Guterres era bem, mal ou mais ou menos amado?

Para Marcelo, Guterres foi o «primeiro-ministro mais amado de Portugal». É verdade que o Presidente é amigo e estamos em campanha para a ONU. Mas será mesmo assim?

«O primeiro-ministro mais amado de Portugal». Foi assim que o Presidente da República definiu António Guterres, seu amigo de adolescência e agora candidato a secretário-geral das Nações Unidas.

Mas foi mesmo Guterres o chefe de governo «mais amado»? João Cravinho, que foi ministro das Obras Públicas do Governo Guterres admite que sim, «por comparação».«Comparativamente com o primeiro-ministro que o antecedeu – Cavaco Silva – e com o que lhe sucedeu, Durão Barroso, pode-se dizer que foi bem-amado».

Cravinho admite que há uma diferença de ‘amor’ a António Guterres primeiro-ministro e ao Guterres «que saiu sem que as pessoas percebessem bem o que se passou». Este último Guterres, que afirmou que se ia embora para «evitar o pântano», tornou-se bastante mal-amado.

«Não saiu em apoteose», reconhece ao SOL o politólogo André Freire, recordando os «sinais de fraqueza» que o primeiro-ministro António Guterres foi dando. «O Governo Guterres evitava medidas impopulares e perdeu a linha de rumo», afirma.

Quando ganhou as primeiras eleições em 1995, depois de 10 anos de cavaquismo que nos últimos tempos se tinha tornado «musculado», «foi uma coisa positiva o engenheiro Guterres ter aparecido com uma imagem de marca que foi a do diálogo político e social», diz André Freire. Houve, com a ascensão de Guterres ao Governo, «uma distensão bastante grande» na sociedade. Só que depois Guterres acabou por embarcar numa espécie de «navegação à vista que desembocou no chamado pântano».

André Freire lembra que o «pântano», como o próprio Guterres afirmou no dia da demissão, era «o esgotamento de condições institucionais para poder governar».

Um governo hesitante

«O Governo foi dando sinais de fraqueza e hesitação em tomar as medidas necessárias», lembra o professor do ISCTE, que aponta os casos da reforma do património, da reforma fiscal e o famoso episódio da lei da alcoolemia como «exemplos emblemáticos». Guterres recuava perante os protestos. Ficou-lhe colada a imagem de indeciso.

António Guterres nunca teve maioria absoluta e nunca arranjou maneira de fabricar uma geringonça capaz de lhe dar apoio parlamentar. Em 1999, recandidata-se a primeiro-ministro sem qualquer esperança de poder vir a ter uma maioria absoluta. A campanha é morna e, numa conversa privada com jornalistas por esses dias, Guterres confessa que tem um sonho e não é o de ser primeiro-ministro. Gostava de vir a ser alto-comissário para os Refugiados.

Se em 1995 Guterres tinha ficado a um deputado da maioria absoluta, os resultados eleitorais de 1999 dão empate técnico: os socialistas têm os mesmos assentos parlamentares que o resto da oposição. Fazer passar orçamentos (que enquanto líder do PSD Marcelo deixou aprovar no primeiro Governo) torna-se mais difícil. Os orçamentos do ‘queijo limiano’ tornam-se marcas negras da governação guterrista. Daniel Campelo, deputado do CDS, aprovou os orçamento socialistas de 2001 e 2002 em troca de benefícios para a sua terra, Ponte de Lima. Daniel Campelo, que foi presidente da Câmara de Ponte de Lima, ficou conhecido como o ‘deputado limiano’ depois de ter feito uma greve de fome em plena Assembleia da República em protesto pela transferência da fábrica do queijo limiano para outro concelho do país. «Os orçamentos do queijo limiano foram o cúmulo do paroxismo», nota André Freire. Mais tarde, Guterres admitirá o seu «erro político»

As polémicas sucedem-se. Metade do Governo está contra a outra metade. Dois jovens ministros chamados António Costa e José Sócrates estão cansados das permanentes cedências e procura de consensos do primeiro-ministro. É na mesa desse Conselho de Ministros que os dois, que tinham feito toda a sua vida política em lados diferentes da barricada, concluem que, em termos de tomadas de decisão, é muito mais o que os une do que aquilo que os separa. O escândalo da Fundação para a Prevenção e Segurança (uma entidade privada criada no Ministério da Administração Interna liderado por Armando Vara) abala o Governo. E é o Presidente da República Jorge Sampaio que tem que vir a público exigir a demissão de Vara, perante a inércia de Guterres.

Contra o pântano político

E chega o dia 16 de dezembro de 2001. O PS é devastado nas autárquicas, perdendo algumas das suas câmaras mais emblemáticas. Ao todo, desaparecem 14 câmaras socialistas. Guterres convoca o secretariado nacional para o hotel Altis, onde estava reunido o estado-maior socialista. Quer demitir-se de primeiro-ministro.

Muitos elementos da direção pressionam Guterres a não se demitir – ou pelo menos a abrir a porta para que o PS continue no poder. Guterres resiste. Tem a sua decisão mais que tomada. Ainda lhe sugerem que apresente uma moção de confiança na Assembleia da República. Nada. Guterres tem consciência de que a sua legitimidade política, que tinha levado inúmeros solavancos nos últimos anos, estava perdida.

O discurso que Guterres faz nessa noite é genericamente incompreendido. A expressão ‘pântano’ obnubilou o sentido geral daquilo que Guterres tencionava dizer aos portugueses. O pântano era a incapacidade de governar sem uma maioria parlamentar, dependendo de acordos pontuais, e não propriamente um ‘lamaçal’. Mas a história registará o ‘lamaçal’ que por vezes foi a imagem dos últimos tempos do guterrismo.

Depois de horas em que resistiu a todas as pressões para reconsiderar, Guterres despediu-se lembrando que se ficasse «o país cairia inevitavelmente num pântano político que minaria as relações de confiança entre governantes e governados que são indispensáveis para que Portugal possa vencer os desafios que tem pela frente».

«Entendo que é meu dever, perante Portugal e os portugueses, evitar esse pântano político. Por isso mesmo pedirei ao senhor Presidente da República que me receba para lhe apresentar o meu pedido de demissão». Bem amado? «Marcelo e Guterres têm uma enorme interação afetuosa», diz Cravinho