Memórias sobre carris

Embora tenham perdido terreno nas últimas décadas, os comboios continuam a apaixonar nostálgicos em todo o mundo. Para melhor apreciar a viagem, o Centro Nacional de Cultura propõe um curso sobre a história dos caminhos-de-ferro e o património ferroviário em Portugal. O SOL conversou com Paula Azevedo e Jorge Custódio, os coordenadores.

Memórias sobre carris

Quem já apanhou o Sud Expresso para Paris sabe que tem de se trocar de comboio em Hendaye, na fronteira entre Espanha e França. É verdade, como dizem, que isso é por culpa de Napoleão?

Quando entrou na era dos caminhos-de-ferro, Portugal quis adotar a bitola europeia. Mas por razões da política espanhola tivemos de recuar para a bitola ibérica, que curiosamente é a mesma da Rússia, no extremo oposto da Europa. Fundamentalmente foram razões ligadas com a guerra.

Temia-se uma invasão?

Sim. Os russos, de resto, tinham tido aquele período que é retratado no Guerra e Paz. Vou dar um exemplo:na Europa hitleriana é muito fácil levar os comboios da morte por toda a parte, porque todas as linhas são iguais. Era só pôr aquilo a funcionar. No nosso caso, até estávamos a investir na construção de caminhos-de-ferro com a bitola europeia quando veio a proibição dos espanhóis que obrigou a retirar as linhas que já tinham sido montadas e a montar de acordo com a nova bitola.

Isso passa-se em que época?

Nos anos 50 do século XIX. A Europa acabou por aceitar o princípio de uma bitola transversal, mas é preciso dizer que, quando os ingleses começaram os caminhos-de-ferro, havia uma grande variedade de bitolas.

Mesmo dentro de Inglaterra?

Mesmo em Inglaterra. Uma linha de caminho-de-ferro, entre um ponto e outro, pode servir para resolver um problema concreto: a carga de carvão, o transporte de mercadorias ou o transporte de passageiros numa certa zona.

Uma linha pode funcionar de forma independente, é isso?

Exato. Agora, quando se fala em redes, aí já é preciso políticas, princípios e critérios comuns. Os ingleses foram pródigos em bitolas. E chegaram até algumas bitolas inglesas a Portugal. Por exemplo, a linha de caminho-de-ferro mineira de São Domingos até ao Pomarão era uma bitola escocesa.

E as máquinas, também eram escocesas?

Tinham de ser importadas com as mesmas características.

Quais foram as primeiras linhas que tivemos em Portugal?

A primeira é a Linha do Leste, que se vai desenvolver com o objetivo de se tornar uma linha internacional, e que bifurca no Entroncamento para definir a Linha do Norte e a Linha do Leste. Entretanto, por falta de uma ponte ferroviária em Lisboa, desenvolve-se também a Linha do Sul, numa primeira fase entre o Barreiro e o Algarve.

Em que contexto se dá a introdução dos caminhos-de-ferro em Portugal?

Perceber os caminhos-de-ferro em Portugal passa por admitir que já não é possível viver sem eles. Os caminhos-de-ferro instalaram-se na Europa nos anos 30 e 40 do século XIX. Do ponto de vista tecnológico eram as coisas mais avançadas e podiam ser muito rentáveis. O fenómeno tem de ser compreendido à luz da industrialização. Trazem uma ideia nova dentro de si, que tem a ver com a libertação de uma série de coisas a que as pessoas estavam sujeitas – não se poderem movimentar, não poderem emigrar. Isso é uma revolução social única. Havia massas de pessoas que deixaram de trabalhar nos campos. Tinham de sair para as cidades. E nas cidades tinham de se movimentar para o trabalho. Os caminhos-de-ferro foram a essência da industrialização na fase a que chamamos paleotécnica.

Quando falamos, como neste curso, de património ferroviário, referimo-nos a quê? Linhas, estações e carruagens?

Falamos de infraestruturas, superstruturas e material circulante, que é a expressão que nós usamos. 

As infraestruturas são as linhas?

Os franceses têm um conceito mais evoluído. Eles chamam infraestruturas a tudo o que é usado para criar condições para circular. Na realidade é a plataforma, o que implica pontes, túneis e aquilo a que chamamos terraplanagens, até porque naquela altura a tração era a vapor…

… e não podia haver subidas muito íngremes. E as superstruturas?

As superstruturas dizem respeito a tudo o que é necessário para garantir o funcionamento da linha em movimento, depois do assentamento da linha. Como as estações. Não só os edifícios, mas todas as outras componentes. No passado tínhamos os depósitos de água, as placas giratórias, as grandes cocheiras onde se fazia a manutenção dos comboios.

