Passos Coelho: ‘O Governo está a fazer tudo exatamente ao contrário’

A entrevista tem lugar na sede do PSD, na Rua de S. Caetano à Lapa, numa sala de aspecto clássico, com gravuras antigas nas paredes. Passos Coelho chega com meia hora de atraso, vindo do Parlamento, onde participou na discussão do Plano de Estabilidade. Está vestido de acordo com a sala: fato azul-escuro, gravata vermelha…

Passos Coelho: ‘O Governo está a fazer tudo exatamente ao contrário’

Criou-se a ideia de que o PSD está desejoso de que haja eleições. É assim? O tempo joga a favor ou contra o PSD?

Concordo com o Presidente quando diz que o país não pode viver permanentemente em campanha eleitoral e a fazer eleições a cada ano que passa. Tivemos eleições em 2015, PSD e CDS ganharam-nas mas não tiveram apoio para criar um Governo estável. O PS comprometeu-se em encontrar um Governo, fez um acordo com a extrema-esquerda, disse que estava a fazer uma espécie de queda do Muro de Berlim aqui no país, trazendo para a área da governabilidade partidos que criticavam todas as políticas por saberem que não tinham a responsabilidade de resolver os problemas, governando. E agora essa solução tem de provar. Para que haja um princípio, um meio e um fim que permita fazer a responsabilização política das opções que são tomadas. Esta solução de Governo tem a obrigação, pelo menos, de aprovar os Orçamentos que aí vêm, porque um Governo que não tem Orçamento não é Governo. É isto que eu espero.

Espera e acredita?

Não é uma questão de fé, é uma questão de responsabilidade. Eles têm essa obrigação, têm essa responsabilidade. Podem falhar, mas têm essa obrigação. Esta maioria nunca tinha funcionado em Portugal, mas tem revelado mais consistência do que aquilo que se esperava. Surgiu como uma maioria negativa, para impedir que o Governo pudesse governar, mas tem-se vindo a afirmar como uma maioria positiva.  O Governo lá vai fazendo aquilo que é preciso. Podemos discordar do que está a ser feito – e eu discordo – mas o Governo tem vindo a ter o apoio de que necessita da sua maioria para governar.

Penso que o resultado desta política vai ser negativo, mas só há uma maneira de saber se estamos certos ou errados: esperar para ver. Não se demite ninguém com base na suspeita de que a sua política vai produzir maus resultados. Julgo que esta política não pode produzir bons resultados. Mas todo o Governo merece o benefício da dúvida e deve provar se é capaz ou não de governar.

Esta semana foram conhecidos os dados da execução orçamental do primeiro trimestre. Como vê esses números?

Esses resultados respeitam a um período muito específico, em que não havia ainda o OE aprovado para 2016. Estivemos a viver em regime de duodécimos. O que significa que o défice foi razoavelmente contido por um Orçamento restritivo que estava em vigor. Muita da despesa do Estado foi empurrada com a barriga, porque não havia o dinheiro suficiente que permitisse a despesa. À medida que o tempo for passando, e que executarmos o novo Orçamento, esses limites irão ser alargados. Se outras medidas não forem adotadas, vamos ter um desequilíbrio orçamental certo.

Está mesmo convencido de que as contas vão falhar…

Eu gostaria muito que as contas batessem certo. Podemos defender uma economia mais pública ou menos pública, podemos defender mais impostos para ser o Estado a prestar serviços ou menos impostos e deixar isso à escolha das pessoas. O que não podemos é persistentemente fazer mal as contas e produzir défices e dívidas muito elevados, porque isso causa muita perturbação económica, causa mais dia menos dia muito desemprego, muita dor social e muitos impostos. Espero que, independentemente de o Governo ser mais à esquerda ou menos à esquerda, ser mais ou menos a favor das soluções europeias, as continhas batam certo. Mas parece-me que isso não vai acontecer. As contas que nos têm sido apresentadas são contas ficcionadas. Não sou eu que o digo. Isto hoje é concluído com facilidade pelos dados já observados na economia.

