João Varela Gomes. O herói silenciado

       

Há uma ideia muito interessante do filósofo Walter Benjamin que na história coexistem vários rios e que o futuro pode produzir o próprio passado. A história que conhecemos é em grande parte a narrativa dos vencedores e poderosos. Mas no dia que os vencidos da história triunfem, ele conseguirão a redenção de todos aqueles que lutaram por um mundo melhor. É como se nesse dia de juízo final, todos aqueles que construíram o mundo, mas que foram silenciados, vão aparecer aos nossos olhos com o seu verdadeiro destaque. A biografia de António Louçã sobre o coronel Varela Gomes não é o juízo final, mas é uma contributo de justiça. Ao longo de mais de 350 páginas, vamos conhecer um homem que teve um papel impar na nossa história contemporânea, mas quem o desfecho da revolução e o seu fim, votaram aos esquecimento. Esse processo não foi inocente. Foi propositado, sistemático e mantém-se com o controle dos aparelhos ideológicos de Estado que fazem com que tudo o que seja verdadeiramente divergente seja minorado. O livro do historiador António Louçã é para além disso uma lição de historiador, feito de minúcia, documentação e inteligência. É possível conhecer uma parte apreciável da nossa história contemporânea nas suas páginas. Pode-lhe faltar aquela leveza da historiografia biográfica que está tanto na moda, nas nossas casas de chá, mas sobra-lhe contexto históricos, cruzamentos de fontes e documentos. E isso é feito sem o autor abdicar do seu posicionamento político próprio, mas com a honestidade que permite, mesmo a quem não concorda com ele, aprender nesta viagem.

João Varela Gomes nasceu em 1924. Depois de se ter envolvido ativamente na candidatura de Humberto Delgado (1958), João Varela Gomes esteve ligado à conspiração da Sé (1959). Em 1961, juntou-se a outros prestigiados democratas na apresentação de uma candidatura à Assembleia Nacional. Pela forma hábil como fez o pedido aos seus superiores da hierarquia militar, Varela Gomes foi autorizado a integrar as listas. Nos comícios da campanha eleitoral realizados no distrito de Lisboa, ficou célebre o empolgante discurso de JVG no Teatro da Trindade: incentivou os presentes à revolta contra o regime. Levando um agente da PIDE a escrever no seu relatório: “Varela Gomes foi muito ovacionado, com a assistência em pé. Foi, de todos os oradores, aquele que mais atacou Sua Excelência o presidente do Conselho e todo o Governo”. O “The New York Times” considera-o numa das suas notícias sobre Portugal “um líder político emergente da esquerda”. Participou no golpe de Beja, em 1961. Apesar de reticente em relação a muitos aspetos desta conspiração dos setores ligados ao general Humberto Delgado, toma a dianteira na execução da ação da tomada do Quartel de Beja. É gravemente ferido quando foi tentar convencer um oficial do regime a render-se. Foi julgado e condenado em Tribunal Plenário, esteve preso durante seis anos e foi expulso do Exército, acusado pelo seu papel decisivo na Revolta de Beja. Gravemente ferido na madrugada de 1 de Janeiro de 1962, foi-lhe extraído um rim e o baço e, quando saiu da prisão, a sua fragilidade física ainda exigia cuidados médicos especiais. Saído da cadeia continuou o seu combate contra o antigo regime, nas fileiras da CDE.

Após o 25 de Abril foi reintegrado com o posto de coronel. Colocado na Comissão de Extinção da PIDE, foi preso pelos spinolistas, acusado de ter retirado documentos ao arquivo da política política. Acusação que sempre negou. Embora seja moda a publicação de alguns arquivos interessados como o de Mitrokhin, de um desertor da KGB, a verdade é que grande parte da fuga dos arquivos, como os da colaboração da CIA e dos Serviços Secretos Franceses para os EUA e a França, se dá com figuras gradas aos spinolistas à frente dos ditos arquivos. Libertado pelo MFA, dessa curta detenção, é colocado à frente da Quinta Divisão. Tem um papel destacado na reação do MFA ao golpe de direita do 11 de Setembro. E dirige as campanhas de dinamização popular, com que os militares revolucionários pretendem envolver os setores mais carenciados da população, para além de combaterem o analfabetismo. É o homem que, com um contingente de operários da Sorefame, retira o nome de Salazar da ponte sobre o Tejo, e a rebatiza como “Ponte 25 de Abril”. Com o andamento da Revolução, transformou-se numa das figuras cimeiras da “esquerda do MFA”. O alto responsável da CIA, na altura embaixador em Portugal, Frank Carlucci, responsabiliza-o pela tentativa de armar e organizar civis na defesa do processo revolucionário. “O provável veículo para trazer para Portugal o conceito de [de Comités de Defesa da Revolução] foi a missão de Varela Gomes a Cuba. Em 1975 viu-se obrigado ao exílio, ao ter recebido um pré-aviso de captura, na sequência do 25 de Novembro. Anos mais tarde pôde regressar a Portugal, viu anulado o mandato de captura que o atirara para Angola e Moçambique, mas teve de aguardar muito tempo até poder reingressar nas Forças Armadas. Regressou a Portugal em 1979. Nunca foi julgado, não obstante ter-lhe sido aplicada (a si e outros militares) a pena administrativa (e ilegal), de passagem ao quadro de complemento (milicianos). O Tribunal Superior Administrativo demorou cinco anos para anular esta deliberação e, em 1982, foi integrado como Coronel, mas reformado.

Na sua corajosa defesa, no processo do golpe de Beja, no Tribunal Plenário, em Julho de 1964, Varela Gomes pronuncia a sua versão da “história me absolverá”, de Fidel de Castro, ao dizer frente aos magistrados e acusadores do regime fascista: “Que outros triunfem onde nós fomos vencidos”. Menos de dez anos depois a ditadura era derrubada no 25 de Abril, o então capitão Diniz Almeida, confessou ter em mente o falhanço de Varela Gomes no golpe de Beja ao tentar convencer um oficial do regime a se render: “quando foi prender o seu comandante no 25 de Abril de 1974, teve o cuidado de o enfrentá-lo com uma G3 em posição de rajada, avisando-o que não queria ser obrigado a abatê-lo”, escreve o historiador António Louçã. A história ainda não triunfou, no sentido que profetizava Varela Gomes, mas este livro é um passo no sentido de alguma justiça.