E finalmente aquilo a que chamam material circulante, que suponho que sejam as locomotivas e carruagens.

O material circulante é interessantíssimo porque marca as tendências da evolução tecnológica, da industrialização até à atualidade. Muita gente gosta dos caminhos-de-ferro por causa do material circulante, mais do que pelas infraestruturas, embora estas também tenham de ser valorizadas.

Temos muitas relíquias dos primórdios dos caminhos-de-ferro em Portugal?

Devíamos ter mais, mas temos algumas. Conhece o comboio real? O comboio real está no Museu do Entroncamento, é composto por duas carruagens e um furgão, e uma locomotiva, de 1860. No fundo, é um palácio real em movimento. Mas, para ser rigoroso, cada companhia tinha um comboio real.

Havia vários comboios reais?

Sim. Este comboio real era um que estaria na Linha do Sul e Sueste. Todavia também esteve presente em grandes eventos, como a inauguração da Ponte D. Maria, no Porto. A Dona Maria Pia escolheu a decoração de uma carruagem e depois os reis ofereceram outra carruagem ao filho, o príncipe D. Carlos. Era um comboio para a representação do Estado. 

Com todo o conforto que os reis exigiam…

Assim como o comboio presidencial – 120 metros de comboio! –, que na realidade era o comboio real da CP, que foi transformado em comboio presidencial porque entretanto acabou a monarquia. O património ferroviário numa primeira fase preservava aspetos isolados. A partir dos últimos anos começou-se a pensar salvaguardar também comboios. Verdadeiramente se se puder salvar mais algum comboio é o comboio-foguete, o primeiro comboio rápido Lisboa-Porto. É uma peça fabulosa, importada de Itália, mas ainda não está restaurado.

Fabulosa do ponto de vista técnico, histórico, de concepção?

Da construção. Já é aerodinâmico. Os comboios a vapor não são aerodinâmicos, são funcionais. Os comboios aerodinâmicos foram feitos para facilitar a velocidade, para que o vento se adequasse aos diversos elementos do comboio. Há aqui uma influência da construção na aviação sobre os outros meios de transporte.

A história dos caminhos-de-ferro em Portugal está bem estudada?

Está muito bem estudada em algumas linhas, mas muito pouco estudada noutras. O que está bem estudado é a Linha do Norte e a Linha do Este. Há muitos estudos, teses de mestrado e de doutoramento. 

E em termos de salvaguarda do património, como estamos?

Quando se dão os centenários das linhas, sente-se a necessidade de preservar ou salvaguardar aquilo que foi a memória dessa linha – e isso fica a cargo das empresas. Mas as empresas não têm essa vocação museológica. Em Portugal, quando se começou a preservar algumas coisas dos caminhos-de-ferro, muitas vezes deixava-se a locomotiva ou a carruagem na linha e metia-se lá a palavra ‘Museu’. E depois deixavam degradar. Outras vezes transformou-se uma locomotiva importante num monumento. Pôs-se numa praça pública, mas não se cobriu. 

Ficou a oxidar…

Enferrujou e ficou sujeita ao vandalismo. As locomotivas históricas não se podem pôr numa rotunda ou num pedestal. Ou melhor, podem, mas têm de ser cobertas e tratadas, têm de ter uma casinha para a proteger. 

Perdeu-se muito património assim?

Perdeu. E não se perdeu mais porque as pessoas cuidaram dele nas suas terras. A locomotiva do porto de Leixões, por exemplo, está preservadíssima porque ficou protegida por uma casinha.

Os caminhos-de-ferro têm perdido protagonismo para outros meios de transporte. Estão condenados?

Os caminhos-de-ferro não têm o futuro ameaçado. O que acontece é que hoje estamos a viver numa sociedade pós-industrial, e essa sociedade pós-industrial chegou também aos transportes. Os ferroviários tinham alguns problemas de origem, como alguma estaticidade, ou seja, é sempre de um ponto para outro. Mas também têm vantagens, pois passaram a ser elétricos e mais ambientais. Por outro lado, facilmente resolvem os problemas peri ou híper-urbanos. Hoje em dia quantos milhares de pessoas chegam todos os dias à estação do Rossio? Os comboios históricos de longo curso perderam algum do seu elã, até porque agora há aviões. Mas podem servir o turismo, tal e qual como um museu. É um outro conceito de ócio e de prazer.

O curso ‘Caminho-de-ferro e Património Ferroviário’ começa a 26 de abril e é composto por nove sessões teóricas (terças-feiras das 18h30 às 20h) e uma visita ao Museu do Entroncamento. Mais informações em www.cnc.pt