Acha que a conjuntura é hoje melhor do que quando esteve no Governo?

Sinceramente acho que sim. Com exceção do que se está a passar em Angola, que nos afeta negativamente, porque exportamos muito para Angola, porque temos muitas empresas a funcionar em Angola, temos muitos portugueses a trabalhar em Angola. Mas, com esta exceção, há hoje uma constelação de condições muito favoráveis que não vão durar sempre. Petróleo barato, o BCE a anestesiar os mercados financeiros (e portanto a permitir que as taxas de juro sejam excecionalmente favoráveis e baixas), uma situação do lado da Comissão Europeia que conduziu à aprovação do chamado Plano Juncker, que prevê recursos muito significativos para a  realização de investimentos que países como Portugal teriam dificuldade em fazer. E ainda o euro mais barato do que era há uns anos atrás, com a possibilidade de exportarmos para fora da Europa em condições mais competitivas. Temos aqui um conjunto de condições muito especiais que estamos a desaproveitar totalmente. A previsão que o Governo apresenta é relativamente medíocre para o período de melhores condições a que podemos aspirar. Isso significa que estamos a fazer exatamente o contrário do que devíamos. Devíamos estar a aproveitar as taxas de juro excecionalmente baixas para substituir dívida mais cara por dívida mais barata; devíamos estar a dar confiança aos mercados a investirem em Portugal enquanto a fragmentação financeira é mais baixa; e devíamos a estar a mostrar que os sacrifícios que fizemos nos últimos anos não foram um acaso, porque tivemos cá uma espécie de polícias a obrigar-nos a fazer aquilo que era preciso. Em suma, deveríamos completar as reformas que permitiriam ao país baixar a dívida, sair da pressão financeira externa, e aproveitar as circunstâncias económicas mais favoráveis para atrair o excesso de poupança que existe lá fora.

Como estamos a fazer o contrário disto tudo, quando passar este período excecional o país terá desaproveitado estas condições e vai voltar ao início do ciclo: ‘Oh mãe, oh mãe, quem é que nos ajuda, agora que o mundo está outra vez mais difícil?’. É este erro de perceção sobre o que é urgente, estrutural e importante para o país que não é perdoável neste Governo. Quando, a seguir às eleições, convidei o Dr. António Costa para ser vice-primeiro-ministro e o PS para integrar o Governo juntamente com o PSD e o CDS, não era para fazer um grande bloco central que não fizesse nada no país. Era justamente para aproveitarmos estas condições excecionais que não são facilmente repetíveis para tirarmos o país da zona de perigo. E depois, daqui a quatro anos, cada um seguiria o seu caminho e escolheria os seus modelos de desenvolvimento.

Mas deitámos isso tudo pela janela fora. E este Governo maximiza todos estes riscos em vez de os minimizar, e vai por um caminho diferente. É isso que eu acho imperdoável.

Se este Governo desaproveitar, como diz, os bons ventos que vêm de fora, como será o seu eventual regresso ao poder? Vai voltar à austeridade? E vai fazer uma campanha eleitoral prometendo mais austeridade?

É uma dificuldade política grande. Primeiro porque infelizmente essa perspetiva pode ser plausível. Não se conclua que estamos condenados a ter um novo  resgate. Consideraria até criminoso que isso acontecesse. Há hoje dispositivos entre as agências de rating, a Comissão Europeia, as instituições independentes que se pronunciam sobre essas matérias, que fazem os alertas suficientes para que o Governo evite um resultado desses…

Alguns alertas já foram feitos…

Já. E portanto espero que o Governo esteja atento e não empurre sempre com a barriga. Julgo que, quando chegarmos ao OE para 2017, o Governo corrigirá esta trajetória. E de uma forma mais violenta do que aconteceria se já tivesse admitido a realidade. Mas, enfim, são estilos de governar que projetam maus resultados no médio e longo prazo, embora no curto prazo possam valer menos complicações no seio da maioria e um bocadinho mais de popularidade junto dos cidadãos…

