Cuidados paliativos. Embalar a morte

Como está? Tem dores? – Por enquanto não, não me deixam ter.

Cuidados paliativos. Embalar a morte

Dora sorri à irmã Paula Cordeiro, uma cara familiar desde que há mês e meio deu entrada na unidade de cuidados paliativos da Casa de Saúde da Idanha, gerida pelo Instituto das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus. São 12 quartos ligados por um corredor, numa zona mais recatada do complexo de saúde em Belas. Cada quarto com a sua cama, uma janela, a decoração personalizada ao gosto dos residentes.

Dora está aninhada num cadeirão, não consegue andar sem ser amparada mas puxa os joelhos junto ao peito com a destreza de uma miúda. Tem 71 anos, um cancro em estado avançado que já não pode ser operado. Há seis meses, tentou fazer quimioterapia, mas não tolerou os tratamentos. Foi parar ao hospital, perdeu a consciência. “Pregou uma rasteira à morte”, disseram-lhe os médicos. Desde então, voltou a si mas a doença progrediu. Dores não tem, mas sente-se fraca. Ao lado da cama há uma pequena televisão, passam as notícias da vitória do Benfica. “Claro que sou do Benfica”, atira. Mas tanta conversa já chateia. “Nem vi o jogo, fiz coisas mais interessantes. A minha filha veio buscar-me para almoçar e depois fomos ver o mar.”

No quarto ao lado, um homem da mesma idade almoça frente à janela. Está um dia de sol. Na parede há uma montagem com dezenas de fotografias, como na sala de um apartamento moderno. Noutro quarto mais adiante, Eduardo, de 63 anos, dorme tranquilo. Chegou há um mês ainda a dizer umas palavras, partilha a cunhada, mas agora só ouve e acena que sim. Tem um tumor no cérebro, já foi operado duas vezes. “Fez os tratamentos que tinha a fazer, não melhorou.” Outro doente um pouco mais novo deambula. Vai fumar o seu cigarro à rua, explica o diretor clínico Pedro Varandas, quando, no entra e sai, passa várias vezes pela equipa.

Morreram duas doentes de madrugada. Quando não se está habituado, a morte é uma presença estranha. Morreram duas pessoas ali de madrugada é uma frase que faz estremecer. Não acontece todos os dias, mas acontece, explicam-nos. Em dez anos passaram pela unidade 780 doentes e a maioria morreu com eles. O corpo é cuidado pela equipa, são vestidos e permanecem na cama. Não são tapados com um lençol como nos hospitais, explica a assistente espiritual Maria Fátima Gonçalves. “É como se estivessem nas suas camas, em sua casa, uma morte serena.” Encontrar dignidade no fim da vida, o mote do trabalho da equipa, passa também por isto.

Ciência e caridade

A unidade tem o nome de Bento Menni, patrono das irmãs hospitaleiras que defendia que a ciência e a medicina deviam unir-se à caridade. É isso que fazem, explica Paula Carneiro. Não há um silêncio constrangedor, mesmo quando chegam familiares. “Não há gritos de desespero, não é um lugar lúgubre, não tem o ar frio do hospital. Muitos familiares quando entram aqui pela primeira vez ficam espantados”, diz Pedro Varandas, psiquiatra e diretor clínico da Casa de Saúde da Idanha. Só num quarto há um ambiente mais duro: uma mulher respira pesadamente. Está em estado agónico, o período antes da morte em que começam a falhar as diferentes funções orgânicas. Às vezes pode durar oito dias. Outras, quando os doentes até aparentam estar melhor, a situação piora em poucas horas.

Há dez anos foram das primeiras unidades a integrar a Rede de Cuidados Continuados do Serviço Nacional de Saúde (SNS), primeiro como experiência-piloto. Por definição, aceitam pessoas com doenças complexas em estado avançado, com evidência de falha da terapêutica dirigida à doença de base, ou em fase terminal, e que precisam de cuidados para orientação ou aplicação de plano terapêutico paliativo. Ou seja, para controlo da dor e não para se curarem. 

Se os critérios para referenciação na rede nacional são estes, Paula Carneiro admite que os cuidados paliativos estão demasiado conotados com a ideia de “morte eminente”, quando são mais como as urgências de pessoas com doenças em que deixou de haver uma intenção curativa, porque os tratamentos não funcionam ou porque fariam pior. Recebem sobretudo doentes oncológicos, mas também casos de demência ou doenças degenerativas em estado avançado. “Se houvesse uma boa rede e acompanhamento, podemos pensar em situações em que as pessoas poderiam controlar os seus sintomas e ter alta deste tipo de unidades, sendo acompanhadas em casa ou em centros de dia especializados.” 

