Alegria no amor e mesmo na separação

A expectativa era muita. Afinal, um documento que demorou dois anos a ser pensado e que poderia trazer novidades sacramentais para os católicos divorciados tem o duplo dom (criado não só pela espera como pelo conteúdo) de aguçar o interesse, neste caso do mundo católico.

Mas a Exortação Apostólica Pós-Sinodal ‘Amoris Laetitia’ (‘Alegria no Amor’) trouxe notícias amenas: sendo batizados, os divorciados podem – e devem – ser integrados na Igreja Católica, o que inclui participar de forma ativa nas celebrações, como fazer parte do coro, dar catequese ou confessar-se. Só não podem comungar. E tudo por causa da ausência de um verbo no capítulo VIII da Exortação, sobre ruturas conjugais. “O texto é tão importante pelo que diz como pelo o que não diz”, salientou o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, logo nas primeiras reações. E o que foi omitido, neste caso, foi a palavra “sacramental”.

O papa Francisco confessou aos jornalistas, há duas semanas, ter ficado “triste” e até “aborrecido” com a atenção dada pela comunicação social à questão dos católicos divorciados: “Os media não se apercebem que este não é o problema importante, que a família está em crise em todo o mundo e a família é a base da sociedade; que os jovens não se querem casar; que há uma queda da taxa de natalidade na Europa que dá vontade de chorar; que falta trabalho; que as crianças crescem sozinhas…”.

Estes temas, apesar de não terem estado no centro das notícias, não foram postos de parte no documento conhecido a 8 de abril. Pelo contrário, as considerações do Papa, discorridas ao longo de 300 parágrafos e nove capítulos, abordam todas as vertentes da vida familiar de um católico.

A família como primeira vinculação à sociedade é o tema de fundo da Exortação. “Na tradição bíblica, a família tem uma função específica. A ‘Alegria no Amor’ é um apelo aos homens da Igreja para que consigam fazer corresponder essa imagem. O ideal da família é central para a Igreja Católica, a família é a escola do que a sociedade deve ser”, justificou o Patriarca de Lisboa.

E uma das preocupações lançadas pelo Papa prende-se, exatamente, com este ideal de família. “Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falhanços é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e assim evitar as ruturas”, escreveu Francisco.

O Papa pede, por isso, aos católicos que sintam responsabilidade acrescida ao escolherem o matrimónio e apela às comunidades cristãs que haja maior preparação antes do casamento. O problema é que não diz como fazê-lo: “Isto significa que a interpretação do documento vai ser diferente, de paróquia para paróquia e até de continente para continente. É uma responsabilidade acrescida”, considera D. Manuel Clemente.

Enquanto não se organizam estratégias para proporcionar esse apoio extra  – e mesmo quando a rede estiver montada -, as separações continuarão a acontecer.  Mas o que sentiram os católicos divorciados sobre a ‘privação’ sacramental a que continuarão sujeitos? O que pensa o Patriarcado sobre a aplicação desta mensagem?

‘Não pode haver uma regra geral’

Para D. Manuel Clemente, a ‘Alegria no Amor’  é clara relativamente à questão dos católicos divorciados ou recasados: não podem voltar a comungar.  Apesar disso, o Cardeal-Patriarca diz que  o texto traz uma abordagem de proximidade e de integração – afinal, nem só o Presidente da República faz apanágio dos afetos.

 “A vida sacramental pode ser interrompida, mas isso não significa que a pessoa fique de fora da Igreja”, considera D. Manuel Clemente.  “A vida de um católico, que começa com o batismo, às vezes tem ruturas. Umas  são permanentes. No entanto, para quem é batizado, a Igreja continuará a ser a sua casa”.

Francisco não traça regras sobre este acompanhamento e esta integração porque cada caso é um caso. “O Papa quer que tenhamos um olhar de discernimento  para perceber que não somos todos iguais”.  D. Manuel Clemente avança, porém, com alguns exemplos deste  acolhimento: “Podem ser integradas no campo litúrgico, institucional, pastoral e educativo”.

Sobre o facto de o texto ser ambíguo nalgumas questões, nomeadamente quanto à forma como a preparação para o matrimónio pode ser reforçada pelos padres, D. Manuel Clemente reconhece que agradar a todos ou traçar regras rígidas é difícil: “A Igreja é uma grande barca com muita gente. Ser o timoneiro é difícil”.

Em novembro, realizar-se-á o Sínodo de Lisboa, que terá “a família como critério e a misericórdia como alma”. Nessa altura, esperam-se novidades mais completas para as paróquias portuguesas.

Já o Papa Francisco não dá pormenores sobre o futuro. Confrontado com o facto de ‘A Alegria no Amor’ não colocar um ponto final na questão dos católicos divorciados, por abrir outras possibilidades,  deu  uma resposta enigmática: “Poderia dizer que sim, ponto final. Mas seria uma resposta demasiado curta”.

‘Na dúvida, não casem’

Para Mafalda Mendonça, 38 anos, gestora, católica e divorciada, a mensagem da Exortação não é, no entanto, demasiado curta. É o que deveria ser. Assim como tem sido o seu caminho.

No início deste ano, Mafalda viu chegar a anulação do matrimónio. O processo deu entrada no Patriarcado em setembro de 2014 e, em  janeiro de 2016, soube que o seu matrimónio tinha sido dissolvido. “O processo, para mim, começou muito antes. Isto era algo que eu já vinha a digerir desde a altura do divórcio, em 2005. Passados dois anos, comecei a  procurar o que fazer. O que mais demorou e mais me custou foi relatar episódios difíceis do passado”.

Foi ainda antes de ter encontrado um novo amor que Mafalda  pediu a nulidade: “Era importante pedir a nulidade para resolver a minha vida como filha de Deus”.  Curiosamente, sente que foi após o divórcio que se aproximou verdadeiramente da Igreja, estando integrada na paróquia de Camarate. “Nunca me senti excluída. Sinto que não só me aproximei da Igreja, como eles se aproximaram de mim”, revela. Mas admite que não se sentia completa, muito embora lidasse com a falta do sacramento de forma natural. “O não poder comungar é algo que me deixa profundamente triste, mas ao mesmo tempo sempre  procurei aceitar essa situação, não me revoltar e entregar o meu sofrimento a Deus. Porque a verdade é uma: nos anos em que pude comungar, pouca importância dei a esse ato. Na altura, não era nada mais além de um ritual”.

Para Mafalda, a importância do ato só lhe foi revelada na sua verdadeira dimensão quando se viu impossibilitada de o fazer pelo seu divórcio, apesar de ter sido sempre católica praticante. No entanto, sente que a mensagem da Exortação deve ser aceite sem revoltas.  “O não poder comungar é porque não estamos em comunhão com Deus, porque houve um sacramento   [o casamento] que rejeitámos”.

Depois de um longo caminho e de muitas horas de reflexão sobre o matrimónio, Mafalda deixa um conselho aos católicos: “Na dúvida, não casar. Nunca”.

Para esta gestora, o ‘jejum’ está prestes a terminar, pois vai casar a 4 de junho. E com o futuro marido, garante, vai reencontrar-se com Deus. O Deus que, como diz com uma alegria na voz, não só não a afastou, como lhe abriu as portas numa altura difícil da sua vida.