Mas voltando à hipótese de eleições…

Se o PSD tiver que ir para eleições com um ambiente económico mais degradado do que está, não disputará essas eleições à maneira do PS, ou seja, a fazer de conta que os problemas não existem. Será isso muito penalizador para o resultado eleitoral? Não sei. Admito que sim. Apesar de tudo, a minha lição de vida mostra que uma parte muito importante dos votos que tivemos nas últimas eleições proveio de pessoas que pagaram um preço muito elevado pela crise que vivemos. E que foi atingida pelas medidas que o meu Governo adotou. Toda a gente sabe que a nossa proposta era reduzir as medidas de austeridade ao longo de quatro anos. Ora, que diremos de todos os funcionários públicos que, mesmo sabendo isso, votaram em nós? Houve de facto um voto assumidamente preocupado com o futuro do país. Muitas pessoas foram sensíveis à minha preocupação de que é preciso fazer sacrifícios hoje, se queremos ser mais ambiciosos amanhã. A mim não me compete procurar uma solução que agrade a toda a gente. Se essa for a minha preocupação, então não vale a pena candidatar-me a Governo nenhum. Porque os governos que estão demasiado preocupados com a sua base de apoio não fazem aquilo que é preciso. Para ganhar é preciso não ter medo de perder.

Diz mais uma vez ‘que se lixem as eleições’…

Mas essa não foi uma máxima para ser citada na altura por ficar bem. Isso corresponde à minha maneira de ver.

Como viu a polémica do Colégio Militar e a demissão do chefe do Estado-Maior do Exército?

Com alguma preocupação. Conheço bem o ex-chefe do Estado-Maior do Exército. É um chefe militar no verdadeiro sentido do termo. É um homem muito correto e acredito que o seu pedido de demissão não ocorreu levianamente. Traduziu seguramente um mal-estar grande na hierarquia das Forças Armadas, que só podia ser sanado com a demissão do próprio chefe. Terá escapado ao Governo que as Forças Armadas são hoje uma estrutura perfeitamente enraizada na sociedade democrática, mas não se regem por princípios de democracia. São estruturas fortemente hierarquizadas, em que a cadeia de comando tem de ser inatacável. Portanto, a desautorização de um chefe militar põe sempre em causa a sua cadeia hierárquica.

Mas acha que houve desautorização?

Ah, sim. Com certeza. Parece-me muito claro que o chefe militar não se sentiu apoiado pela tutela política. E achou que a única maneira de resolver o problema era reiniciar o processo. Ou seja, dar a possibilidade de um outro chefe o suceder e procurar encontrar um novo fio à meada com o poder político. A experiência que tenho mostra que a instituição militar é muito ciosa dos seus valores, da sua disciplina, da sua cadeia de comando, mas não põe em causa a subordinação à orientação do poder político. E eu tive inúmeras provas dessa compreensão.

E a demissão de João Soares. Como a viu?

Foi um episódio francamente infeliz. E não foi infelizmente um episódio isolado. Havia no ministro João Soares já um certo padrão de comportamento que deveria ter levado o primeiro-ministro a atuar mais cedo. Mas não foi um caso muito edificante e não queria perder muito tempo com ele.

Tem sido criticado por excesso de passividade, dizendo-se que faz uma oposição muito morna, pouco acutilante. Vai continuar assim até ao fim do mandato deste Governo?

Não gostaria de ser em circunstância nenhuma uma oposição estridente. Mas o PSD tem assumido plenamente o seu papel de partido da oposição. Tem criticado sem estridência, é verdade, mas de forma contundente, as opções que o Governo tem vindo a fazer.

Vai manter esse registo, portanto…

Sim, com certeza.

É que há quem diga que o senhor parece mais o primeiro-ministro e o primeiro-ministro parece mais o líder da oposição. Esse estilo não é uma tática?