Mas a rede não chega e ainda não há, por exemplo, centros-de-dia. Dos 780 doentes, apenas 6% tiveram alta, para casa ou outro tipo de unidades. Segundo a tutela, há 134 pessoas à espera de vaga nos cuidados paliativos. A equipa da Casa de Saúde da Idanha diz que o tempo médio de espera já foi de três meses e hoje é de mês e meio. Muitas vezes, também porque são encaminhados só em situação crítica e de grande dependência, os doentes morrem à espera. Ou não chegam a ser referenciados. “Há doentes que podiam estar num serviço assim e morrem nas urgências”, diz Paula Carneiro.

Os diferentes lados da dor

O problema não é a assistência médica, que no hospital também têm, mas o resto. A personalização dos cuidados e abordagem integral ao doente – encarando a dor como uma manifestação física mas também psicológica e espiritual – é a grande diferença nos cuidados paliativos, explica a equipa. São 25 profissionais dedicados só a esta unidade, entre enfermeiros, fisioterapeuta, auxiliares, médico, psicóloga, assistente espiritual.

Os doentes não pagam nada, o Estado paga 105,46 euros por dia por doente. “É das áreas em que o pagamento cobre à risca o trabalho e por vezes não chega”, diz Paula Carneiro. Nunca fazendo prognósticos sobre a morte, o acompanhamento 24 horas por dia faz com que consigam sentir quando os doentes melhoram, quando pioram, quando a vida começa a esvair-se, indo além dos critérios clínicos. Até com as famílias há uma relação diferente, explica Paula Carneiro. “Nos hospitais escondemo-nos mais, existe menos comunicação.” Ali, também porque não há a pressão de se poder fracassar num tratamento mas sim o investimento total em dar qualidade ao tempo de vida, seja ele qual for, procuram antecipar tudo. E o susto das más notícias é também ele minorizado por conferências familiares onde falam do que pode acontecer, como é expectável que aconteça. Quando as famílias lhes pedem para esconderem o pior dos seus familiares – e muitas vezes pedem – acordam que se houver perguntas, haverá respostas, sempre com o cuidado de gerir a esperança e as expectativas de todos. E, sobretudo, de tentar serenar os doentes que passam por fases de revolta e negação. “Se me perguntam ‘vou morrer?’, não o escondo mas digo que todos vamos morrer. E devolvo a pergunta: ‘e isso preocupa-o? Porquê?’”

Nos últimos momentos, metade dos doentes perde a consciência. Quando a família não consegue estar, ficam lado a lado com as pessoas que aprenderam a conhecer para lá da imagem débil, da respiração cada vez mais superficial. Há um momento íntimo, um último olhar ou toque, que quem trabalha na unidade não consegue descrever por palavras, mas também isso faz parte da construção da dignidade. “Nesses momentos, só sinto que é um privilégio fazer parte da vida daquela pessoa”, resume Sílvia Noné, a psicóloga da equipa.

Uma casa de vida

Paula Carneiro faz parte da direção da Casa de Saúde da Idanha e há dez anos, enquanto enfermeira, lançou a unidade. Nessa altura o deserto era total: havia apenas uma equipa comunitária ligada ao centro de saúde de Odivelas – gerida pela hoje deputada Isabel Galriça Neto, – uma unidade no Fundão e outra no IPO do Porto. Passado uma década, a responsável admite que aprenderam muito, mas é cada vez mais premente o reforço da resposta a nível nacional. Até porque existe a convicção de que bons cuidados paliativos podem permitir não só reduzir sofrimento, mas recuperar algumas funções. E isso faz a diferença. Paula lembra uma das primeiras doentes, uma mulher de 50 anos com um tumor cerebral. Chegou sem falar mas os cuidados, de alguma forma, fizeram reduzir a massa. Tornou a dizer algumas palavras, frases simples. “Cuidava de uma irmã deficiente e julgo que aquele final foi importante para mostrar a sua preocupação.”

Ao mesmo tempo que, do ponto de vista técnico, fazem tudo para mitigar a dor, acreditam que a humanização vale tanto ou mais que alguns comprimidos. Tentam perceber como é que a pessoa pode ultrapassar a condição de doente, se há coisas que tem para tratar, se há um desejo. Se há algo que gostava de comer, tratam disso na cozinha. Já houve caracóis, marisco, feijoada. A um doente, o simples cheiro do café que não conseguiu engolir bastou. Insistem para que continuem a levar os alimentos à boca enquanto isso é possível, mesmo que leve uma hora, quando num hospital não haveria mãos para esse trabalho e rapidamente passariam a soro. Há visitas dos familiares, festa de anos, dia dos namorados, a visita do cão ou do gato que deixaram em casa. Já houve pedidos para voto por correspondência e apostas no euromilhões. E houve até um casamento, de uma doente que estava em união de facto e quis casar pela igreja.

