura.

Afonso Cruz vezes três ou três em um seria uma forma fácil de o definir: inicia com uma História de Natal para crianças que já não acreditam no Natal (25 páginas admiravelmente ilustradas), transita para um romance propriamente dito, e fecha com uma recolha de Fragmentos Persas, compilados por Teóphile Morel, nome familiar dos leitores da Enciclopédia

H      de humor. Muitas vezes faz-se acompanhar do sentido do trágico que dá grandeza ao Humano e pode instalar-se em espaços onde, à partida, não teria lugar assegurado. A paleta, que vai dos tons benévolos da ironia ao sarcasmo cruel, é variada e manifesta-se também na crónica que mensalmente assina no Jornal de Letras sob o título «Paralaxe».

Em Afonso Cruz, o humor parece não conhecer interdição, tudo podendo tornar-se objecto de (sor)riso: a vida e a morte, o belo e o feio, o grave e o fútil, o sagrado e o profano, o ignaro e o sábio: «Antigamente os sábios acreditavam que o seu pior inimigo estava dentro deles. Tinham razão, toda a razão, mas agora temos antibióticos. E nos casos mais complicados, cirurgias.»

I      de ideias, imaginação, invenção. A sua imaginação, habitualmente qualificada como exuberante, parece não conhecer limites. Afonso Cruz tem uma atracção irreprimível pelo território das ideias e todos os pretextos servem para evocar pensadores de outros séculos. Ora recorre à sabedoria que a Humanidade acumulou ao longo dos séculos, ora (re)cria, do aforismo à parábola. E o que não há Afonso Cruz inventa, dos dias que faltam ao mês de Fevereiro à ‘máquina de chilrear’.

J      de Jesus. Jesus Cristo Bebia Cerveja, um romance que transporta, com desenvoltura narrativa, Jerusalém para uma pequena aldeia do Alentejo, abordando questões tão sensíveis como a morte, a velhice, a religião ou a ciência. O título, não isento de provocação, bem podia servir de legenda lógica ao quadro irónico que no livro recria a Última Ceia.

K    de KoKoschka, pintor. A Boneca de KoKoschka (Quetzal, 2010) é outro romance muito apreciado. A boneca como metáfora é a chave da leitura.

L     de ludismo. Vários jogos têm lugar nos livros de Afonso Cruz, dos jogos semânticos, onde avulta todo o virtuosismo linguístico da sua escrita, ao jogo que vai estabelecendo com o conhecimento, tido como arrumação global e definitiva, e com a própria Literatura.

M     de morte. A morte, esse processo sempre em curso, percorre-lhe a escrita, seja a dos livros nas estantes, seja a morte humana.

«A dentadura dentro do copo de água mostra o trabalho da morte, como ele é contínuo e não algo que acontece de repente» ou «Não lhe adiantaram de nada as artes de Esculápio, as artes médicas, pois a morte foi um larápio mais célere: e desta vez, desta derradeira vez, não lhe foi dada opção. Não há melhor ladrão do que a morte.»

N      de Nicolau de Cusa (n. Cusa, actual Alemanha, 1401-1464). Filósofo e teólogo renascentista muito citado pelo autor. Dedicou a sua vida e a sua obra à compreensão do inefável. A Douta Ignorância é a sua principal obra, organizada em três livros.

O      de Obra. A que tem vindo a construir, com lucidez, consistência e coesão, tem já uma marca própria que resulta de elementos diversos que se fundem num todo inequivocamente pessoal. A tónica vai para um olhar incisivo sobre o mundo, uma acumulação de visões parciais que se sobrepõem numa escrita labiríntica, feita de ecos, reverberações, desdobramentos, perspectivas que se multiplicam.

P      de prémios, no plural e vindos dos mais diversos quadrantes. Em 2009, o tomo I da Enciclopédia da Estória Universal, foi galardoado com o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco. Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (2011, Caminho) receberam o Prémio Literário Maria Rosa Colaço e A Contradição Humana (Caminho) o Prémio Autores SPA/RTP. Em 2012, foi o autor português distinguido com o Prémio da União Europeia para a Literatura pelo livro A Boneca de Kokoschka. Jesus Cristo Bebia Cerveja foi considerado o Livro Português do Ano pela revista Time Out Lisboa e o Melhor Livro do Ano, segundo os leitores do jornal Público. O autor foi eleito, pelo jornal Expresso, como um dos 40 talentos que vão dar que falar no futuro.

Q     de quebrar: regras, limites, convenções, padrões de civilidade, modelos narrativos. «As leis são como as rotundas, são para contornar», lê-se logo no primeiro livro que publicou. Os livros de Afonso Cruz lavam olhos habituados e, por isso, podem colidir com algumas susceptibilidades, mais adeptas das belles lettres tradicionais.

R      de reflexão. Afonso Cruz é um escritor para ler de lápis na mão. São muitas as vezes em que hesitamos entre sublinhar, suspendendo a leitura, e avançar para a página seguinte, que nos espera ansiosamente. Os livros apelam à participação activa do leitor e à sua capacidade de fazer reverter o humor em prudente reflexão. 

S      de SPA. A Sociedade Portuguesa de Autores atribui-lhe, no passado dia de 8 de Maio, o Prémio SPA – AUTORES, pelo seu livro Para Onde Vão Os Guarda-Chuvas, na categoria de melhor livro de ficção narrativa.

T      de título. Há livros cujos títulos são pistas falsas, dando por vezes origem a erros de catalogação. E a equívocos. É o caso de O Livro do Ano (Alfaguara, 2013), um pequeno álbum poético ilustrado sobre o dia-a-dia de uma jovem; é destinado aos mais novos, mas susceptível de interessar leitores de todas as idades. Se este livro não deve ser procurado nos escaparates luminosos, entre os best sellers, também a Enciclopédia da Estória Universal não se encontra nas prateleiras da secção de História. Ou não deveria encontra-se.

U     de umbrellas, o m. q. guarda-chuvas.

V      de viagens. Afonso Cruz declara-se também um viajante do mundo. Prefere a viagem à asfixia e ao empalhado dos museus e já viajou por mais de 60 países, destacando, no mapa das suas preferências, o Brasil, a Síria, o Nepal, a Republica de Benim e a República do Gana. 

Xi !, quase ficava de fora o currículo escolar do autor. Afonso Cruz fez estudos na Escola António Arroio, em Lisboa, na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e no Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira.

Z      de zarpar. Um verbo que não se encontra no horizonte de Afonso Cruz.