Não, não é. A maneira como exerço o meu papel de líder do maior partido da oposição não é muito diferente daquilo que os portugueses puderam observar quando, em 2010, cheguei à presidência do PSD na oposição. Não me parece que o meu estilo se tenha alterado muito. Não encaro a liderança da oposição como uma espécie de teatro em que temos de dizer mal de tudo, inventar uns casos mediáticos pelo menos duas vezes por semana, para podermos ridicularizar o Governo, desqualificá-lo. Nunca vi a política assim. Acho que as pessoas não levam isso a sério, acho que os políticos que se preocupam excessivamente com o titulo do jornal do dia seguir, com a citação que aparece no telejornal ao fim do dia, se esgotam demasiado na espuma dos dias. As pessoas devem escolher boas frases para dizer, devem ter um sentido de oportunidade política, devem mostrar consistência nas críticas que fazem, mas não devem andar a inventar críticas para aparecerem. E não têm de andar a fazer o pino para serem notadas. Nunca foi a minha maneira de estar e não vou mudar.

Mas tem consciência de que é um estilo de oposição diferente daquele a que estamos habituados…

Talvez. Mas é o meu estilo. Não vou andar à procura de uma imagem para poder ser melhor líder da oposição. Já disse uma vez e reitero: mesmo que este Governo não falhasse as contas – e as coisas não acabassem numa desordem imensa que nos obrigasse a pedir ajuda externa outra vez – o PSD seria necessário. Porque eu não identifico no PS, e muito menos neste PS, a capacidade reformista de que o país precisa. Nós levamos o país a sério, levamos os portugueses a sério e levamos a sério o nosso papel enquanto força política. Estando no governo ou estando na oposição. O resto são questões de estilo.

Por exemplo: há quem ache que, estando no Parlamento, eu deva fazer todos os debates quinzenais com o primeiro-ministro. Eu acho que não. Umas vezes farei, outras vezes não farei. O primeiro-ministro faz os debates todos e nunca responde a nada. A rigorosamente nada.  A gente pergunta A e ele diz C. A gente chama a atenção para uma coisa e ele faz um comício… Não há uma única resposta objetiva a qualquer pergunta.

E a comunicação social é mais benévola em relação a este Governo do que foi em relação ao seu?

Dizer ‘a comunicação social’ é uma expressão muito vaga. Mas, que parece existir na maioria a sobranceria de achar que não precisa de dar explicações, ah isso parece! E estamos a chegar a um período em que é preciso denunciar isso mais vigorosamente. Aquilo que a hoje em dia assistimos no Parlamento não é digno de um sistema livre e democrático. Durante quatro anos fui primeiro-ministro e fui frequentemente insultado no Parlamento. E respondi sempre aos insultos no Parlamento com urbanidade, com respeito institucional, e procurando fundamentar sempre as minhas respostas às questões que me eram colocadas. Hoje estou na oposição e a maioria do Parlamento insulta-nos em todas as intervenções que são feitas. Isso é intolerável num sistema democrático.

Sente-se pessoalmente incomodado com a situação?

Aquilo a que se assiste no Parlamento é à desqualificação, ao enxovalho e ao insulto gratuito em cada intervenção que é proferida pelos partidos da maioria. Sem nenhum respeito por ideias diferentes, sem nenhum respeito pelas pessoas que exercem as suas funções com dignidade no Parlamento. Isto é inaceitável. Ainda não vi na comunicação social lato sensu esta denúncia. Mas, ao contrário, já vi um editorial de um jornal a mandar calar um ex-primeiro-ministro. Que é uma coisa também inaceitável. Eventualmente porque o tal ex-primeiro-ministro atacou o atual Governo, que é uma coisa que o jornal em questão acha que não pode acontecer. Como é possível que alguém da área política do Governo  critique o Governo? Se o faz, tem que se calar. Imagine o que seria se eu tivesse adotado essa técnica enquanto fui primeiro-ministro. Mandar calar comentadores que são militantes do PSD e desancaram no PSD todas as semanas. O que diriam sobre a minha tolerância e o meu espírito de liberdade? E hoje isto é praticado diariamente, na maior parte dos órgãos de comunicação social, sem qualquer pudor.