Se há um sonho, e muitas vezes as conversas descobrem sonhos, enfermeiros, técnicos e voluntários – que trabalham em equipa e discutem cada caso todas as semanas – tentam realizá-lo como se se tratasse de ajustar a dose da medicação. Com o mesmo empenho, com o mesmo objetivo. Nestes dez anos, receberam a visita da águia do Benfica, do jogador Oceano ou de José Carlos Malato.

A importância destes gestos acaba por revelar-se maior do que uma simples atenção, explica a equipa. A doente que queria conhecer Malato falava muito dele. Enquanto não desencantaram o contacto, piorou. Quando finalmente o apanharam, disseram-lhe que teria de vir no espaço de horas. Malato aceitou e informaram a doente. De olhos semicerrados, ela terá percebido. Mal o apresentador entrou no quarto, reagiu. Segurou um boneco que tinham feito num ateliê de trabalhos manuais e ofereceu-o ao apresentador. Não disse nada, nunca saberão o que terá pensado. Morreu meia hora depois da visita. “Percebemos claramente que as pessoas esperam. Esperam por batizados, por casamentos, pela presença dos filhos e familiares. São coisas que a ciência não explica. Tentamos fazer tudo para ir ao encontro disso, para que possam concretizar o que desejam, tratamos da cadeira de rodas, do transportes, de uma transfusão de sangue se for caso disso.”

Cuidar de quem sofre

Pedro Varandas acredita que serem uma instituição de inspiração cristã e com experiência no foro da saúde mental acabou por ser determinante para implementar o modelo de intervenção em cuidados paliativos, em que para lá do sofrimento físico é preciso cuidar do sofrimento subjetivo. “No cuidado a doentes mentais existe mais esse trabalho de procurar o estado subjetivo, mesmo que não haja comunicação ou exista uma grande confusão. Nos hospitais ,os técnicos, e muito os médicos, estão focados nos sintomas físicos, no intensivismo”, diz Pedro Varandas. A busca pelo sentido de vida é uma constante, independentemente de a pessoa estar mais ou menos consciente. E nunca há juízos sobre o que foi e fez antes, há uma valorização da vida no presente, tentar extrair algo bom que ajude a acalmar o sofrimento como manifestação não só da dor mas das angústias que a pessoa carrega. Um trabalho que pode parecer só bem intencionado, mas requer muita formação, acrescenta Sílvia Noné. “Acaba por ser uma filosofia que vai muito além de uma confissão religiosa católica”, diz a psicóloga. Nem sempre é possível controlar totalmente a dor, mas para os profissionais que trabalham em cuidados paliativos não há limites para a oferta de conforto. “Como não encaramos apenas a dor física, se nada funcionar há a presença”, diz Paula Carneiro. E se o doente não o quiser? “Saímos”.

Nos últimos tempos o tema da eutanásia como alternativa para um fim de vida digno, sem sofrimento, regressou à agenda. Se a convicção religiosa pró-vida em que assenta o trabalho da instituição é inabalável, Paula Carneiro insiste que a discussão não termina aí. Não havendo cuidados paliativos suficientes em Portugal, avançar com a despenalização da morte assistida seria um desequilibrar da balança da livre vontade dos doentes, defende. Em dez anos, nunca nenhum lhe pediu para morrer. “A experiência que temos é que as pessoas podem até ter equacionado isso ao longo da vida quando pensavam no momento da morte mas perante a situação não o pedem”, explica Pedro Varandas. “Quando muito, há pedidos para que, caso o estado se deteriore muito, sejam mais sedados, para que estejam a dormir para sofrer menos. Mas são pedidos muito raros”, explica a enfermeira Maria João Lopes. “Há acima de tudo uma diferença de intenção”, acrescenta Paula Carneiro. “Os defensores da eutanásia entendem que pôr fim ao sofrimento do doente é usar os medicamentos para matá-lo. Eu entendo que é fazer tudo para valorizar a sua vida.”

Há momentos em que se sentem mais impotentes perante a dor física e há casos difíceis, pessoas que morrem mais feridas, mas na maioria das vezes sentem que os doentes encontram recursos para enfrentar a morte e que o fim não se torna um pensamento diário. “Se isso acontece, não é normal, pode haver uma depressão que requer tratamento. Mesmo que isso seja subjetivo, todos sabemos que somos mortais.” O trabalho em torno do luto acaba por ser mais com os familiares, que sofrem sempre. Conscientes disso, um mês depois da morte, fazem um contacto à família, para ver como estão.

Enquanto há vida, há esperança

Mais insistente do que a ideia de morte acaba por ser a esperança. Maria Fátima Gonçalves, assistente espiritual, explica que, por vezes, quando os tratamentos de controlo da dor produzem melhorias, os doentes chegam a acreditar que vão ficar bons. Aí, o trabalho passa a ser gerir as expectativas, sem destruir a convicção mas sem a acalentar demasiado. “A esperança é importante desde que haja uma adaptação, um pensamento positivo integrado e que não implique que a pessoa se vá embora ou decida, por exemplo, que afinal vale a pena fazer um grande investimento.”

Já a relação com a fé não muda particularmente no fim de vida. “A maioria das pessoas que nos chega são católicos culturais e a relação que têm com a fé é a mesma que tiveram ao longo da vida, não há grandes conversões.” Mas sofre menos quem acredita que há uma vida depois? Maria Fátima Gonçalves sente, sobretudo, que quem pertenceu a uma comunidade, seja de que crença for, parece sentir-se mais realizado. E menos abalado por estar a chegar ao fim. O mesmo se passa com quem foi mais organizado. “São poucas as pessoas que dizem que fizeram tudo o que queriam, mas há diferenças: as pessoas que tiveram uma vida confusa, que nunca conseguiram atender a tudo, sentem que ainda têm  mais por fazer.” A família, mesmo que tenha sido descurada, é outra grande preocupação.

São estas constatações que fazem com o trabalho seja “intensificar a vida” dos doentes que recebem. Recordar momentos, resolver problemas e angústias. Há reencontros familiares, ajuda para resolver problemas com bens e heranças. Em média os doentes passam ali mês e meio. Pode parecer pouco mas o tempo é percecionado de forma diferente ao longo da vida, explica Pedro Varandas. Perceber que todos temos os dias contados acaba por ser uma lição diária para quem ali trabalha. “Não perdemos o medo da morte, mas temos mais consciência”, diz Sílvia Noné. “Deixamos de adiar coisas, passamos a dar valor aos pequenos momentos, ao beijo à família pela manhã, dizer às pessoas que gostamos delas”, acrescenta a enfermeira Maria João. Em dez anos, a experiência mudou-a. “Faço muito menos planos a mais de 15 dias, talvez só as férias”, sorri. E se isto se passa no pequeno mundo da unidade, acreditam que quando a sociedade passar a dar tanto valor ao momento da morte como hoje se dá aos nascimentos, a vida se tornará mais plena. “O que está aqui em causa é um salto civilizacional”, concorda Pedro Varandas. “Por vezes pensa-se só na questão financeira de reforçar os cuidados paliativos, mas é uma mudança que passa muito pelas nossas cabeças.”

As famílias, com mais ou menos dor, percebem. Isabel agradece o facto de o cunhado Eduardo ter a oportunidade de ser cuidado nos seus últimos momentos. “Disseram que ia deixar de falar, deixar de andar e por último deixar de ouvir. Está a bater tudo certo”, partilha. Desde o primeiro dia que o sente estimado e mais sereno do que estava em casa, sujeito a cair e a morrer sozinho. “Às vezes digo à irmã para lhe passar só com a mão para ficar calminho. Toda a gente devia poder ter um fim assim.”

Dora vive o dia-a-dia, preenchendo-se com as metas que a animam. “Se Deus quiser”, vai estar num almoço de família daqui a 15 dias. Mas aguarda sobretudo o presente, as visitas quase diárias da filha e da neta. Acatou bem a decisão de ir para os cuidados paliativos e gostava que outros tivessem essa oportunidade: em casa, enquanto elas trabalham, ficaria sozinha. Segundo a equipa, ainda há doentes que o temem e adiam por se sentirem condenados. “Estamos todos, a oportunidade é de viver melhor a vida que se tem”, diz Pedro Varandas. Dora não se imaginava num lar, a sentir-se “coitadinha”. Ali também lhe custa precisar de ajuda para se arranjar, mas sente-se respeitada. Nas suas vontades, nas suas coisas. Fala da doença e da morte se lhe apetecer, não é obrigada a isso. “Não tenho medo da morte, tenho pena.”